segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Lembrando Pablo Neruda





Há 40 anos morria Pablo Neruda.
Naquele dia todos nós fomos abalados não apenas pela perda de um grande poeta, mas pela certeza de que ele havia sido assassinado pelos golpistas chilenos. Também imaginávamos que Allende havia sido assassinado.
Hoje sabemos que Allende preferiu a morte a se entregar aos golpistas.
Acredito - hoje, quando se pensa em exumar seu corpo - que Neruda morreu, não pelas mãos de algum militar, mas, sendo poeta, escolheu aquele momento para dar a sua morte um sentido além de sua própria vida. Como ele escreveu no belo poema A Morte, na tradução de Thiago de Mello:

“Renasci muitas vezes, da profundeza
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre meu corpo, destinado a ser terra.”

Por isso transcrevo aqui, no original, o Poema 20 (do livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada) que nos mostra como amava e vivia o poeta ao renascer do amor perdido.

Poema 20

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: " La noche está estrellada, 
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos". 

El viento de la noche gira en el cielo y canta. 

Puedo escribir los versos más tristes esta noche. 
Yo la quise, y a veces ella también me quiso. 

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos. 
La besé tantas veces bajo el cielo infinito. 

Ella me quiso, a veces yo también la quería. 
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos. 

Puedo escribir los versos más tristes esta noche. 
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido. 

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella. 
Y el verso cae al alma como pasto el rocío. 

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla. 
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos. 
Mi alma no se contenta con haberla perdido. 

Como para acercarla mi mirada la busca. 
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo. 

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles. 
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos. 

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise. 
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído. 

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos. 
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos. 

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero. 
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido. 

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos, 
mi alma no se contenta con haberla perdido. 


Aunque éste sea el último dolor que ella me causa, 
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo

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Por sugestão de um dos seguidores do blog, indico o vídeo a seguir para ouvir o poema na voz do próprio Pablo Neruda.
http://www.youtube.com/watch?v=uYtBx8jHIrM


domingo, 22 de setembro de 2013

Celulares unidos jamais serão vencidos


 


A relação entre os homens e as máquinas sempre rendeu ficções fantásticas, desde Tempos Modernos, de Chaplin, ao computador de 2001, Uma Odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, inspirado em conto de Arthur Clarke.
As máquinas despertam em nós um medo apocalíptico.
E são dissimuladas. Basta prestarmos atenção nas maquinetas, os celulares, que hoje estão nas mãos de todos os viventes e que parecem inofensivas diante do tamanho daquelas que engoliram Chaplin.
De tanto ver gente com um celular grudado no ouvido – na rua, no elevador, nos restaurantes, nos automóveis, nas caminhadas – concluí que um dia, por formidável mutação genética, os seres humanos nascerão com um ouvido que sofreu um upgrade evolutivo. O ouvido será dotado de discagem à distância, recepção de sinais eletrônicos, e o ser humano se transformará em seu próprio celular, tablet ou notebook. Nascerá com um celular ao lado do rosto. Talvez nos dois lados, pois o número de celulares supera o de mortais.
Notável revolução. Dispensaria o uso de braços e mãos, livres não para amores e carícias – coisas arcaicas em tempos futuros – mas para digitar e cutucar telas.
Lembro que um cientista anunciou que o cérebro humano, com o tempo e o uso excessivo, se atrofiaria, crescendo demasiado. A cervical humana se curvaria e os homens andariam com a cabeça jogada para trás pelo peso. Espero que tal coisa não aconteça, como é destino de todas as profecias. Como sabemos, 2001 não foi o ano em que fizemos contato, a não ser que certas figuras hoje na direção do mundo tenham vindo de outras galáxias.
Mas acho que errei com essa história do crescimento do cérebro. Está visto que o cérebro não parece ter sido o órgão humano que mais cresceu nos últimos tempos. Ombros, coxas, bundas, seios, pescoços, bíceps é que têm se avolumado de modo notável.
Quem mudará serão os celulares, pois a cada dia incorporam novas funções – jogos, calendário, máquina fotográfica, despertador, internet, e-mail, redes sociais, caixinha de música, caixa de endereços, controle de televisão, de eletrodomésticos, de casas informatizadas etc. etc. Serão criaturas capazes de fazer tudo. Degustar vinhos, por exemplo. Escolher a cara metade. Selecionar óvulos e espermatozoides. Levar o usuário ao orgasmo. Organizar antologias de poetas românticos. E desenvolverão tato, olfato e visão, no mínimo.
Não crescerão em pernas e braços, coisas arcaicas. Flutuarão no ar, livres como pássaros e darão ordens aos humanos. Nada de novo. Já fazem isso. Já vi casais em restaurantes, frente a frente, mergulhados na telinha, digitando coisas. Não ligam para a comida, que pode ser qualquer uma, nem olham para o garçom, que parece ser sempre o mesmo. Falem um com o outro via facebook.
E assim continuará até que, cansados das humanas imperfeições, os celulares nos trancafiarão num gueto, tomando conta do mundo.
Talvez seja a nossa salvação. Reaprenderemos a conversar sem celulares e, quem sabe, poderemos retomar as rédeas do planeta. Há alguma esperança.
O diabo é que essas maquinetas têm hordas de aliados.
Não vai ser fácil.



segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A farsa da espionagem ou O oportuno inimigo externo





O governo da Dilma anda numa gangorra.
Há pouco tempo, surfava em águas favoráveis alimentadas por altos índices de popularidade. Veio o mês de junho e as coisas desandaram. As manifestações de rua tomaram conta do noticiário e deixaram o governo atônito. Os índices despencaram. Encastelada no Palácio, Dilma tentou reagir com medidas (lembram? – plebiscito, grana do pré-sal para a educação, médicos importados). Tudo ou quase tudo foi por água abaixo – apenas sobrenadaram os médicos cubanos. Os índices não mexeram, a colheita se mostrou rala.
Foi quando ela recebeu um grande presente de seu hoje inimigo externo preferido, Barack Obama. Foi revelado – por um ex-técnico da inteligência americana, Edward Snowden – o sistema de espionagem comandado pela agência nacional de segurança, a NSA. Os computadores brasileiros, de empresas e do governo, estariam sendo monitorados pela potência norte-americana. Revelou-se até dados a respeito da Dilma e da Petrobrás, objetos de espionagem.
É sabido que espionagem é o dia-a-dia das atividades das agências de inteligência mundo afora, que bisbilhotam o que fazem amigos cordiais e inimigos declarados. Ninguém escapa. Mas os sábios que rodeiam Dilma, sempre de olho nos índices de popularidades, farejaram aí um grande trunfo: havia um inimigo externo a ameaçar a dignidade da nação brasileira.
O inimigo externo, como se sabe, é um trunfo sempre disponível para governos em crise, desde os “subversivos” dos anos 1970, os “judeus” para Hitler, os “ingleses” nas Ilhas Malvinas para os ditadores argentinos, os “comunistas” para as direitas do mundo inteiro e os “dissidentes” para as ditaduras de esquerda.
Fez-se então grande estardalhaço. Aquele minúsculo diplomata chamado Patriota tentou dar uma prensa no secretário de Estado Americano, Jonh Kerry, que andou por aqui procurando acalmar os ânimos patrioteiros. Mas levou do colega americano um chega para lá que se tornou um dos clássicos das trapalhadas diplomáticas do século.
Dilma não desistiu. Saiu mundo afora reclamando, exigindo explicações, cada vez mais exaltada. Queria estar à altura de sua fama de valentona. Não conseguiu nada. O Patriota se viu envolvido em seguida (graças aos céus, pensou Dilma) na fuga rumo ao Brasil do senador boliviano Roger Pinto Molina; acabou transferido do cargo. Foi para os EUA e assumiu seu lugar um tipo com fama de durão, Luiz Alberto Figueiredo.
Eis que os índices de popularidade reagiram. Pifiamente, mas o bastante para produzir tabelinhas estatísticas nos jornais da televisão: seis pontinhos. Euforia.
Mas é pouco e ela não sabe o que fazer – enquanto governo da coisa pública – naqueles imensos salões do Alvorada. Agora, Dilma ameaça não ir aos EUA no dia 23 de outubro para encontrar o presidente Barack Obama, conforme programado. Deseja talvez que antes disso Obama se ajoelhe a seus pés e jure nunca mais espionar o país que ela governa.
Impossível, é claro. Espionagem é coisa diária e corriqueira, fazendo parte da paranoia de que se alimentam as relações entre países. Até ela sabe disso. Tudo mundo sabe disso.
Mas o circo segue, já que a presidente não tem nenhuma ação positiva para colocar em seu lugar que possa mover sua popularidade. O governo presente – a exemplo de outros passados – carece de ideias, de projetos, de planos de longo ou curto prazo. Há muito o que fazer na medicina brasileira, mas é mais fácil importar médicos. Há imensas tarefas a executar na educação, mas é mais fácil e bombástico anunciar verbas (liberadas quando e para quê?). O mesmo para os transportes, para ficarmos apenas nas áreas feridas pelas manifestações das ruas.
Como resultado, ficamos todos os dias ouvindo e vendo na mídia declarações inúteis sobre uma inútil questão de espionagem que algum jogo de cintura de estadista – houvesse por aqui algum estadista – teria resolvido num piscar de olhos.
Truculenta e pesada, Dilma continua dando trombadas e rosnando. De olho nos índices de popularidade. Quem sabe o povo topa defender seus gestos como defenderia a seleção brasileira num confronto com a seleção argentina.
Patriotadas é claro. Gasto de tempo e de dinheiro. E da nossa paciência.
Há, além dos aviões de carreira, um grande tédio cruzando os céus nacionais.




sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O STF e o Mensalão: como enrolar o óbvio.


O vencedor será o Batman? Ou será o Coringa?


Estamos novamente em suspense. Fará o STF, que conduzia razoavelmente bem a carruagem do mensalão, um papel que envergonhará o país?
Não sabemos. Ou já sabemos. Na quarta-feira já não teremos dúvidas.
Por enquanto ficou no ar o cheiro de pizzaria. Ao invés de metade mozzarella e metade alho e óleo, temos metade cinismo e metade desprezo pelas exigências sociais.
A discussão no STF foi tortuosa, pois é arte desenvolvida pelos seus membros a arte de enrolar o próximo. Os defensores de um novo julgamento se apegaram a formalismos, a interpretações malandras das leis existentes, além de adotarem, no fundo, a piedosa atitude de quem deve, para não cometer injustiça, dar mais uma chance ao acusado.
Jogo de cena.
Pois eis o que quer dizer, em boa e simples língua portuguesa, o que é infringir, conforme registra o Dicionário Aulete:

“Descumprir ou violar (lei, regra, ensinamento etc.); TRANSGREDIR; DESRESPEITAR: Infringir uma norma, um estatuto”.

O que menos se viu foi discussão a respeito de qual lei, regra ou ensinamento que teria sido transgredida ou violada quando do julgamento. Era de se esperar que os advogados milionários dos acusados apontassem tais desatinos. Ou seja, o tribunal não discutiu o que houve de errado no julgamento. Especula-se com uma possibilidade, já que os acusados reclamam. Ora, era de se esperar que os acusados reclamassem. Mas precisariam apontar falhas efetivas. Não o fizeram.
Apenas se discutiu se os tais embargos infringentes são ou não permitidos no caso, se estão ou não em vigor, se violam ou não o que está na constituição. Firulas. A ministra Cármem Lúcia fez uma argumentação honesta e definitiva sobre a questão, mas não deverá ser levada em conta.
O problema é outro. Trata-se do câncer que vitima a justiça brasileira: a demora, a protelação indefinida, o empurrar para o nunca mais, a chicana sempre presente nos julgamentos, o confundir para dominar.
Em segundo lugar, um novo julgamento – com a consequente amenização das penas – só levará ao desprestígio do último poder da República que ainda guarda um resquício de respeitabilidade. Os ministros – até agora cinco – favoráveis ao adiamento da questão não levam em conta ou não dão bola para o desgaste ético, político, social, cultural que significa a nação ter diante de si um poder judiciário incapaz de assumir uma posição clara e fazer o que todos sabemos que deveria ter sido feito desde 2005, quando essa bandalheira veio à tona.
Além disso, essa nova composição do tribunal inclui membros indicados recentemente pela Dilma, o que faz com que a coisa cheire muito mal. Não seria o caso de se declararem impedidos? Jamais fariam isso.
Enfim, não sabemos o que sairá da cabeça do juiz Celso de Melo, o decano. A sabedoria popular costuma nos dizer que não devemos confiar cegamente em cabeça de juiz, de onde podem sair as maiores barbaridades.
Portanto, nos resta a desanimadora sensação de que estamos diante de uma farsa político-jurídica, como sempre, e o Brasil continuará, como sempre, sem tomar na hora certa as decisões necessárias e definitivas.
Eis porque esse julgamento já está causando na população um tédio medonho.



domingo, 8 de setembro de 2013

Decida-se, Denise!





Morava em São Paulo, ali por volta de 1979.
Com meu atrapalho no trânsito, fazia sempre o mesmo trajeto para chegar em casa sem me perder. Estivesse onde estivesse, ia até a Paulista, de onde sabia como chegar ao bairro de Perdizes. Nesse caminho tantas vezes repetido passava por uma curva enorme onde havia um muro devastado pelo tempo. Nele, um grafiteiro lascara a frase:
“Decida-se, Denise!”
O grafite fora riscado com algum nervosismo. Parecia brilhar no muro. Quem o escrevera o fizera com impaciência e irritação. Não suportava a indecisão da Denise. Não era uma súplica, era quase uma ordem.
Ou seria uma súplica? No dia seguinte, observava melhor, diminuía a velocidade, temendo ser atropelado pelo trânsito, relia a frase. Era uma súplica. O sujeito estaria sofrendo. Muito irritado, mas esperançoso.
Quem seria o grafiteiro? Quem seria Denise?
Pensei várias vezes em estacionar nas redondezas para dar uma olhada mais de perto, mas, inábil no trânsito, temia tomar uma direção errada, o que em São Paulo equivale a parar três bairros adiante.
O grafiteiro não escolhera aquele muro por acaso. Denise moraria no outro lado da rua, de onde pudesse, chegando à janela, observar o apelo estratégico de seu desesperado amor. Era isso. Tentei descobrir alguma janela nas redondezas que arrematasse aquela história, mas só encontrei uma sucessão de muros e portões.
Fiquei imaginando. Como deveria ser uma Denise que recebe recado tão pessoal e desesperado nessa cidade feita de cimento e caos? Sofresse de indecisão, seria tímida. Bonita, mas tímida. Mas fiquei em dúvida: por que bonita? Sempre achamos que criaturas que despertam paixões são bonitas, o que não é verdade.
Conheci um sujeito que vivia elogiando a mulher, bailarina e modelo, com um entusiasmo febril. Eu a imaginava um monumento. Quando fui apresentado a ela, fiquei pasmo. Já não tinha manequim de modelo e, da bailarina, só restara o nariz pontiagudo, que todas têm, não sei a razão. O tempo estragara a bailarina, mas, aos olhos dele, era a bela de sempre.
Pensei então que a tal Denise poderia ser feia. Feia mas atraente. Charmosa, por que não? Tímida e charmosa. O que não me impediu de imaginá-la também belíssima e exuberante. Uma tímida não responderia por pudor, medo, insegurança, mas, se fosse uma bela mulher, poderia ignorar o grafiteiro por mera soberba. Seria então uma mulher ainda mais difícil e achei que o apelo no muro ali ficaria para sempre, sem resposta.
Bom, eu apenas passava por ali. Mas guardei a frase, que adquiriu outros sentidos para mim e passou a ser um mantra que tenho usado ao longo de todos esses anos.
Certa ocasião, assistindo a um jogo de futebol com amigos, irritado com um atacante que saltitava sobre a bola sem chutar, eu gritei: decida-se, Denise! Foi um espanto no estádio e, no intervalo, fui obrigado a me explicar. Hoje, diante de uma hesitação minha ou de alguém a minha volta, penso e digo: decida-se, Denise!
E o grafiteiro e sua amada, onde estarão? Ela se decidiu? Ele esperou?
Não posso saber.
A história se perdeu para sempre num velho muro da cidade de São Paulo.



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Meu primeiro filme pornô


          
          Devo a um capitão do exército – que era viado, como chamávamos na época – a sessão de cinema em que vi o primeiro filme de sacanagem, também nesse caso como chamávamos na época.
Me explico, para evitar mal entendidos.
Estávamos lá na frente do Cine Blumenau, banzando de um lado para outro, eu e um amigo, Léo, querendo assistir a um filme proibido para menores. Tínhamos dezesseis anos e entrar numa sessão de filme proibido era uma operação que exigia muita habilidade, algum prestígio político junto ao porteiro, além de uma capacidade digna do actors studio de encenar vários despistes. O truque era não pressionar o porteiro. Depois, ficar por ali, aguardando a hora exata, fazendo papel de figurante invisível.
Ocorre que na Blumenau da época todos conheciam todos e muitas vezes minhas estratégias foram por água abaixo quando surgia alguém que me apontava, às gargalhadas:
- Olha ali o filho do seu João querendo assistir filme proibido!
Era o que bastava. Dedado, só me restava bater em retirada e sumir pela rua XV, coberto por uma salva de chacotas. Além disso, e era o pior, o flagra deixava o porteiro furioso, pois colocava sob desconfiança sua missão policialesca de barrar menores. Com isso, minhas chances de entrar numa sessão proibida nas duas ou três próximas semanas estavam perdidas.
Pois estávamos ali, escondidos por detrás de colunas, encostados nas paredes laterais, vigiando se algum alcagueta não se aproximava, quando um conhecido veio nos trazer o convite:
- Querem assistir a um filme de sacanagem?
Queríamos, é claro, mas de pronto fizemos a primeira pergunta:
- Quanto custa?
- Nada. De graça.
- E onde vai ser?
O sujeito colocou um dedo sobre os lábios exigindo silêncio e fez um sinal para que o acompanhássemos. Atravessamos a rua, agora no papel de agente secreto incógnito, e, logo depois do Bar Benthien que por ali havia, entramos por uma porta misteriosa e descemos uma escada estreita e escura. Chegamos a um porão que cheirava mal e estava lotado pela silhueta de uma pequena multidão febril.
Um homem careca se aproximou, nos encarando com duas sobrancelhas hirtas e eu pensei: pronto, vai nos colocar para fora, somos menores. Nada disso. O homem, depois de nos examinar, disse, como quem dá uma ordem:
- Arranjem um lugar e não atrapalhem quem está atrás.
Quando o homem se afastou para continuar em sua missão de organizar a plateia, o sujeito que nos levou àquele covil murmurou:
- É ele.
- Ele?
- Ele é quem passa o filme.
Procurei pelo homem, mas ele havia sumido na escuridão.
- Mas quem é ele? perguntei.
- Um capitão do exército. Viado.
No meio da plateia havia uma máquina de projeção, já piscando suas luzes, colocada em cima de uma banqueta de bar, dessas de perna alta. Era uma 16 milímetros que por enquanto só jogava, num lençol estendido na parede em frente, uns clarões de luz, riscos, cruzes, números, traços desencontrados.
O tal capitão surgiu então diante do lençol e pediu a todos o máximo de silêncio. Nada de bagunça durante a projeção do filme. A coisa era secreta. E anunciou para a próxima quinta-feira um novo filme.
A verdade é que do filme a que assistimos me lembro de quase nada. Sei que era uma história que envolvia uma bela mulher loira, de generosos seios, que já na primeira cena aparecia vestindo uma camisola transparente. Estava enfurecida, pois queria tomar banho, mas, por mais que esbofeteasse a torneira e o chuveiro, a água não saía. Andava de um lado para outro e todos da plateia estavam boquiabertos com aquele espetáculo de beleza, de pernas, de quadril rebolativo, exercícios de se abaixar para apanhar o sabonete, de se levantar para acionar o chuveiro, quando ela afinal retirou de um canto um aparelho telefônico. Da época: preto, grande, com um fio imensamente longo. Discou com alguma fúria uma sucessão de números que nos pareceu gigantesca – na cidade, os telefones tinham então quatro dígitos. Era um filme americano, portanto. Como previsto: ela chamou o encanador. Num filme desses, saberíamos mais tarde, sempre há um encanador. Esse, cumprindo o destino da sua espécie, surgiu numa camiseta justa, músculos saindo por todos os lados, fumando um cigarro malandro, uma caixa de ferramentas na mão, enquanto a ferramenta principal avolumava o jeans.
Bom, o resto não preciso contar, já que é a mesma história de sempre. Os filmes pornôs são todos iguais.
O que era diferente, no caso, era o capitão. Ele usava aquele expediente para conquistar a rapaziada e, dizem, ao final do filme sumia acompanhado rumo ao andar de cima, onde tinha um refúgio ou algo assim.
Foi a primeira e a última vez que assisti a um filme naquele porão.
Cerca de ano e meio depois, estávamos enfileirados num galpão do 23º. Regimento de Infantaria, para o exame de saúde a que eram submetidos os possíveis recrutas. Todos nus. Não fazia frio, mas era como se fizesse. Aquilo de ficar pelado diante de uma tropa não era nada agradável. Uns, tímidos, pareciam palitos de fósforo: magros, braços grudados no corpo, o rosto fervendo em vergonha. Alguns disfarçavam o incômodo contando piadas, rindo da bunda dos outros e, sobretudo, do Badalo.
Explico. Badalo era o apelido de um mulato baixinho, forte, com quem jogávamos futebol no campo do Palmeiras. Depois do jogo, íamos ao trecho de rio chamado Poço da Moça, onde tomávamos banho, todos pelados. Daí que surgiu o apelido, aplicado por conta do instrumento inacreditavelmente imenso que tinha entre as pernas, mesmo quando em repouso e fatigado após as correrias de um jogo de futebol. De início, Badalo se irritou com o apelido; depois, desligou. Com o tempo, ninguém ligava mais para o badalo do Badalo.
Não era o que acontecia ali naquela fileira de recrutas. Houve alvoroço. Havia quem o apontasse, entre risadas, e logo a coisa virou bagunça quando alguém pretendeu organizar a fila pela ordem decrescente dos, digamos, badalos.
A bagunça foi interrompida pela entrada de alguns milicos. Dois deles ocuparam uma mesa e sobre ela distribuíram papéis e pastas e pediram silêncio. Aos berros, é claro.
Ficamos em silêncio.
Outros dois milicos, que não carregavam papéis nem pastas, vieram em seguida e se colocaram diante de nós. Tinham ares de quem ia nos passar uma descompostura ou nos dar uma ordem unida. Ao invés disso, um deles fez um sinal cabalístico para os dois que estavam na mesa. Começou a chamada dos recrutas, que se aproximavam e eram examinados, respondendo a algumas questões.
Foi só então que um dos milicos nos chamou a atenção.
- É ele, sussurrou o Léo, a meu lado.
- Ele quem?
- O capitão. O viado.
Pois lá estava, disfarçado por esplêndido uniforme, o mesmo capitão que nos proporcionara a primeira sessão de filme de sacanagem. Com as mãos nas costas, sisudo, ele nos examinava com olhares detalhistas. O outro milico acompanhava seus gestos e andanças, como se fosse um ajudante de ordens.
Ficamos congelados. Que diabos fazia aquele sujeito ali?
Enquanto os recrutas eram chamados à mesa, o capitão, acompanhado de seu ajudante de ordens, aproximou-se para examinar a fila de recrutas com ares de especialista. Éramos examinados pelas costas, pela frente. Fazia comentários:
- Veja esse rapaz. Físico de atleta, mas tem um problema na coluna.
O ajudante balançava a cabeça.
- O curioso, disse o capitão, são as diferenças de desenvolvimento hormonal.
O ajudante nos varreu com um olhar inquieto, como se não soubesse onde localizar os sinais de tais diferenças.
- Veja, fez o capitão.
E então passou a examinar cada um de nós, fazendo comentários doutos a respeito de nossos dotes físicos. Para tanto, se aproximava, percorria o nosso corpo com um dedo inquieto, dizendo coisas assim: alguma gordura em excesso, bons músculos, quadril firme. Se alguém acompanhava com o olhar o percurso do seu dedo, ele ordenava:
- Queixo para o alto, rapaz!
Olhávamos para o teto.
A partir daí ele passou a dissertar a respeito do desenvolvimento das gônadas. Notou que umas desciam mais do que as outras, umas eram maiores do que as outras, umas já estavam quase adultas e, outras, infantis. Tudo isso com ares científicos e, para provar seus argumentos, ele deslocava com o dedo os badalos da turma, para deixar à mostra as gônadas. E lá foi ele, de badalo em badalo, emitindo apreciações eruditas, examinando mais detalhadamente alguns, deixando de lado outros que não teriam, talvez, nenhum interesse metodológico. Alguns badalos ele pinçava com dois dedos, outros apenas empurrava para o lado com um só dedo.
Quando chegou a vez do Badalo, o capitão, como se não estivesse atento a ele desde o começo de seu exercício científico, fez um ar de surpresa, chamou o ajudante de ordens mais para perto e se deteve num longo e demorado exame, com dois dedos em pinça revirando o poderoso instrumento de nosso amigo. Segurou as poderosas gônadas na mão enquanto dissertava ao ajudante sobre as diferenças anatômicas do Badalo em comparação com os demais que ali estavam.
- Notável desenvolvimento, disse ele.
E perguntou:
- Como é seu nome, meu rapaz?
Badalo disse um nome que nenhum de nós conhecia, pois para nós ele era apenas o Badalo.
- Interessante, fez o capitão, afastando-se com seu ajudante para a mesa onde os outros dois seguiam entrevistando os recrutas.
Léo sussurrou:
- Ele não tira os olhos do Badalo.
Me controlei para não rir e desviei o olhar para umas janelas altas que havia no galpão. Lá fora observei um céu claro, um sol forte e nenhum vento.
Não sei quanto ao Badalo. Se não foi reprovado por outras razões alheias ao seu notável desenvolvimento peniano, terá enfrentado problemitas, como disse Érico Veríssimo em Solo de Clarineta ao ser assediado por um inglês bêbado numa viagem de trem. Quanto a mim, fui salvo por um decreto do então presidente da república, Jânio Quadros, aquele das vassouras e dos bilhetinhos, que liberou do serviço militar os recrutas que no mesmo ano do alistamento estivessem prestando vestibular e residissem em cidades onde não havia uma coisa chamada CPOR.
Como se vê, é possível ter gratidão por criaturas as mais distintas e abstrusas e por distintos motivos, muitos deles – os motivos, digo – bastante egoístas e pouco sociais. Ao capitão viado fiquei devendo o primeiro filme pornô. E fui obrigado a preservar uma gratidão comedida e histriônica pelo Jânio.
Quanto ao Badalo, não sei como saiu dessa.