terça-feira, 31 de julho de 2012

Enigmas capilares no Planalto





Há coisas que eu não entendo. Uma delas: a quadratura do círculo. Outra: o bóson de Higgs. Não estou só, ainda bem.
Agora devo acrescentar à lista acima as declarações de cabeleireiros. Saiu nos jornais por esses dias que, em seu passeio por Londres, dona Dilma circula com novo visual. Acho difícil, mas tudo bem. O que me deixou estarrecido foi a explicação do cabeleireiro da madame, Celso Kamura. Literalmente:
“Queríamos um penteado mais prático. Tirei o volume da nuca para facilitar o trabalho dela no dia a dia”.
Desde que li essa enigmática declaração, não paro de me perguntar, atônito: que diabos terá o “volume na nuca” com o trabalho da primeira mandatária?
O bóson de Higgs perdeu o segundo lugar.

domingo, 29 de julho de 2012

Não faça nada e, então, faça tudo - ócio e criatividade




Muito antes de ler o livro de Domenico de Masi, O ócio criativo, eu já estava convencido de que as grandes criações literárias ou filosóficas, científicas ou sociais, tecnológicas ou artísticas, nasceram da mais generosa vagabundagem.
Há um exemplo anedótico que vale a pena citar. O caso da maçã que teria caído na cabeça de Isaak Newton, o que lhe sugeriu a ideia da gravitação universal. A história é fantasiosa, é claro. Mas é perfeita. Mais do que assinalar a maneira como Newton descobriu a gravitação, apresenta uma verdade definitiva: só no ócio o ser humano faz o melhor.
Os gregos sabiam disso. É claro que, vivendo numa sociedade escravocrata, usaram a necessidade de ócio para justificar a escravidão. Alegavam existir homens feitos para o trabalho servil e homens feitos para as grandes aventuras do espírito – eles, os gregos, é claro. Como no caso da maçã, há aí um equívoco. Mas há também um acerto notável: é no ócio que os homens criam.
Quando, em 1918, dez anos antes de escrever Macunaíma, Mário de Andrade escreveu o artigo A divina preguiça, publicado no jornal paulistano A Gazeta, ele acertou na mosca: a preguiça era o móvel da cultura e da civilização. Em 1928, Macunaíma proclamaria: ai que preguiça! Tornava-se possível o Brasil moderno.
Suspeito ser esse um dos temas centrais do livro de João-Francisco Duarte Jr., A montanha e o videogameescritos sobre educação (Papirus, Campinas, 2010), que li quando do lançamento, mas sobre o qual, por preguiça, só agora escrevo.
Sendo professor universitário conhecido por suas reflexões a respeito da arte, João-Francisco fica furioso com os burocratas que avaliam a produção acadêmica como se contassem sacas de arroz. Tantas sacas, tantos pontos. Ele está convencido de que essa produção acadêmica incentivada pelos burocratas do MEC produziu apenas num gasto assustador de papel e tinta nas tais revistas indexadas, onde encontramos raríssimas ideias novas, nenhum desafio, novidade alguma. De resto, ninguém as lê. São escritos sobre o mesmo – tanto que os tais artigos citam textos e autores com abundância e, não raro, resultam em meras colagens que se destinam apenas a marcar um ponto no currículo. Escritos circulares, terminam no ponto que em se estava ao começar. Qualquer professor universitário conhece pelo menos meia dúzia desses acadêmicos que reescrevem o mesmo artigo dezenas de vezes, mudando apenas o título, o primeiro e o último parágrafos, quando muito redistribuindo o texto do miolo em nova ordem.
No hilário ensaio que fecha o livro, The rotten papers (ou Adiós que yo me voy), João-Francisco lembra que, diante de um livro publicado, os avaliadores de currículos acadêmicos torcem o nariz. O que conta para eles são os pontos que rendem os artigos publicados em revistas indexadas. Um deles chegou a sugerir em palestra pública que, ao invés de livros, fossem publicados os capítulos separadamente, como artigos. Talvez cada capítulo rendesse dois artigos, sugeriu o burocrata infame, fazendo cara de sabido. Isso renderia um bom número de pontos, sugeriam seus olhos espertos.
Essa obsessão com o mensurável é a origem do desastre que assistimos na produção acadêmica. Coagidos por um sistema quantitativo e punitivo, que os obriga a produzir artigos a cada três meses e a fazerem pose de cientistas – o que de fato não são – seus autores nada criam, não inventam novas formas de nuvens e nem sabem dedilhar a melodia que canta o sabiá.
Os leitores já viram sabiá com partitura? Já toparam com duas nuvens iguais? Acaso algum cientista ou filósofo inovador escreve artigos a cada três meses? Henri Bergson publicou livros com intervalos de sete a doze anos – em 45 anos publicou sete obras, uma a cada seis anos e meio – e achava que escrevia demais.
Portanto, nossas homenagens à preguiça, ao ócio, à desocupação de nossas mentes. Camus dizia que era preciso imaginar Sísifo feliz. Eu digo: é preciso imaginar que Newton se espreguiçava debaixo de uma árvore quando lhe caiu uma maçã na cabeça, o que o levou à teoria da gravitação universal.

terça-feira, 17 de julho de 2012

O bóson de todos nós


Eis que o mundinho no qual vivemos, tão repetitivo e triste, nos reservou uma surpresa. Fomos embalados pelo bóson de Higgs, que nenhum de nós sabe muito bem o que é, mas que acende a imaginação de todos.
Faz bem sabermos que existem no mundo acontecimentos que não decorrem apenas da ganância, da violência, da roubalheira. Tomamos conhecimento de cientistas que gastam seu tempo e seus neurônios na busca de explicações para a formação e constituição do universo.
Acontece que tais explicações lembram um comentário de um amigo meu, Antonio Manoel dos Santos Silva, craque sabedor de todas as literaturas. Há alguns anos, conversando com professores da área de física após um jantar e bons vinhos, ele anunciou que eles, os físicos, e não os cultivadores dessa flor esquisita chamada literatura, são os verdadeiros ficcionistas.
A reação bem humorada dos físicos mostrou que são inteligentes: concordaram com o comentário.
Desde então penso que as teorias da física sobre o universo são algo próximo da fantasia desenfreada ou da poesia mais delirante.
Outro amigo, André Ambrósio, que é do ramo, me mandou uns links a respeito do tal bóson. Como eu já estava fisgado pelo assunto, sai de click em click a ler textos, assistir vídeos, entrevistas com professores e ganhadores de prêmio Nobel. Andei de um lado para outro, feliz da vida, maravilhado, mas devo confessar: entendi muito não. É verdade que saí da incursão por tão sapientes textos e vídeos, um pouco menos ignorante a respeito das teorias físicas. Mas não muito.
Fiquei pensando nas suposições do Modelo Padrão da física e, aos poucos, na medida em que ia até a cozinha tomar um cafezinho, acendia um cigarro, andava de um lado para outro, comecei a sentir certo incômodo.
O átomo, como sabemos, é ideia antiga e meramente especulativa. Foi colocada em circulação pelo pensador grego Demócrito, que viveu lá pelo século IV aC. Como sou meio óbvio nessas coisas, guardei que o átomo é, por definição e etimologia, indivisível. Pois no mundo em que vivemos, que explodiu tantas bombas, cidades e torres gêmeas, também explodiram com o átomo, que agora tem vários componentes, três deles já nossos conhecidos dos tempos de escola: elétrons, prótons e nêutrons.
Daí vem a primeira dificuldade que me faz lembrar a irritação de um professor de filosofia, aristotélico ortodoxo, que decretava: “se dividiram, não era o átomo”.
Pode ser uma dessas questões apenas semânticas, como dizem os especialistas. Acontece que temos sido apresentados a outras partículas atômicas: pósitron, neutrino, méson, fóton etc. Toda a questão, portanto, parece se resumir ao seguinte: donde surge a massa no universo?
Daí, o bóson. Alguém tinha que resolver o problema e trabalhar pesado, ao invés dos outros elementos, que aparentemente só se dedicavam ao agito eletromagnético. O bóson cria a massa. Só faltava ele existir, o que era duvidoso e levou o físico Stephen Hawking a apostar 100 dólares que jamais seria detectado. Stephen terá que colocar a mão no bolso. E talvez Higgs receba o Nobel, com o que deixará de ter problemas em colocar a mão no bolso.
Mas onde ficamos? Bom, após outros cafezinhos, fiquei pensando naquele momento, um milionésimo de segundo antes do big-bang, em que, em meio a uma nuvem de flutuações energéticas, súbito um bóson, insatisfeito com o vazio em que se encontrava, criou a massa.
Isso talvez resolva o problema dos físicos e de seus modelos. Mas não resolvem o meu problema, que é outro. Fico pensando: por que diabos, do nada – supõe-se que antes seria o nada – uma partícula decide criar massa?
Fui à janela e fiquei olhando a miríade de átomos e bóson e elétrons que formam as ruas, os prédios, as outras janelas da cidade, a chuva que cai desde o amanhecer, e não encontrei resposta. Ou encontrei uma, que não é das piores: as especulações dos físicos nos dão grande prazer intelectual e aguçam nossa curiosidade, mas não explicam o que faço eu aqui, nessa janela, ao mesmo tempo parte e observador desse tumulto atômico. Não explicam, mas sugerem Louis Armstrong cantando: “what a wonderful world”.
Lá isso é. Belo mundo. Belas teorias. Quase poemas.

sábado, 14 de julho de 2012

Dilma e a arte da mentira na política




Os políticos fazem da mentira uma rotina de vida. Uma tática e um direito dos governantes. Acredito que alguns deles, após tanta malandragem, acabam se convencendo de que estão agindo da forma mais correta possível, cumprindo seu papel de condutores dos povos, o que exige valores e comportamentos diversos daqueles que cabem ao comum dos mortais. Ao dirigente é legítimo guardar segredos sobre assuntos de interesse público, escamotear a verdade, omitir fatos, dizer que não sabia de nada. Enfim, mentir descaradamente, o que seria uma exigência de suas altas funções.
A mentira sempre existiu na vida política, mas só era apresentada como justificável quando se tratasse de efetivos interesses de estado, sobretudo durante as guerras. Para não entregar informações valiosas aos inimigos, era legítimo mentir. Mentem – é a teoria expressa em filosofia política – em benefício dos altos interesses do Estado.
No entanto, a mentira – insidiosa como sempre presente – se metamorfoseou em coisa que pode ser usada em todos os níveis do poder e em todas as situações políticas. Seja para proteger apaniguados, aloprados ou partidários pegos com a boca na botija, seja para escamotear dados, ocultar informações ou fazer teatro para ocultar problemas sérios em favor de questiúnculas secundárias.
No dia doze passado, a presidente Dilma, aproveitou sua fala na 9ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente para defender que a grandeza de uma nação é medida pelo que faz por suas crianças e adolescentes e não pelo Produto Interno Bruto (PIB). Uma argumentação aparentemente muito sensata e defensável, não fosse um truque marqueteiro.
A presidente na verdade está com um problema entalado na garganta. A economia brasileira cresceu apenas 0,2% no primeiro trimestre. Foi essa onipresente e pantagruélica figura da macroeconomia, que levou Dilma à peroração em favor de outros objetivos e outras formas de se medir a atuação do governo, no caso, o cuidado com a juventude e a infância.
Trata-se portanto de cortina de fumaça, má-fé, malandragem, pois o constante – e isso vale para todos os governantes em momentos de ventos a favor – é os políticos, a cada anúncio de índices favoráveis, seja o PIB, algum índice de agência internacional, dados de pesquisa favorável, nota do risco do país, inflação etc., se vangloriarem, mesmo quando eles em nada contribuíram para tais índices favoráveis e que, de resto, são bastante questionáveis.
Esse jogo de espelhos entre governantes e governados é, além de eticamente detestável, politicamente deseducativo. Trata-se da trapaça erigida em grande lance de sabedoria política.
O fato é que, nas escolas, creches, bibliotecas, hospitais, postos de saúde, crianças, adolescentes seguem desrespeitados por atendimento de quinta categoria. A argumentação de Dilma é pura fumaça e não está ligada a políticas efetivas colocadas em movimento pelo seu governo.
Desta forma, o que vale num momento, não vale em outro. O que é principal num caso, não é no outro. Isso se chama manipulação. Palavras de conveniência. Em resumo, mentira.
E nós, o povo, aqui com cara de palhaço.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Fábula muito pelo avesso


Apófelis Caldus, o erudito professor, falava diante de uma plateia inquieta e atenta:

- Sempre achei injusto o modo como são referidos os animais nas fábulas, disse ele, disparando olhares laterais que mostravam sua contrariedade. – Não raro são apresentados como inúteis, nada inteligentes, trapalhões, Não há defeito que não possa ser representado por um animal. Os homens sofrem com seus próprios defeitos e os atribuem aos animais. Eles é que seriam preguiçosos, vadios. Estão aqui os gatos e os cachorros que não me deixam mentir!

Apófelis, é claro, é uma tartaruga sapientíssima. De idade indefinida, mas avantajada, tem um ar cansado de tartaruga, mas, se lhe dão a palavra, é capaz de discursar durante horas com habilidade e entusiasmo.

A sua frente está uma audiência não menos importante. Coelhos, ratos, jacarés, jumentos, cavalos, abelhas, mosquitos. Acotovelados ao longo da clareira, ouvem com atenção e, a cada frase de Apófelis, fazem comentários ruidosos.

- Vejam que – continuou o orador – tudo quanto for de qualidade ruim as fábulas humanas transferem para um animal. Por exemplo...

O burro, Trancado Távora de batismo, sentado na segunda fila, cutucou o cachorro a seu lado e comentou:

- Vai sobrar pra mim.

O cachorro sorriu. Apófelis continuou, como se não tivesse ouvido o comentário:

- Vejam o caso do burro.

- Não disse? – e Trancado Távora suspirou resignado.

- O burro – Apófelis espichou o pescoço enrugado e velho – tem sido um injustiçado, tanto que seu nome, burro, passou para a linguagem corrente como sinônimo de pouco inteligente ou mesmo de nada inteligente. Um zero à esquerda. Nada mais injusto. Um burro pode ser tão inteligente quanto a mais sábia das tartarugas!

Os aplausos foram entusiásticos, pois a turma gosta de retórica. Aproveitando o tumulto, o gorila deu um soco amigável – cerca de 300HP de força bruta – nas costas do burro e comemorou:

- Esse Apófelis sabe mesmo falar bonito! Te livrou a cara, Trancado!

O burro esparramou-se no chão com a pancada.

- Gostaria de finalizar... – continuou Apófelis, batendo as patinhas pedindo silêncio.

Mas não finalizou. Ao menos não naquele momento e não com o golpe retórico que desejava. É que se levantou na plateia o gambá, abrindo uma clareira de uns dez metros devido à fedentina miserável que é capaz de espalhar.

- Questão de ordem! – pediu o gambá.

Ouve certo tumulto, pois ninguém se atrevera, em todos aqueles anos, a interromper os discursos de Apófelis, a tartaruga sábia.

- Pois não, disse educadamente Apófelis. Vamos ouvir Miosótis.

Miosótis, isso mesmo, Miosótis Flores, nome pelo qual era conhecido o gambá em questão. Como é próprio dos gambás, façam ou não parte de fábulas humanas, ele deu uma baforada de maus bofes, empestou os ares em volta e mandou:

- Apófelis defende o burro, mas não defende o gambá. Apófelis procede mal. Talvez esteja agindo como aqueles a quem deseja criticar.

Pela frase se via que Miosótis Flores também conhecia alguns truques de retórica. A plateia emudeceu, a foca deixou de buzinar, a borboleta silenciou suas asas, pois mesmo elas seriam ouvidas no silêncio que tomou conta da clareira. Apenas o gorila, passados alguns segundos, se manifestou, batucando no peito, eufórico:

- Vai pegar fogo! Agora é que eu quero ver!

E disse Miosótis Flores:

- Há até mesmo fábulas nas quais burros são heróis e tartarugas são inteligentes.

A gargalhada foi geral, inclusive por parte de Apófelis, que, tendo humor, jamais perde a linha.

- Eu quero ver é uma fábula em que o gambá não seja fedido, desafiou Miosótis.

O silêncio tornou-se constrangedor. Aflito, o leãozinho – Mimoso de apelido – berrou lá da primeira fila, querendo apaziguar os ânimos:

- Calma, gente, somos todos iguais. Todos os animais foram feitos a imagem e semelhança de meu pai.

Foi quando, esquecida a retórica, a pancadaria se generalizou.