segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Cinquenta tons – sexo miúdo e literatura medíocre




Como todos sabem, no momento uma equipe numerosa de redatores está produzindo a toque de caixa novos “romances”  “Cinquenta tons de...”. Tentando colaborar com essa série, que é uma espécie de sadomasoquismo para dondocas mimadas e frequentadoras de shoppings com carência sexual, forneço aqui alguns títulos e argumentos que poderão ser explorados livremente. Os redatores podem usar e abusar. Abusar, entenderam?

Lá vai:


Título: Cinquenta e um tons de caninha da boa
Argumento: Um não-intelectual de meia idade seduz uma dondoca de família tradicional e faz com que ela abandone a champanhe francesa pelos prazeres da caninha da boa. Ela sofre pacas, mas, como o livro é de sadomasoquismo, sente imenso prazer.

Titulo: Cinquenta tons de manchas cinzas
Argumento: Jovenzinha de tradicional família é atraída para um motel por um lutador de jiu-jitsu. Após ser coberta de tapas e beijos desferidos pelo seu raptor, ela aparece no shopping coberta de manchas cinza, deixando as amigas atônitas. Daí resultou o look fashion da coleção “Cinza e feliz”. O máximo!

Título: Cinquenta tons de tintura cinza para cabelos rebeldes
Argumento: Orientada pelo seu namorado, o sub-intelectual milionário Revolt Bill, a dondoca boboca deixa de pintar os cabelos. O cinza tomou conta de sua cabeça em tons diversos. A dondoca sofreu muito. Mas, tratando-se de sadomasoquismo etc., também gozou muito.

Título: Cinquenta tons de uma vida sexual desinteressante
Argumento: Jovem senhora, voltando de férias em Cancun, é obrigada por assaltantes contratados pelo bilionário intelectual McGranna, a assistir dez horas de filmagens dos melhores momentos de sua vida sexual. Todos, exceto a jovem senhora, dormem depois de quinze minutos de projeção. Ela, acordada, sofre. Mas goza.

Título: Cinquenta tons de massa cinzenta sem uso
Argumento: Jovem moçoila se esforça, mas não consegue entender o que o multibilionário intelectual que encontrou por acaso lhe explica sobre Wittgenstein. É quando ela exclama: “Não entendo nada! Que sofrimento!” E ele: “Chegamos onde eu queria...”

Em tempo: quem quiser saborear literatura erótica de primeira, leia os livros de Hilda Hilst. Quem quiser safadeza da grossa e divertida, leia Adelaide Carraro. Sem falar no pai de todos, Marquês de Sade. O resto é cinza.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

domingo, 21 de outubro de 2012

O outro homem nu




Adalberto calculava o imposto de renda de um cliente quando ouviu um alarido crescer pelo corredor. Saltou da cadeira, abriu a porta do escritório e deu com dona Doralice, sua secretária, aos berros:
- Tem um homem nu na escada, seu Adalberto!
- Por favor, dona Doralice, acalme-se. Homem nu é em outro texto e de outro autor. Aqui não tem homem nu.
- Como que não tem!? – Doralice estava siderada – Abra a porta e veja.
Adalberto abriu a porta e viu o corredor vazio.
- Não tem ninguém no corredor, Doralice.
- Meu Deus, disse ela. Eu vi!
Foi quando Adalberto olhou pela janela. Não viu homem nu algum, mas lá na rua havia uma correria exagerada. O pipoqueiro largou o carrinho e atravessou a rua. Um guarda avançou pela calçada oposta, a mão na cintura, pronto a sacar a arma. Em cada porta de loja, dois ou três curiosos espiando.
Por via das dúvidas, Adalberto abriu a porta e tornou a examinar o corredor. Foi quando o homem nu emergiu da escada. Adalberto foi empurrado por ele, que invadiu o escritório, aos berros:
- Por favor! Por São Francisco! Preciso me esconder aqui!
O homem nu saltou por cima do sofá e se escondeu atrás da mesa.
- O senhor pode me explicar...
- Querem me matar, disse o homem, levantando-se por detrás da mesa.
Dona Doralice deu um grito, cobrindo a boca com a mão e arregalando os olhos, escandalizada. Adalberto pensou que era estranho. Sempre que uma mulher é surpreendida por um homem nu ela coloca a mão na boca e arregala os olhos. Não seria o caso de fechar a boca e colocar a mão nos olhos?
- Me explique o que está acontecendo, exigiu Adalberto. Mas se abaixe atrás da mesa para não assustar dona Doralice.
O homem explicou que estava no prédio ao lado, num apartamento do segundo andar, quando o marido apareceu.
- Marido?
- O marido da Cotinha, meu senhor. Ele disse a ela que ia viajar.
- Conheço essa história, disse Adalberto. Agora é um conto. E de outro autor.
- Pois é.
O marido entrou no apartamento com o revólver em punho. Só não o atingiu porque era ruim de pontaria. Foi quando ele saiu correndo porta afora, nu daquele jeito, que fazer? Quando chegou à rua, causou tamanho escândalo que resolveu entrar nesse prédio – o seu, queriam me linchar.
- E agora? – o homem, aflito, se pôs de pé e dona Doralice soltou um gritinho, a mão na boca, os olhos arregalados.
- Calma, pediu Adalberto, calma. Já não basta a má fama desse prédio, agora me aparece um sujeito pelado.
Bateram na porta. Adalberto mandou o sujeito se esconder no banheiro, abriu a porta. Dois policiais. Um deles perguntou: um homem nu entrou aqui? Não, disse ele. Virou-se para o interior do escritório: A senhora viu algum homem nu, dona Doralice?
- Deus me livre e guarde!
Os três andares do prédio, incluindo-se o bar e o inferninho que funcionam no térreo foram vasculhados. Nada. Quando a polícia desistiu e aconselhou o marido traído a sumir com aquele revólver, Adalberto tirou as calças e as entregou ao homem. Catou uma camiseta que era usada como pano de chão e o homem se vestiu. Dona Doralice suspirou aliviada e os dois, disfarçados de casal, saíram abraçados, sem que a turma que ainda se juntava na rua desconfiasse.
Adalberto telefonou para a mulher e pediu que lhe trouxesse uma calça.
- Como assim? – gritou ela. E a sua calça?
- Já te explico, não complica. Senão vira uma novela de outro escritor. Traz a calça.
Dona Doralice faltou ao trabalho no dia seguinte. Entendesse, telefonou ela, levei um choque. No segundo dia apareceu sorridente, abraçada ao sujeito que, de roupa nova, nem parecia o mesmo pelado que invadira o escritório. Devolveram a calça ao Adalberto e dona Doralice pediu só mais aquela tarde de folga. Entendesse.
Adalberto entendeu.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Corrigindo



 
Paulo Colina
Takuboku Ishikawa
No texto que postei anteriormente, A Monteiro o que é de Lobato (07/10), ao falar do poeta Paulo Colina, informei que ele traduziu Bashô.

Errei. Como se sabe, a memória é amiga traiçoeira.
Na verdade Colina traduziu, juntamente com Masuo Yamaki, poemas de Takuboku Ishikawa, reunidos na soberba coletânea Tankas, publicada por Roswitha Kempf Editores, São Paulo, Brasil, 1985.

Perdão pelo equívoco. Prometo nunca mais confiar só na memória.


domingo, 7 de outubro de 2012

A Monteiro o que é de Lobato





Participei cerca ocasião de uma mesa redonda numa rádio na qual se discutiu a respeito de literatura e hábitos de leitura. Entre os que lá estavam, havia uma professora de literatura inglesa cujo nome esqueci, o que não me faz falta. Lá pelas tantas, como o assunto chegasse à literatura infantil, ela citou autores de língua inglesa que deveriam ser lidos nas escolas.
Ninguém discordou, mas todos nós lembramos de autores brasileiros que deveriam fazer parte da dieta literária dos jovens estudantes. Citamos vários escritores, entre eles Monteiro Lobato, como seria óbvio.
A professora reagiu. Disse que não gostava de Lobato e resmungou:
- Não entendo por que ele insiste em chamar Tia Nastácia de negra.
Interferi na hora:
- Talvez pelo fato de ela ser negra...
Fui olhado com espanto e algum ódio por uns instantes e, como a coisa poderia desandar – estávamos no ar – trocou-se de assunto.
Agora, quando se discute no Ministério da Educação se Monteiro Lobato deve ser banido das bibliotecas escolares acusado de racismo, lembrei-me dessa professora. Sei, é claro, que o Brasil é o país das polêmicas inúteis. Das polêmicas rasteiras e vazias, movidas por desinformação e essa tolice que se chama de politicamente correto – ou por puros oportunismos partidários. Por isso resisti a escrever a respeito, imaginando que, diante de tantos problemas sérios que temos a resolver, essa bobagem sumisse do cenário em no máximo uma semana. Não sumiu.
Então, vamos lá. Há na história do Brasil várias figuras públicas ilustres que foram ou tangenciaram alguma forma de racismo. Aliás, desde sempre o racismo esteve presente em nossa história, sendo que no século XIX e início do XX alcançou um sucesso enorme, quando era qualificado de “científico”. Deixo de citar tais autores brasileiros com traços racistas – temendo que venham a ser perseguidos por alguma ong de plantão – e dou como exemplo um autor estrangeiro. Que se leia Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss – uma obra monumental e definitiva – e encontraremos aqui e ali rastilhos de preconceito contra portugueses e negros e índios. Ora, apesar de sua genialidade, Lévi-Strauss era um francês, um homem mergulhado numa cultura europeia tradicional.
No entanto, esses traços preconceituosos não diminuem em nada o caráter monumental de sua obra. Não deixam nela nenhuma nódoa.
Todos nós somos de alguma forma marcados por expressões, palavras, ideias que, lá no fundo, escondem as circunstâncias ideológicas da época em que vivemos. Ninguém escapa. Tomei o exemplo de Lévi-Strauss, como poderia citar outros, como Franz Boas ou Edgar Rice Burroughs, o autor das histórias de Tarzan, nitidamente marcadas por preconceitos colonialistas da era do império inglês, no qual o sol não se punha. E, se não nos limitarmos a ler bobagens politicamente corretas, encontraremos em inúmeros textos, de cientistas ou de escritores, brasileiros ou não, sinais de restrições ao diferente – seja em raça, em cultura, em comportamentos etc.
Há uma frase de Dostoievski, no romance O Jogador, que me parece exemplar. Lá pelas tantas surge num cassino um sujeito posudo dizendo-se conde. Dostoievski registra: “Bom, todo polaco é um conde quando em viagem.”
Nas acusações contra Lobato, a coisa me parece mais grave, pois de sua obra não resulta o racismo. Tia Nastásia é uma personagem admirável, deliciosa, bem como o Barnabé, também negro. E o Saci é um moleque inteligente e espertíssimo. Além disso, quando chama de negra ou de negro uma personagem, isso quer dizer apenas isso: trata-se de um negro. O eugenismo de Lobato não distorce sua ficção. Lembro a propósito um grande amigo, infelizmente falecido muito jovem, Paulo Colina – poeta, contista, tradutor de Bashô, figura notável. E negro. Daqueles retintos. Quando nos encontrávamos, ele me dava um abraço gigantesco e dizia, com a sua voz rouca de cantor de blues:
- Vamos ali no Redondo tomar uma cervejota com o negão.
Colina era, em São Paulo, um respeitado ativista dos direitos dos negros.
Mas os tempos eram inteligentes. Jamais alguém imaginaria reescrever Lobato ou redigir notas para que os jovens lessem “da maneira certa” os seus livros. Os censores, durante a ditadura militar, é que achavam que há uma maneira “certa” de ler um livro – ou que o “certo” é não ler um livro. Eram sujeitos de uma burrice avassaladora. Um deles mandou prender Sófocles, por achar que aquela peça, Édipo, entre outras coisas, era um incentivo ao incesto. Politicamente correto, ele.