terça-feira, 27 de setembro de 2011

Os óculos de Eulália





A filha, Anita, observou a mãe, Eulália, diante da televisão. Curvada para a frente, os olhos espremidos, a testa enrugada, as mãos apoiadas nos braços da poltrona como se fosse saltar na direção da tela.
- Mãe, cadê seus óculos?
Eulália olhou-a irritada. Lá vinha a filha perguntar de novo pelos seus óculos. Anita adquirira nos últimos tempos essa mania de controlar tudo que fazia, aonde ia, como andava, se estava com a coluna reta ou torta, se tossia ou gemia ao se abaixar.
- Não sei, disse, fingindo-se de desentendida. Por aí.
- Por aí, onde, mãe?
- Por aí, fez ela, aproximando-se da televisão e apertando os olhos.
Anita levantou-se e se colocou entre ela e a tela.
- Que foi? perguntou Eulália.
- Os seus óculos sumiram já faz uns seis meses. Não se faça de boba.
- É. Mais ou menos isso. E daí?
- A senhora precisa usar óculos, mãe.
- Ah, deixa eu ver a novela! Sai da frente.
- Só se me prometer uma coisa.
Eulália jogou-se contra o encosto da poltrona, vencida:
- O que você quer dessa vez?
- Que a senhora vá comigo ao oculista.
- Por quê?
- Porque a senhora está precisando.
- Precisando o quê?
- Enxergar direito.
- Enxergo muito bem. Estou vendo a novela, não estou?
Anita perdeu a paciência, disse que ia caminhar, aproveitar aquele final de tarde com sol. Perguntou:
- Quer caminhar comigo?
- Deus o livre! Quero ver a novela. Sabe o Carlos Alberto?
- Não, não sei, não assisto novela.
- Acho que ele vai...
Furiosa, Anita saiu porta afora.
Eulália ficou sozinha e, mesmo tendo Carlos Alberto aparecido na tela e se aproximado de Ana Maria, não prestou atenção na televisão. Quem sabe Anita estivesse com a razão, pensou, olhando para a porta por onde ela escapulira furiosa.  A filha tinha manias de solteirona, mas a verdade é que andava preocupada. Talvez ainda continuasse solteira só para cuidar dela. Eulália levantou-se da poltrona e foi em busca de um copo de água. Quando alcançou a porta da cozinha, ouviu um grito e se virou para a televisão. Uma sombra escura, Carlos Alberto, se debruçava sobre uma sombra vermelha, Ana Maria. Que grito estranho, pensou. Essa Ana Maria é cheia de fricotes, devia aceitar de uma vez casar com Carlos Alberto. Ou seria o Aguiar, o crápula, que entrara em cena?
Eulália aceitou fazer os exames no oculista. Quando os óculos ficaram prontos, ela sentou na frente da televisão e viu que de fato já não enxergava quase nada. Lá estava a casa de Carlos Alberto, os móveis, os quadros na parede, a paisagem vista pela janela. O rosto perfeito de Ana Maria. Como eram belas aquelas cores, pensou ela. E saiu pela sua própria casa, olhando para tudo com uma surpresa de criança. O retrato de Anita quando menina sobre a cristaleira. A cortina, o tapete, lá fora no jardim o pé de goiaba. Seu Alípio atravessando a rua. Suspirou. O banheiro com seus ladrilhos floridos, a cortina de plástico rosa. O espelho no corredor.
Eulália parou na frente do espelho e ficou estática. Curvou-se para a frente e viu um rosto cansado, marcado por rugas e manchas. O olho esquerdo parecia derramado para o lado. Os cabelos, ralos, eram fiapos espetados no ar. Meu Deus, pensou ela, como estou velha e feia.
No dia seguinte, na hora da novela, Anita deu pela falta dos óculos.
- Mãe, cadê seus óculos?
- Pois não sei, minha filha. Sumiram.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O preço do livro eletrônico é extorsivo


 
Divido com muita gente o fato de ser um apaixonado por livros. Por isso passei a vida às voltas com livros e, além de escrever alguns, editei uma boa grande quantidade deles.
O livro – essa coisa física - me parece uma das realizações mais geniais do ser humano. Pode ser ele mesmo uma obra de arte primorosa e, ao mesmo tempo, ser portador de uma obra de arte. É prático, é simples, é companheiro, viaja conosco, dorme ao nosso lado, está disponível para ser consultado em qualquer ordem ou lugar – e sem precisar de bateria ou de tomada elétrica por perto.
Costumo dizer que se na prometida vida após a morte não existir uma boa biblioteca, tô fora.
Apesar desse apego ao livro físico em papel, acho ótimo o aparecimento do e-book. Já escrevi nesse blog que o e-book não substituirá o livro em papel. É outra forma de apresentar textos e imagens. Em algumas coisas supera o livro em papel: podemos armazenar um número enorme de livros num leitor e carregar conosco uma biblioteca; a consulta por palavras é mais rápida, mais simples e mais segura. Mas tem suas desvantagens: o leitor no qual ele é lido jamais poderá ser chamado de obra-prima e em sua tela não poderemos apreciar obras de arte em termos de tipografia e de reprodução de imagens com a qualidade que se alcança em papel. Etc.
No entanto, o e-book veio para ficar e a meu ver é bem vindo.
Mas está havendo certa bandalheira na venda de livros eletrônicos. A bandalheira à qual me refiro não se deve ao e-book como tal, mas à atração que o ser humano tem pela ladroagem.
Vejam bem. Tomo como exemplo a Autobiography, de Mark Twain, livro que espero ler em breve. No site Amazon, a edição em papel – que o site diz custar oficialmente 34,95 dólares – está sendo oferecida por 21,29 dólares. Em reais (tomo por base o dia 14/09/2011) R$ 59,85 e R$ 36,46, respectivamente. Sendo em formato para e-book, custa $ 11,79, ou seja, R$ 20,04.
Como se vê, o livro eletrônico custa mais da metade do livro em papel. Me parece um absurdo. Afinal, no livro digital só sobra do livro em papel – ainda que seja o principal - o texto. Sem papel, sem impressão, sem acabamento, sem capa, sem distribuição, estocagem, transporte, correio ou embalagem. É caro. Caríssimo.
A coisa fica ainda mais absurda se compararmos com o preço cobrado num site brasileiro, onde o mesmo livro de Mark Twain, em formato digital, custa R$ 42,09 reais. Ou seja, mais do que o preço cobrado no site Amazon pelo livro em papel.
Encontrei vários outros exemplos, todos confirmando o preço extorsivo. Não vou cansar os leitores com um bando de números. Apenas noto que, salvo engano meu, na maioria dos casos o preço do digital supera os 50% do livro em papel. Achei apenas um exemplo contrário digno de nota: a edição italiana da Divina Comédia, de Dante, que em papel pode ser adquirida por 24,50 euros e, em forma digital, por algo entre 0,99 euros e 5,25 euros.
Isso me lembra o preço cobrado pelos softwares - da Microsoft e de outras empresas. Sempre me pareceram extorsivos, em muitos casos justificando a pirataria. Como é que se pode cobrar, por exemplo, $149,99 por uma cópia do Office Home and Student 2010? São 256,89 reais! E se você quiser o Office Professional 2010 terá que desembolsar $499,99, ou seja 857,33 reais! Por uma coisa que é vendida aqui no Brasil e nos confins da China, em Paris tanto quanto em Angola! Além do fato de todo preço acompanhado de vírgula 99 me parecer uma afronta à inteligência do comprador.
É demasiado por algo que se vende – via download - mundo afora após um clique de um mouse! Mesmo considerada a criação do programa e a estrutura de atendimento, o preço é exagerado.
O preço dos e-books, portanto, está seguindo a lógica dos softwares: são cobrados preços arbitrários e absurdos. Extorsivos.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Quando menos se espera




Fuma outro cigarro. Com cuidado, buscando prolongar o tempo, sem pressa alguma. É preciso alongar os minutos, repete mentalmente, sentado no banco junto ao jardim do hospital, ao lado de um cinzeiro enorme, no qual deposita as cinzas com cuidado.
A sua frente, pequenas palmeiras. Mais adiante, o gramado no qual estão espetados alguns pinheiros raquíticos e envelhecidos. Fica com pena dos pinheiros – parecem frágeis e fatigados. Ele próprio se sente cansado, embora não se sinta velho. Sabe apenas que está ali a esperar. A esperar coisa alguma, é verdade.
Esmaga o cigarro no cinzeiro e olha para a rodovia que passa além do gramado. Fica por vários minutos assim, quieto, sem pensar em nada, vendo os carros passarem numa velocidade que lhe parece despropositada. São muitos carros, alguns buzinam, outros ultrapassam – tudo é nervosismo naquela rodovia, ao contrário do prédio branco e enorme no qual ele se encosta e continua a esperar. Pensa em acender outro cigarro, mas decide que seria um exagero. Chega de fumar. Agora passam caminhões, vários deles, enormes e resfolegantes, como se combinassem avançar sobre a rodovia todos ao mesmo tempo. Perto deles os carros lembram camundongos.
Estica as pernas, ajeita das costas contra a parede e segue sem pensar em nada. Um caminhão solta no ar uma coluna negra de fumaça. Um automóvel buzina furioso. E, para seu espanto, um ciclista surge na pista, dando pedaladas insistentes, talvez inúteis. São inúteis, decide ele.
Inútil como sua espera por coisa alguma.
Lá dentro do prédio branco, ele sabe, uma mulher de 87 anos fala sem parar. Não se entende o que ela diz, exceto algumas palavras soltas. Ela respira com dificuldade e suas mãos não param quietas. Mãos que buscam agarrar algo inexistente, vibram no ar, não desistem. Repetem os mesmos gestos, voltam a afastar a coberta, tentam retirar a sonda que mergulha em seu braço.
Viu aqueles gestos e palavras inúteis se repetiram ao longo da noite. E, como num milagre, lembra agora que num certo momento a mulher de 87 anos o olhou e sorriu. O mesmo sorriso de sempre. Há algo de moleque naquele sorriso. É a mesma? Fala com ela, pergunta se sabe que ele é.
Ela aprofunda o olhar, torna-se séria e chora. Ela o reconheceu. Quando chora é sinal de que o reconheceu.
- Quem é este que está aqui? pergunta a enfermeira.
O rosto da mulher vence o choro e diz:
- Meu filho.
Aquelas palavras são comemoradas com aplausos. É a mesma, pensa ele.
Mas logo as mãos voltam a se contorcer desencontradas embora ele descubra, sob a pele fina devastada por hematomas, sinais dos dedos delicados, da mão hábil e de traços refinados, que eram capazes de fazer bordados, crochê, vestidos, tricô, anotações em caligrafia elegante em pedaços de papel. Mas é preciso não se iludir: não esperar coisa alguma.
Acende outro cigarro. Os caminhões voltam a se precipitar sobre os automóveis. Os automóveis voltam a fugir desesperados ao longo da pista. Estranhamente, ele não ouve seus roncos, sua vibração, as freadas – lembra um filme mudo, movimentos puros.
Uma enfermeira surge no corredor. Carrega uma bolsa de plástico e sorri. Ele sorri também. Calcula que já se passaram uns vinte minutos, deve voltar ao quarto. Esmaga o cigarro fumado pela metade, levanta-se e dá dois passos na direção do gramado que, apesar do tumulto de carros e caminhões ao fundo, lhe parece um cenário idílico, como se naquele verde ele pudesse caminhar para sempre.
Respira fundo e fecha os olhos. É preciso esperar, pensa. Esperar coisa alguma. Um amigo lhe dirá, dois dias depois, que passou pela mesma experiência, algo como um pesadelo sem fim. Imitação dos carros na rodovia. Sucessão de gestos e movimentos que não vão a lugar algum. Como os pinheiros tristes que contempla por um tempo que parece não ter fim.
Sobe as escadas, avança pelo corredor, a mesma agonia o aguarda no último quarto à direita, onde a noite simula um túnel do tempo. No entanto, ele aguarda. Quando menos se espera, o sorriso que viu ainda menino.

e-mail: ro