segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O tricô e o Vale do Silício




As políticas implantadas no Brasil, em todas as áreas, costumam nascer de puro improviso, quando não de oportunismo eleitoreiro. Algumas vezes decorrem da necessidade de se apresentar um programa de governo, que talvez jamais seja implantado, ou da urgência em justificar verbas que, uma vez aprovadas, serão ou não corretamente aplicadas.
Isso se dá na área da saúde, da segurança pública, do saneamento, da educação. Há muito improviso, embora vez ou outra apareçam algumas ideias generosas criadas por assessores mais generosos. E há demasiado uso politiqueiro daquilo que o país realmente precisa.
No caso da educação, destaco um ponto que me preocupa: o deslumbramento com que os atuais planejadores da educação encaram a informática. Como o universo de políticos e de burocratas no Brasil não passa por qualquer reflexão, governando-se por modismos imediatistas ou politicas oportunistas, um chavão se tornou onipresente entre eles: é preciso realizar a “inclusão digital”. Qualquer vereador ergue o nariz e um dedo marqueteiro para anunciar, impávido: inclusão digital.
Nada contra a inclusão digital, esclareço. Mas ela virou um bordão mágico, espécie de síntese dos novos tempos e anúncio dos tempos futuros. Tudo se resolveria com a colocação de micros na sala de aula, por exemplo.
Será?
Eu, que sou dado a dúvidas impertinentes, me pergunto por que existe tal empenho em colocar a informática no centro da questão educacional, quando – e isso é notório – a imensa maioria de nossas escolas não tem bibliotecas dignas desse nome? A meninada ainda não chegou ao livro e querem que mergulhe no computador. Isso seria imaginar que o computador – que é um instrumento notável – surgiu do nada, sem vínculo com a Galáxia de Gutenberg.
Não estou aqui a expressar meras implicâncias ou manias pessoais. Uso computador desde a metade dos anos 1980, quando adquiri um daqueles pré-históricos monstrengos da Itautec, o CP500 – 48 Kbytes de memória RAM! – que nem disco rígido tinha. Funcionava com dois disquetes 5,25 polegadas. Era preciso carregar o sistema, retirar o disco, colocar outro no qual seriam gravados os arquivos etc. Hoje sou usuário de um notebook que, trinta anos depois, me parece milagroso. A informática é um avanço notável, mas...
Foi quando me caiu nas mãos – ou na tela – um artigo saído no New York Times, escrito por Matt Richtel, (A Silicon Valley School That Doesn’t Compute – 22/10/2011). Nele o jornalista revela que os executivos das grandes empresas de tecnologia avançada, como o vice-presidente da eBay e funcionários da região do Vale do Silício (Google, Apple, Yahoo, Hewlett-Packard, entre outras) estão matriculando seus filhos em pequenas escolas aonde os micros ainda não chegaram. Nelas há a preocupação, como no caso das escolas Waldorf, em atividades que desenvolvem habilidades motoras, exigindo criatividade, o que pode incluir – vejam só os arautos da inclusão digital – aulas de tricô!
Isso mesmo, leitor, aulas de tricô.
Segundo Matt Richtel, ajuda a desenvolver a capacidade de solucionar problemas, reconhecer padrões, apropriar-se de conhecimentos matemáticos e amadurecer a coordenação motora.
Há uns meses, dei com uma notícia vinda dos EUA, onde se dizia que certo professor universitário aconselhava que se abolisse a escrita cursiva – e, de arrasto, canetas, papéis, lápis e borracha, pelo que posso supor. A escola deveria ensinar apenas a escrita em letras de forma, pois é só disso que as crianças precisam para enfrentar um teclado, argumentava o douto professor.
Que ideia infeliz. Escrever “a mão”, mesmo em tempos de teclados e telas onipresentes, nos oferece tempo para reflexão e concentração, desenvolve coordenação motora, ativa neurônios, cria textos mais generosos e é fonte de prazer, o que não é pouco para se aprender nos dias que correm.
Portanto, quando altos executivos do Vale do Silício colocam seus filhos em escolas sem computadores, é bom – sem abrir mão das maravilhas da informática – não abrir mão da mão propriamente dita e desses instrumentos fantásticos: lápis, canetas, papéis, borrachas. E livros. Livros.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Marcos Valério confia na justiça. E você?



Marcos Valério - aquele mesmo do mensalão, agora às voltas com documentos falsificados, formação de quadrilha, propriedades rurais inexistentes dadas como garantia - ao sair da prisão no dia de ontem (14/12) por força de um habeas corpus, deu uma declamação que se tornou um bordão corriqueiro nesses casos:
- Eu confio na justiça.
O que me deixou com uma pulga atrás da orelha, como dizia meu pai.
Acontece que a população em geral costuma fazer diversas restrições ao nosso sistema judiciário. Seria lento, caro, elitista, classista, corporativista, formalista, abrigando quadrilhas, segundo denúncia recente de uma juíza. Enfim, a justiça seria tarda e falha, murmura o povão.
Já todos os engravatados pegos com a boca na botija, disparam a máxima:
- Eu confio na justiça.
Terão suas razões.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Muito prazer em conhecer - ou: Bertrand Russell e a educação


Bertrand Russell, filósofo inglês, era um empirista radical e pacifista militante quando isso dava cadeia – aliás, foi enjaulado algumas vezes por conta de suas ideias. Além de notável pensador, um refinado escritor. Seus textos autobiográficos resultaram em livros deliciosos.
Ficou órfão muito jovem e foi educado pelo avô, Lord John Russell, o qual, percebendo seu interesse pelos livros, resolveu abrir a ele a sua biblioteca, que era vasta. Russell, ainda um menino, ficou maravilhado e passou a ler os livros que despertavam seu interesse, fazendo escolhas aleatórias. Meses depois o avô o chamou e disse a ele que, pela desordem em que deixara os livros, conseguira descobrir quais deles havia lido. E o advertiu que fizera leituras muito dispersivas, que iam da astronomia à história, da física à biologia, de romances à poesia etc. E sentenciou:
- Não faça isso. Concentre-se num só tema. Especialize-se, senão nunca vai chegar a lugar algum.
Com o humor de sempre, Russell dá o seguinte fecho ao episódio: “felizmente jamais dei ouvidos ao conselho de meu avô”.
Como é sabido, Russell manteve vida afora seu interesse por inúmeros assuntos, da matemática à lógica, da sociologia à história do pensamento. Além disso, tinha especial preocupação com a educação, dedicando livros ao tema e, em 1927, fundou uma escola experimental, a Beacon Hill.
Foi do que lembrei ao ler um texto de um desses educadores que imaginam o ensino e o ser humano como uma extensão do mundo corporativo, com suas ênfases funcionais. O tal educador se mostrava irritado com o ensino de “coisas inúteis” aos alunos. Coisas que jamais iriam usar – embora ele não revele o critério para sabermos o que, no futuro, poderá ser usado por alguém. Enfim, nada de especulações. Nada de questionamentos. Nada de filosofias. Especialização.
Tais projetos de educação restritivos sempre me assustaram, tanto quanto me encanta o gosto de Russell pela não-especialização. Ele sabia que para se criar alguma coisa de novo em qualquer área, inclusive na educação, é preciso certa vadiagem de espírito, um senso quase lírico da aventura humana. Fora disso, a secura de burocratas, formadores de robôs.
Pois nesse ponto quase esqueci o tal educador e sua entrevista e passei a outro episódio relatado por Russell, que virou folclore.
Estava ele, certa tarde, remexendo com as flores de seu jardim, quando passou o jardineiro do bairro que lhe perguntou, puxando conversa:
- Trabalhando, doutor?
E ele:
- Não. Estou descansando.
Dias depois, o mesmo jardineiro o viu sentado num banco de jardim, olhando para o céu. O jardineiro desta vez achou que acertaria:
- Descansando, hein, doutor?
E ele:
- Não. Estou trabalhando.
O jardineiro foi levado a entender que muitas vezes um filósofo – ou um cientista – trabalha quando não faz nada e descansa quando faz alguma coisa. O nada do qual se ocupa são as ideias que fica revirando em sua cabeça vadia em busca de um melhor entendimento do mundo e da vida. E o descanso é dado pela ocupação de suas mãos, o que o dispensa de perseguir novos problemas.
Certos educadores, por não conseguirem entender o que o jardineiro de Russell entendeu, jamais se perguntam pelas razões que transformam as escolas em lugares muitas vezes áridos, não raro afastados de qualquer criatividade, sem passar aos alunos o verdadeiro prazer que é possível obter em coisas tais como pensar, ler, discutir, imaginar, fantasiar, criar, observar, esvaziar a mente. Um professor de matemática, Joaquim Floriani, me ensinou que a demonstração de um teorema pode produzir a mesma satisfação espiritual que a leitura de um poema. E um professor de desenho, Ludwig von Emmerich, me ensinou que não fazer nada pode ser tão produtivo quanto colocar tijolos sobre tijolos.
O professor que maravilhar seus alunos ensinou a eles algo de essencial. É preferível o menino Bertrand Russell livre e solto na biblioteca.