sábado, 27 de julho de 2013

Zico e a mágica do espelho


 


Dia desses tentei escrever, a pedido do meu amigo Antonio Manoel dos Santos Silva, sobre Zico. Sem que eu pudesse evitar, saiu um texto sobre Zizinho, que me driblou, tomando conta da crônica.
Não devemos confiar em cabeça de cronista, perdida em associações incontroláveis. Machado de Assis sofria desse mal. Volta e meia se perdia – ou fingia se perder – e disparava a falar de outras coisas até que, lá longe, retomava o fio da meada. Claro, não podemos acreditar nos fingimentos machadianos, tão arteiros quanto Capitu.
Estão vendo? Já me perdia. Voltemos. Trata-se de Zico.
Falar dele me parece difícil. Seria repetitivo insistir nas jogadas deslumbrantes, nos passes exatos e suaves, nos dribles que nos deixavam atônitos.
Uma das mágicas de Zico era a aparente facilidade. Nos passes, nos dribles, na condução da bola. Todo grande craque é hábil em produzir essa ilusão: tudo que faz parece fácil. Ao contrário do que ocorre com os pernas-de-pau, nos quais sentimos o esforço, o suor e o empenho desastrado – e os resultados pífios.
As finalizações de Zico eram refinadas obras de arte. Nunca batia na bola da mesma forma. Cada toque segundo a jogada exigia.
Quando se tratava de falta, a perfeição nos deixava incrédulos. Praticou o mesmo milagre vezes sem fim e mesmo assim era difícil de acreditar. Havia perfeição no chute, no desenho descrito pela bola. Antes que ela vencesse a barreira já era possível saborear o gol. Nenhum goleiro pegaria aquela bola, nenhuma trave ou rede se recusariam a acolher aquela obra-prima.
Tudo isso pertence à mágica e à fantasia do futebol.
Mas também isso é apenas aparência.
Ao contrário da crença brasileira de que tudo na vida depende de um golpe de sorte e de improvisação, Zico, que parecia improvisar sempre, jamais improvisava. Ou improvisava sempre, não improvisando. Quando menino, assistia os irmãos mais velhos a jogar – Tonico, Edu, Antunes e Nando, igualmente craques – e, ao ver um drible bem dado, um chute certeiro, um lançamento preciso, ele pegava a bola, ia para um canto da rua e, enquanto não repetisse a jogada com perfeição, não descansava. Voltando ao jogo, executava a jogada.
Assim se exercitava após os treinos do Flamengo. Colocava uma camisa no ângulo da trave e batia faltas. Dezenas de faltas. O objetivo era atingir a camisa. Era isso que víamos nos jogos – e parecia o mais acidental dos improvisos.
Tudo que conquistou resultou de uma dedicação imensa.
Eis porque é difícil escrever sobre Zico. Ele é desses brasileiros que desmentem vícios e manias nacionais. Uma imagem invertida no espelho. Nunca foi falso malandro. Colocava em tudo um caráter de primeira qualidade. No trato com companheiros de jogo, na maneira de enfrentar os adversários, a imprensa, o país. Sempre agindo com um senso ético irretocável.
Não improvisava, não dava jeitinho, não acreditava em sorte. Acreditava em disciplina, segundo um rigor quase kantiano – um Kant do bairro de Quintino, é claro, digno de seu pai, o sólido português José Antunes Coimbra.
Eis o espantoso em Zico. De suas mágicas, foi a maior.



domingo, 21 de julho de 2013

Falsas polêmicas (e verdadeiras questões) sobre a medicina no Brasil




Indico para leitura o excelente texto escrito pela jornalista Lilian Terra, publicado no dia 17/07/2013, no site Outras Palavras. É uma síntese justa e clara a respeito dos falsos problemas e dos verdadeiros impasses da saúde no Brasil. No artigo, dados consistentes e análises lúcidas sobre a questão.
Dados, por exemplo:

Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 477 per capita em saúde. Enquanto isso, o Uruguai investiu US$ 817,8, e a Argentina, US$ 869,4. O Reino Unido cujo sistema de saúde tem sido apresentado como referência pelo governo, gastou quase seis vezes mais: US$ 2.747.

Análises, entre outras:

Caso o SUS fosse financiado com 10% da arrecadação do Estado, como pedem os médicos, e não se transferisse tanto dinheiro para o sistema privado, tal medida seria perfeitamente possível. Com isto, esse médico e essa equipe de saúde com carreira de Estado lutariam por melhores condições onde trabalham, pois teriam mais vínculo em seu local de atuação. Essa seria a melhor medida que o governo poderia tomar: valorizar o médico, colocá-lo ao lado dos setores financeiramente empobrecidos, para que lutassem juntos por uma saúde de qualidade. Ninguém ganha em uma briga que opõe aqueles que atuam diretamente no atendimento à saúde da população e os que formulam as políticas de saúde pública.


Para ler a íntegra do artigo de Lilian Terra, clique aqui.



sexta-feira, 19 de julho de 2013

Saques e Vandalismo, a quem interessa?



Barricadas de fogo ao longo da rua Ataulfo de Paiva Foto: Marcelo Carnaval / Agência O Globo



Assisti, como todo mundo, ao quebra-quebra nas ruas do Rio de Janeiro, Leblon e Ipanema.
Noto a repetição do que aconteceu em outras ocasiões. A insistência com que as câmeras e os fotógrafos registram baderneiros encapuçados apedrejando portas e vitrines, queimando papéis e lixeiras, saqueando lojas. Noto também a passividade suspeita da polícia.
Dos jornalistas e fotógrafos podemos dizer que estavam trabalhando, fazendo o registro do que se passava, já que, no mundo midiático em que vivemos, se algo não é filmado não chega a acontecer.
Mas duas coisas me deixam inquieto nesse triste espetáculo.
De um lado, filma-se exaustivamente o quebra-quebra, minutos sem fim, com incontáveis repetições, quase com o sadismo das reportagens policiais. É claro que algum locutor, ao fundo, diz que os protestos transcorreram de forma pacífica, porém... ao final a pancadaria predominou.
Eis minha dúvida: não consegui ver nem um minutinho de filmagem dos protestos pacíficos. Ocuparam o maior tempo das manifestações, no entanto. Terão um interesse jornalístico menor? Não creio.
Essa concepção de jornalismo me faz lembrar um personagem de Nelson Rodrigues, um editor de jornal que, desesperado porque seus repórteres não encontraram nenhuma notícia sangrenta naquele dia, entra em histeria, sobe na própria mesa e, aos berros e de braços erguidos, urra:
- Eu quero um cadáver! Eu preciso de um cadáver!
Outra estranheza: os chamados vândalos lá estão com caras mascaradas por camisetas. Ou seja, não é difícil saber quem são e o que fazem. Eles não fazem parte dos que protestam. Estão ali para quebrar, roubar, destruir e, pior ainda, desvirtuar o que as passeatas têm de positivo.
Então, me ocorre o seguinte: se os desordeiros são facilmente identificáveis, se os que participam do protesto os repudiam, por qual razão a polícia – que adora espancar multidões – não faz absolutamente nada, assistindo fleumaticamente ao quebra-quebra?
Ora, se não recebem ordem para prender os vândalos, quem sabe os que deveriam dar tal ordem desejem que as manifestações se transformem em pancadaria.
Seria a forma mais fácil de desmoralizar um notável movimento de protestos que deu uma sacudida histórica no país e colocou autoridades e políticos com o rabo entre as pernas.
Não interferir, como fez a polícia do Rio de Janeiro, é por certo a maior evidência de que talvez haja alguém interessado em que os protestos se desmoralizem naturalmente à custa de sempre se converterem em quebra-quebra.
Seria desejável que tanto manifestantes quanto a polícia se empenhem em separar o joio do trigo. Que os saqueadores sejam identificados e escorraçados. E que os protestos continuem, pois são justos e necessários.



domingo, 14 de julho de 2013

Mudanças à vista ou a prazo





Mudar.
Ir de um lugar para outro. Ou transformar-se: somos uma coisa e queremos ser outra. Trocar o tapete da sala, a posição de um sofá, a cor da parede. Morar em outra casa, outra cidade, não raro outro planeta. Ou pentear o cabelo de uma forma diferente. Trocar de roupa. Fazer novo itinerário pelos labirintos da cidade.
Eis o truque: as mudanças simples favorecem mudanças mais profundas, as que ocorrem no que chamamos de alma – o que inclui o corpo, é claro: nossas manias, nossos desejos e projetos, tudo isso que faz algum sentido na vidinha que levamos.
Todos gostam de mudanças, embora não confessem. Reclamam, mas gostam. A vida, durante uma mudança, fica por alguns dias de pernas para o ar. Há coisas que se quebram, outras que somem, a poeira salta de velhos papéis e armários, a confusão se instala, a trabalheira é infernal. Mas todos se divertem durante uma mudança, inclusive os cachorros que caem dos caminhões.
E pequenas mudanças simulam grandes mudanças. Jogar coisas fora, limpar gavetas, pastas, caixas, papéis. Jung, que entendia do riscado da alma humana, observou que ao sentirmos necessidade de nos arrumar por dentro inventamos arrumações à nossa volta. Não mudamos a paisagem, eu diria, mas a cortina da janela, com o que mudamos a paisagem. Costuma funcionar.
Vejam o que acontece com as gavetas.
Além de serem criaturas insubmissas a qualquer organização, arrumá-las nos coloca em sintonia com o inconsciente: até nossos fantasmas mais renitentes resolvem aparecer, pois, como sabemos, é no fundo das gavetas que se esconde o inconsciente com sua multidão de lembranças. Vale por meses de psicoterapia.
O mesmo acontece com as fotos. Vamos exclamando:
- Quando foi isso?! Quem é o sujeito?! Que roupa ridícula!
As fotos, de todas as coisas, são as únicas que sofrem ação do tempo, como se fossem humanas. Uma pedra é sempre a mesma pedra. Já as fotos envelhecem e denunciam o acúmulo do tempo. Um sofá pode se esfarelar de tão velho, mas isso é problema dele. Nas fotos, mesmo quando não estamos nelas, o tempo nos espreita. Elas envelhecem não apenas como coisa física, mas como memória: há ali um esquecido e inquietante universo no qual mergulhamos ao abrir a gaveta.
Mas mudar é bom, pois é o oposto de morrer – e morrer, quando mudamos, não está em nossos planos. Todos os que estão em mudança estão certos de que viverão muitos anos e que farão grandes descobertas. Que outra razão para mudar?
Sobre minha escrivaninha acumulo muita bagunça, sobretudo recados dirigidos a mim mesmo. Faça isso, aquilo, telefone, leia, coloque no correio, esqueça. Com o tempo, vira uma anarquia e já não consigo saber a razão daquele recado que parecia tão urgente – e de quem, diabos, seria aquele número de telefone? E Tibúrcio, quem será?
Quando devo começar um trabalho novo, preciso colocar em ordem a tralha acumulada sobre a mesa. Se não faço isso, fico estacionado no que fazia, impossível recomeçar. Dedico-me então à arrumação e, depois, fico aguardando.

Alguma coisa nova haverá de acontecer.



sexta-feira, 5 de julho de 2013

O plebiscito ou O ilusionismo político




Quando ainda navegava em índices altíssimos, a presidente decidiu antecipar a campanha para as eleições de 2014. Foi em fevereiro passado. Algum gênio – talvez chamado Chalaça – terá soprado a ideia nos seus ouvidos.
Uma cortina de fumaça. Com isso se aproveitaria a onda de aprovação e seria criado um embaraço tremendo para os adversários, permitindo navegação tranquila até o final do mandato sem mover uma palha nos problemas do país.
O recurso é velho. Trata-se de colocar em cena aquilo que os políticos chamam de “política” – as eleições, as alianças, os conchavos, a troca de desaforos com oponentes. Distrai a plebe e tudo fica na mesma.
A lista de problemas era sabida e vasta.  Obras inacabadas, PACs paralisados, projetos não realizados, produção estagnada, a inflação acenando na curva. Além do acúmulo de desastres na saúde, na educação, nos transportes, no saneamento, na segurança. Daí o lançamento da candidatura, truque capaz de atrair os olhos do eleitorado, cativo em discutir se esse ou aquele deverá ocupar o trono. Ao modo do Chacrinha.
Agora, pós-passeatas e quebra-quebras, o factoide das eleições já não bastam. Nas ruas, a população se expressou com fúria: falta de educação de qualidade, falta de saúde pública decente, de segurança etc.
Ora, para enfrentar tais problemas, se exige muito trabalho. O que nunca está nos planos de governantes brasileiros.
Assim, de todas as possíveis alternativas diante de tantas reivindicações, novamente algum gênio da “política” soprou aos ouvidos da presidente uma prioridade que sequer fez parte das reinvindicações populares: o plebiscito, eleito como substituto do que foi urrado pela voz das ruas, a qual a presidente diz, cheia de empáfia – nem nessas horas ela larga a empáfia – ter ouvido.
Nova cortina de fumaça. No momento o país se atropela num absurdo debate entre plebiscito e referendum, com listinhas de perguntas que lembram provas do Enem, dando margem conveniente a que sejam discutidas firulas jurídicas.
Convenhamos, não há necessidade alguma de plebiscito ou referendum ou reforma política caso se pretenda redefinir os rumos da educação, da saúde, dos transportes, da energia etc. Existem instrumentos legais e institucionais vigentes para tanto.
Mas nesse caso seria preciso trabalhar. Estudar os problemas gritados nas ruas, analisá-los com seriedade, pensar nas alternativas, propor e discutir soluções, optar por projetos viáveis, estabelecer metas, prazos, escolher ministros competentes etc. Tudo isso é possível, sem necessidade de plebiscito. Basta aquilo que sempre alardearam: vontade política.
O plebiscito foi colocado no centro do picadeiro por puro ilusionismo. Ocupará manchetes, ajudando a escamotear os verdadeiros problemas.
Nos últimos dias, deixando escancarado que tudo isso foi uma farsa e um oportunismo de afogadilho, Dilma, que já abandonara a esdrúxula “constituinte”, está procurando um jeito de livrar-se do “plebiscito” sem parecer que foi a autora do equívoco.
Mas há um porém – sempre há um porém, como costumava dizer o escritor João Antônio. Faltou combinar com a “voz das ruas” para que mais adiante não perturbe com novas passeatas, talvez mais enfurecidas.
É o que veremos. Ou não.