segunda-feira, 21 de maio de 2012

Manuel Bandeira: O outro dentro de cada um

 
Manuel Bandeira é sempre louvado como poeta e com toda justiça. Mas nem sempre nos lembramos dele como o refinado cronista capaz de relatos deliciosos sobre a arte e a arquitetura barroca, os recitais de piano e as peças de teatro da primeira metade do século XX, o nascimento do cinema, os primeiros filmes e as primeiras experiências cinematográficas nacionais, as exposições de artes plásticas, a atividade literária etc. Mas, além dos registros de seu tempo, o cronista também era capaz de nos deliciar com histórias ora líricas, ora cheias de humor moleque.

Em dezembro de 1931, ao escrever sobre o romancista Ribeiro Couto, o poeta nos brinda com uma dessas crônicas antológicas.

Os dois, velhos amigos, acabaram envolvidos em um triângulo amoroso inesperado em cujo vértice se colocou uma mulher misteriosa e impulsiva identificada como “a Magra”. Ela vivia com Bandeira há mais de dez anos e, diz ele, sempre o enganou com todo mundo. O poeta era lírico e paciente, pelo visto. Um belo dia, depois de paquerar Ribeiro Couto por um longo tempo sem que ele lhe desse a menor bola, a Magra tomou uma atitude e foi à luta. Com “sua boca muito vermelha de rouge”, escreve Bandeira, bateu à porta do romancista e atacou o incauto Couto. Estava consumado o triângulo.

Ao contrário do que se poderia esperar, Ribeiro Couto não simulou protestos indignados por conta da amizade que o unia ao poeta, e Bandeira, quando soube do caso, não lhe deu importância. Não correu nem sangue nem lágrimas e o triângulo se desfez mais adiante, sem mortos ou feridos. E a amizade entre os dois permaneceu.

Pois Ribeiro Couto era uma figura ímpar, testemunha Bandeira. Homem da cidade, diplomata, homem do mundo, era ao mesmo tempo um apaixonado pelo interior brasileiro, pelo qual chegara a manifestar certo desdém, e de onde tirou a temática de Cabocla. Tratava-se de uma mente flexível, adaptável, que elogiava em seus textos a mestiçagem da Cabocla e sua pele morena, embora Bandeira o acuse de preferir as mulheres brancas. Quando Bandeira lembrou que se contradizia, ele declarou, perplexo: o que eu tenho a ver com as preferências e gostos de meus personagens? Eis aí, era um ficcionista de verdade. Criava mundos com vida própria, que não se resumiam as suas preferências.

Por tudo isso, Manuel Bandeira dá razão à cozinheira de Ribeiro Couto, Balbina, uma preta velha e sábia. Ela costumava dizer a respeito daquele homem de letras refinado e desconcertante, seu patrão:

- Seu dotô tem outro dentro.

É assim que chegamos a mais uma figura da nossa literatura que também tinha outro dentro, como lembrou Bandeira em crônica de 1930, citando a mesma cozinheira de Ribeiro Couto, Balbina.

Trata-se de Machado de Assis, aquele homem franzino e delicado que teve o privilégio de conhecer pessoalmente e que o deixava inquieto. O menino Bandeira observava a sua casa como quem reverencia um templo e acompanhava os passeios ao final da tarde que Machado, já idoso, dava pelas calçadas do bairro, abraçado a Carolina, compondo um casal de apaixonados. Ele se encantava com aquele espetáculo de ternura, mas não deixa de observar que, “aquele Machado de Assis me inquietava. Aquela história do enfermeiro...” É fato que Machado tinha um olho voltado para o doentio, o sofrimento, a derrota. As pequenas maldades e as grandes perversões. E conclui Bandeira: “Machado de Assis era um monstro. Um monstro que não fazia mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante um monstro”.

Ou seja, voltando à cozinheira de Ribeiro Couto, Machado tinha outro dentro. Era esse outro que espionava a vida e seus semelhantes, descobria deslizes e traições, sendo ao mesmo tempo capaz de escrever uma obra-prima como o conto “Uns braços”, no qual temos uma das mais sensuais narrativas da literatura de qualquer tempo. E Bandeira arremata dizendo que nesse conto “não acontece nada”, o que, a meu ver, junto com “o outro” da cozinheira Balbina, vale por toda uma teoria literária.

Há o enfermeiro, é verdade. Mas aqueles braços...

domingo, 6 de maio de 2012

Conversa ao cair da tarde


Ao parar na esquina, ele comentou:
- Fico meio triste com esses passeios.
- Triste? Por quê?
- Sei lá. Poderia perguntar por que saio de casa, não é mesmo? Tudo que me interessa está lá. Meus discos, as fotos antigas, meus livros, meu gato. Poderia ficar em casa.
- Não tente me tapear. Sai em busca de alguma coisa que não encontra em casa.
- Pode ser. O problema é saber o que procuro.
- Não brinque. Você sabe.
- Não sei. Ou melhor, sei. Ou pouco importa. Acontece que insisto nesses passeios todo final de tarde, que é a hora em que me chateia ficar sozinho. Vou a algum restaurante, algum café, algum bar. Venho pela avenida, atravesso duas praças, sigo em frente.
- Sempre pelo mesmo caminho?
- Não. Não. A cada dia invento um roteiro diferente, embora o resultado seja o mesmo. Não tenho curiosidade pela cidade, pelas praças e ruas. Conheço tudo isso de cor e salteado. Não me interesso nem mesmo pelas árvores.
- Não se interessa? Não acredito.
- Tudo isso está aí, qualquer um pode ver. A gente não tem interesse pelo que está aí. O que nos interessa são coisas que não estão aí.
- Entendo.
- Não sei se você entende. É difícil entender e, pior ainda, explicar. Naquela esquina ali, por exemplo...
- O que havia ali?
- O que falta ali, seria melhor dizer.
- Perfeito.
- Nós saíamos do colégio, atravessávamos o Passeio e vínhamos correndo nessa direção, pois naquela idade a gente não andava, corria. Aqui na praça a gente se jogava no chão, arfando e dando gargalhadas. Havia uma menina, Lídia ou Lígia, já não lembro, que chegava sempre ensolarada, quase vermelha, cabelos alvoroçados. Era linda.
- Sua namorada?
- Infelizmente, não. Namorada do Teixeira. Quer dizer, fui trocado por um sujeito chamado Teixeira! Que fracasso! E havia também o Marcos, o Luiz, a Amélia, a Neusa, dependia do dia.
- Eis o que falta, então.
- E é por isso que essas caminhadas são inúteis. Vejo a rua, as praças, mas nenhum deles está aqui.
- Morreram?
- Não. Nem sei. E não importa. Estão em outros lugares, com o tempo a vida vai espalhando cada um para um canto. Os amigos mudam de cidade ou de país. As mulheres se casam com sujeitos com nomes estranhos e nunca sabemos onde foram parar. É isso, eu acho.
- Convenhamos, não é tão triste.
- É verdade, eu exagero um pouco. Mas gostaria de encontrar essas pessoas, compreende? Por isso insisto nos passeios. Encontrar a turma da faculdade, a turma do primeiro jornal mimeografado, do primeiro show de bossa nova. Da primeira passeata, da primeira greve. Do primeiro lança-perfume. Do boteco em frente à faculdade. É isso. De que me interessam essas ruas e praças? Não servem para nada!
- Não exagere. Não acredito que você pense assim.
- Pois acredite.
Foi quando, já na porta do restaurante do qual se aproximava, um garçom o cumprimentou educadamente e perguntou:
- Mesa só para o senhor ou espera alguém?
- Só para mim. Estou sozinho.
E ele entrou no restaurante sorrindo, pois lá na segunda mesa não estava Isadora. Mas só ele sabia disso.