sábado, 25 de maio de 2013

Pablo Neruda e os Poemas de Amor



Referindo-se aos Vinte poemas de amor e uma Canção desesperada, de onde retirei o poema abaixo, disse Pablo Neruda: é “livro doloroso e pastoril que contém minhas mais atormentadas paixões adolescentes, misturadas com a natureza envolvente do Sul da minha pátria”. Livro feito de melancolia e prazer de viver, nele estão “as ruas estudantis, a universidade, o cheiro de madressilva do amor compartilhado”.
Cito o poema original e a tradução de Domingos Carvalho da Silva, poeta nascido em Portugal, que veio para o Brasil aos nove anos e se tornou brasileiro por inteiro.
Quem leu esses poemas pela primeira vez quando tinha dezessete anos ficou marcado pela vida inteira. Pensa neles sempre e os relê como se hoje fosse pela primeira vez.



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Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
te pareces al mundo en tu actitud de entrega.
Mi cuerpo de labriego salvaje te socava
y hace saltar el hijo del fondo de la tierra.

Fuí solo como un túnel. De mí huían los pájaros,
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como un arma,
como una flecha en mi arco, como uma piedra en mi honda

Pero cae la hora de la venganza, y te amo,
Cuerpo de piel, de musgo, de leche ávida y firme.
Ah los vasos del pecho! Ah los ojos de ausencia!
Ah las rosas del pubis! Ah tu voz lenta y triste!

Cuerpo de mujer mia, persistiré en tu gracia.
Mi sed, mi ansia sin límite, mi caminho indeciso!
Obscuros cauces donde la sed eterna sigue,
y la fadiga sigue, y el dolor infinito.



1

Corpo de mulher, alvas colinas, coxas brancas,      
ao mundo te assemelhas em teu ato de entrega.
O meu corpo selvagem de camponês te escava
e faz saltar o filho das entranhas da terra.

Fui um túnel vazio. De mim fugiam pássaros
e a noite me infiltrava sua invasão resoluta.
Para sobreviver forjei-te qual uma arma,
uma flecha em meu arco de pedra em minha funda.

Tomba porém a hora da vingança e eu te amo.
Corpo de pele e musgo, de leite ávido e firme.
Ah os vasos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah tua voz lenta e triste!

Corpo de mulher minha, persisto em tua graça.
Minha ânsia sem limites, meu caminho indeciso!
Sulcos escuros onde a sede eterna corre,
onde a fadiga corre, e a dor, este infinito.




sábado, 18 de maio de 2013

Pardal Mallet, você conhece?



Pardal mallet.gif


André Seffrin, na apresentação cheia de picardia (Pardal Mallet, edição ABL, 2012), é o primeiro a advertir: “ao contrário do que se imagina não é pseudônimo”.
Figura curiosa, jornalista e escritor, polemista e ativista político, chamava-se João Carlos de Medeiros Pardal Mallet. Autor de romances, contos, ensaios e de uma vasta colaboração na imprensa. Nascido em Bagé, 1864.
Pardal faz parte de um grupo de intelectuais que merece ser melhor conhecido. Após o Modernismo certas figuras das gerações anteriores sofreram um apagão na memória nacional. Muitos deles, derrubados pelos novos ventos literários, viram esquecidos seus feitos culturais e políticos, em particular suas lutas jornalísticas e panfletárias, nesse período em que finda a escravidão e morre o Império e nasce a República.
Seus companheiros eram da melhor safra. Olavo Bilac, Aluísio Azevedo, Coelho Neto, Pedro Rabelo, Raul Pompéia. O que não impediu que entre eles trocassem farpas, chegando ao episódio do duelo brancaleônico entre Pardal Mallet e Olavo Bilac. Após passarem a noite juntos, bebendo e fumando, na casa de Bilac, foram duelar. O fiasco foi monumental. Bilac acertou uma estocada e se lançou sobre o amigo, aos prantos. Chamou um médico. O ferimento, no entanto, fora leve.
Pardal Mallet fazia um jornalismo furioso, denunciador. Combateu a favor do divórcio e contra os desvirtuamentos dos ideais republicanos. Sobretudo contra o espírito conservador da época. No livro organizado por Seffrin há um texto de Mallet que é uma preciosidade: “Pelo divórcio!”.
Seffrin lembra que Medeiros e Albuquerque critica no jornalismo de Mallet a “grande dose de fantasia com que se fazia a imprensa na época”, num episódio, aliás, que envolve uma molecagem que cometeu junto com Olavo Bilac. Hoje, a julgar pelo jornalismo despido de fantasia e de combate que nos cerca, isso pode ser um grande elogio.
Acontece que Medeiros e Albuquerque – autor de um livro de memórias notável, “Quando eu era vivo” – era florianista convicto, enquanto que Mallet escreveu páginas ferozes contra Floriano a quem chamava de “Ahasverus da desgraça desta pátria”.
Briga feia. Mallet, por ordens de Floriano, foi deportado para a Amazônia.
Mas Medeiros e Albuquerque faz de Mallet um retrato simpático:

“Um rapaz bonito. Fino, elegante, usando sempre uma gravata vermelha, das gravatas em grande laço, – o laço em borboleta – como foi outrora a moda dos pintores, ele tinha o tipo que convencionalmente se atribui ao d’Artagnan de Alexandre Dumas: um fino bigode e um pequeno cavanhaque.”

Por detrás da figura pitoresca de um d’Artagnan, no entanto, havia um jornalista vibrante, um polemista que enfrentava os poderosos sem medo, um agitador cultural da melhor espécie e um escritor que vale a pena ler.
O livro organizado por André Seffrin – com uma picardia que agradaria a Pardal Mallet – nos ajuda a recuperar essa fatia agitada da história política e cultural do Brasil.

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 Abaixo, acrescento outras artes de Pardal Mallet:

Filho e neto de marechais, Pardal saiu-se um boêmio e anarquista. Aliás, cabe fazer uma história de filhos de militares. É uma turma da fuzarca, que costuma – como Freud se deliciaria em explicar – ser o avesso do avesso do avesso.
Quando Medeiros e Albuquerque acusou Pardal Mallet de praticar um jornalismo fantasista, se referia precisamente a um episódio que envolve Olavo Bilac, outro que adorava gaiatices, para usarmos uma palavra da época. Ocorre que os dois estavam discutindo numa confeitaria alguma questão literária, sendo que cada um deles atribuía a autoria de um texto a autores diferentes. Teimosos e sem saída para o imbróglio, fizeram uma aposta. Se Bilac perdesse deveria escrever um artigo contra o barão de Paranapiacaba (que Bilac chamava de “Barão-de-nunca-mais-se-acaba”). Fosse Pardal o perdedor, deveria escrever contra o tenente Vinhaes, que havia abandonado a política e ocupava altos cargos na Marinha. Diga-se que nenhum dos dois tinha nada a ver com a questão.
Pois Pardal perdeu e teve que escrever um artigo demolindo Vinhaes, que ficou assombrado, pois era amigo de Pardal, que tinha por ele sincera admiração. Mas aposta era aposta e a imprensa serviu para essa molecagem.

Para avaliarmos o espírito ao mesmo tempo crítico e farrista de Pardal Mallet, vale lembrar outro episódio narrado por Medeiros e Albuquerque.
Medeiros havia publicado em jornal um poema do qual faziam parte esses versos:

Eis o mimoso cálix deste verde
e rutilante e vívido absinto”.

Mallet não perdeu tempo. Procurou o poeta na rua do Ouvidor e o chamou às falas. Cito:

“- Tu já bebeste absinto?
- Nunca.
- Tu já viste absinto?
- Muitas vezes, nas confeitarias e casas de bebidas.
- E sabes como é que ele se bebe?
- É boa – exclamei eu, admirado com a pergunta: - Enche-se um cálix e bebe-se. Como há de ser senão assim?”

Pardal soltou uma gargalhada e o levou a uma confeitaria, onde preparou um copo de absinto, pondo a água necessária e pingando a famosa bebida sobre um pedaço de açúcar. Mandou que bebesse.
Foi quando Medeiros e Albuquerque descobriu que a beberagem tinha cor de água com sabão e gosto insuportável.
Pardal Mallet, como em tudo que fazia, se divertiu como nunca.



sábado, 11 de maio de 2013

Três haikais





Cirurgia plástica

Agora feliz,
a dondoca empina
o novo nariz.



O Poeta

F. Pessoa
recria as lágrimas
do mar português



Minhoca

Pobre minhoca
Quem sabe onde está
sua piroca?





sábado, 4 de maio de 2013

À maneira das fábulas





Conta-se que certa vez um filósofo disse a um aluno tido como muito estudioso e obediente:
- Observe.
O aluno se colocou em postura de observador, rastreou as redondezas com um olhar de investigação, e ficou assim por algum tempo, estático e perplexo, até que superou o medo de fazer a pergunta que lhe perturbava a mente:
- Observar o quê, senhor?
O filósofo aplaudiu:
- Muito bem, é preciso ter algo a observar.
- Sim, senhor. Mas, há tantas coisas a minha volta – o aluno percorreu com um gesto o campo em frente, vários grupos de árvores, uma casa modesta, um riachinho que passava ao fundo do vale, animais pastando.
- O que lhe falta, então? – perguntou o filósofo.
- É preciso escolher entre tantas coisas.
- Pois então observe aquela árvore.
Empolgado, o aluno mirou na árvore um olhar penetrante e a percorreu de cima a baixo com todo o seu poder de observação.
Mas, passados alguns minutos, lá estava o aluno embaraçado novamente.
- O que houve? perguntou o filósofo.
- Perdão, senhor. Mas... o que devo observar na árvore? – e passou a enumerar, movido por intensa aflição – Essa árvore é alta, frondosa, tem folhas muito verdes, não tem frutos, o tronco é escuro, as raízes não são aparentes. Mas...
O filósofo esperou, pensativo e irônico como os filósofos dos quais se contam causos do gênero.
- Mas... – provocou ele, divertindo-se com a aflição do aluno.
- Não basta, senhor. Tenho a árvore, sei que devo observá-la, mas... O que escolho nessa multidão de coisas? Mesmo numa só árvore há uma multidão de coisas, senhor.
- Ah, muito interessante. Há que fazer uma...
- ...nova escolha, vibrou o aluno.
- Ótimo. E agora?
- Bom, uma árvore é um ser vivo. Algumas dão frutos. Pessoas se alimentam deles. Precisam de água, de sol – mas não em excesso, há um limite. Com sol demais, secam. Com água demais, murcham. Depois, um dia foram sementes, brotaram... Ah, senhor, é muita coisa. Não sei mais o que pensar.
- Talvez seja necessário uma nova escolha, sugeriu o filósofo.
- Como?
- Bom, quem está observando é você...
O embaraço do aluno cresceu. Não conseguiu entender porque era tão importante o fato de que ele, e não outro, estivesse observando a árvore.
- Já sei! – exclamou afinal – Não basta a árvore, é preciso o meu olhar. Pois é certo que meu olhar modifica o que vejo. Cada um vê a seu modo, de um certo ângulo.
- É, murmurou o filósofo.
Então os dois ficaram em silêncio. O filósofo, com um sorriso divertido, aguardando o próximo passo. O aluno, aflito, tentando entender o que lhe passava pela cabeça.
- Bom – suspirou o aluno – como sou, além de seu aluno, um filho de agricultores, acho que a árvore deveria ser vista como produtora de algo, alimento ou madeira.
- Outros – aproveitou o filósofo – poderiam ver nela uma manifestação vital, uma fonte de energia, um lugar de trocas entre um organismo, a água, o sol. Talvez um símbolo. Talvez apenas beleza.
- Mas... isso não acaba nunca, senhor, as combinações são infinitas. Há uma quantidade imensa de perguntas a fazer.
Nesse momento, feliz e sem ironia nos lábios, o filósofo sorriu.