terça-feira, 29 de outubro de 2013

Biografias e História – duas vítimas da censura





Essa polêmica em torno das biografias está deixando de lado, entre outras coisas, a ameaça que a autorização prévia do biografado representa para a atividade dos historiadores.
Sabemos que muitos livros realmente essenciais para que o Brasil venha a ter uma consciência crítica e clara de si mesmo devem versar sobre o passado recente. Por certo a história do Brasil dos séculos passados, anteriores ao século XX, é fundamental e sempre servirá para esclarecer o que somos hoje, como sociedade e cultura.
Mas há um grupo de temas recentes à espera de historiadores que se vinculam a acontecimentos ocorridos na segunda metade do século passado – e que chegam ao presente. Envolvem pessoas ainda vivas que participaram desses acontecimentos, quando não seus parentes, filhos e netos.
Caso se leve adiante a atitude censora – chame-se de autorização prévia, de análise para ajuste, de correções de fatos ou ajustes de opiniões – isso permitirá que qualquer sujeito (ou parente) envolvido, digamos, nos fatos que se deram a partir de 1964 até os dias de hoje, se atribua o direito de impedir que sua citação em livros de história (como torturador, terrorista, dedo duro, censor, traidor, corrupto, cúmplice, omisso, assassino etc.) coloque em risco a circulação de tal livro.
Desta forma, a censura prévia, manipulável por personagens que viveram os fatos ou por seus herdeiros, é uma ameaça não apenas às biografias como também à história simplesmente.
O Brasil não precisa de leis censoras, mas de liberdade e de verdade. Precisamos de transparência. Todas as ditaduras – de direita ou de esquerda – se instalam castrando a liberdade e impondo mentiras como cortina de fumaça.
Para qualquer equívoco cometido por biógrafos ou historiadores, o melhor remédio é escrever livros ou artigos que defendam ideias contrárias e, havendo crime de difamação, que se aja dentro das leis existentes, que preveem o direito de resposta e de retratação, além de outras penas.
O resto constitui ameaça à liberdade e um desserviço ao amadurecimento político e cultural do país.



sábado, 26 de outubro de 2013

Biografias, censores, hagiografias


Roberto Carlos por William Medeiros



O Brasil é o país das polêmicas inúteis. E mais: o Brasil é um país autoritário. Dito assim, muitos concordarão e por uma razão simples: a frase possui um altíssimo grau de verdade.
Ocorre que essa atribuição genérica de autoritarismo ao país é utilizada para insinuar que os autoritários “são os outros”. Eis onde mora o equívoco.
A direita brasileira esbraveja contra limitações às liberdades. Querem pensar, agir, comerciar, produzir, explorar sem amarras. Muito bem. Mas sabemos que, no passado e no presente, a direita aliou-se ao autoritarismo, à repressão, à censura, à tortura. Inclusive “filósofos” que hoje esbravejam contra a “esquerda” não escondem o desejo de chavear a boca dos adversários. Discutir, argumentar, é raro.
Isso quanto à direita. Vamos ao outro lado, a esquerda, ainda que as palavras esquerda e direita já devessem ter desaparecido, por esclerose, de um vocabulário político civilizado.
Pois a esquerda, que travou lutas épicas contra ditaduras, não raro dá demonstrações do mesmo espírito autoritário.
O episódio recente é o complô de artistas exigindo biografias “autorizadas” em defesa da “intimidade” – assim como há uma Lei Maria da Penha, acho que desejam uma Lei Roberto Carlos, sendo que essa não tem o mérito daquela.
Desta forma, se o leitor quiser escrever uma biografia do traficante Antônio Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha, ou de Renan Calheiros, o chefão do Senado Federal, terá que obter autorização do personagem, submetendo o texto à censura prévia. Isso levaria ao aparecimento de hagiografias nas quais os referidos são retratados como homens santos. Tal como o Senhor de Bayard, são cavalheiros “sans peur et sans reproche”.
Na biografia, portanto, não devem constar “intimidades” que supostamente denigram o retratado. Estranho essa preocupação com “intimidades”. Acharia mais relevante a preocupação com as “publicidades” que envolvem artistas: apoios governamentais indevidos, grana de estatais poderosas, troca de favores com governantes, farra com grana pública, incentivos marotos etc. Pecadilhos “públicos” sempre me parecem mais graves.
Além disso, sempre que se incomodam, direita e esquerda querem de imediato aprovar uma lei. No caso, censura prévia. Ao contrário do resto do mundo civilizado onde as biografias não autorizadas abundam. Por isso vemos criaturas que admiramos – Chico e Caetano – apoiando uma muleta legal que imponha biografias chapas brancas.
Mas, tratando-se do Brasil, tudo resultará em circo. Abrir a mente a debates francos não interessa. Abrir arquivos e realizar pesquisas sobre fatos e nomes nacionais também não. Trazer à tona a memória pessoal e social assusta muita gente. Como ficará a pose no retratinho do falecido? Por isso foi necessária uma comissão da verdade para investigar fatos que já eram do conhecimento público há décadas.
É preciso afastar desse debate as questões pessoais e investigar as razões sócio-culturais que levam o Brasil às polêmicas inúteis, nas quais as vítimas são a liberdade e a verdade.
A não ser que o biografado seja um santo homem, o que, convenhamos, rareia.

domingo, 13 de outubro de 2013

Nat King Cole e a arte da sedução





Faça o seguinte: deixe a cargo do Nat King Cole.
O caro leitor é tímido, inseguro? Talvez esteja tenso demais e não saiba o que fazer. Não tente fazer nada.
Deixe com o Nat.
A sua voz, meu amigo, pode falhar ou desafinar, ser esquisita, tropeçar nas frases musicais, se atrapalhar com aquilo que você quer dizer ou com aquilo que você pensa ou deseja. No momento mais decisivo, é possível que você esqueça a letra. Ou dê um espirro. Ou tussa.
Nat King Cole jamais se atrapalha ou falha. Note como ele é inteiro, elegante, sereno. Dono de si. Seguro como aquela mão que, no Paraíso, avançou para alcançar o fruto proibido.
A voz é única, absoluta, cheia de nuances e cores.
Um veludo, dizem os entusiasmados. Aliás, é o que ela lhe diz nesse momento:
- Parece um veludo a voz desse homem.
E que homem! – ou homens, você e Nat King Cole!
E o piano? Um dos melhores pianistas de jazz de todos os tempos. Quem poderá superá-lo? Deixe com ele, portanto.
There will never be another you
Você, por mais apaixonado, jamais diria esse verso melhor do que ele.
Tentou? É impossível. Na voz dele essas palavras são capazes de conquistar qualquer mulher que você esteja cortejando. Ah, sim, ele é de um tempo em que se cortejava. Com espontânea elegância. Elegância fatal. Não há um só movimento, dos cabelos engomados aos sapatos reluzentes, que não esteja em sintonia com uma sedução irresistível.
Deixe com ele, portanto.
Coloque outro CD ou DVD. Ou melhor, mais um LP. Deixe rodar. Faça de conta que você está com o pensamento perdido em paragens distantes. Acenda um cigarro, pois ele é de um tempo em que os cigarros ainda não haviam sido demonizados. Cigarros fumados ao som de Nat King Cole são essenciais. Criam fantasias no ar, movem-se como se fossem pura dança, enchem as cabeças de sonhos – e a mulher que você deseja a partir desse momento o contempla com ares de quem afinal encontrou um grande amor.
Falta apenas um passo. Ou alguns versos. Um improviso ao piano. A voz desenhando no ar:
When I am alone with only dreams of you.
Pronto. Deixe com o Nat King Cole. Ele sabe das coisas.
Você colocou o vinho mais refinado – no qual investiu uma pequena fortuna se pensarmos no seu salário – na mesa próxima, os cálices em disposição estratégica, o abridor repousando sobre um guardanapo imaculado. Esqueça tudo isso. É só paisagem. Ajuda, mas é paisagem.
Diga alguma coisa ao acaso. Faça comentários sobre o novo corte de cabelo dela, o vestido absolutamente – não exagere com advérbios, cuidado – elegante. Diga: quando você chegou, foi a primeira coisa que percebi. Mas não exagere. Elogios demasiados elas pensam que é pilantragem. E é.
É claro que para se chegar a esse ponto e tudo funcionar é necessário que você faça uso de seus próprios recursos, de sua própria voz e gestos. Faça o convite com delicadeza. Não acredite naqueles que dizem que os tempos românticos acabaram. Nem mesmo os românticos acabaram. Apenas não estão na mídia, não combinam com o estilo brucutu de rodeio que anda solto por aí.
Portanto, aguarde. E vá em frente.
Afinal, Nat King Cole não pode fazer tudo sozinho.



segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Machado, que era de Assis





 



Machado é tido como pessimista. Assim costuma ser apresentado aos leitores. O problema desses juízos definitivos é que induzem, a quem os escuta, a concluir que já sabe o suficiente, ficando dispensado de ler seus livros.
Portanto, é preciso entender o que era esse pessimismo de Machado.
Nasceu numa família pobre. Perdeu a mãe muito cedo e o pai quando adolescente. A segunda mulher de seu pai foi para ele um bálsamo: ela o amou e protegeu. Mas, além de pobre, era baixinho, raquítico, vesgo e gago. Já seria o bastante. Além disso, era mulato, filho de negros forros, nascido num Brasil escravocrata. E sofria, desde jovem, de epilepsia – “umas coisas esquisitas”, dizia, sem conseguir pronunciar o nome da doença que o maltratava.
Um sério candidato ao fracasso. Ninguém imaginaria que com tais problemas, alvo de preconceitos sociais e racistas, poderia ir além de um pobre negrinho dos morros cariocas.
No entanto, na mocidade, veio a ser um amante inquieto sob a alcunha de Machadinho, cuja história ainda não foi escrita, mas sabemos que envolve muitas conquistas. As coristas dos teatros da época o conheciam a fundo, digamos. Mas no imaginário brasileiro ele ficou como um velhinho claudicante, curvado sob uma nuvem de pessimismo.
Foi jornalista e cobriu sessões do Senado, do que resultaram textos cheios de sátiras às figuras que lá estavam, o que nos ajuda a entender senadores de todos os tempos. Aliás, cabe indicar uma das esquisitices brasileiras, país sem norte filosófico: suas crônicas relativas ao Senado ganharam edição prefaciada pelo notório José Sarney, que faz o habitual floreado beletrista. Coisas do Brasil. Machado não tem nada a ver com isso.
Fixou-se desde cedo num objetivo: estudar, ler e escrever. Realizou seu projeto. Tornou-se um grande escritor e um conhecedor dos problemas de sua época. Conquistou reconhecimento, foi acolhido ainda muito jovem por intelectuais que apostaram no seu talento, entre eles Paula Brito. Conhecia diversas línguas, fez traduções e, já idoso, dizem que começou a estudar grego.
Era escritor respeitado embora seus livros vendessem modestamente, naquele modesto mundo editorial de então. Aliás, o mercado editorial brasileiro continua modestíssimo, salvo na boca de autores e editores mentirosos. Quem vendia muito era Humberto de Campos, que hoje ninguém sabe quem foi. É o destino dos best-sellers.
Por quarenta anos foi funcionário público exemplar no Ministério de Viação. Participou da fundação da Academia Brasileira de Letras e foi seu primeiro presidente. Isso pode ser colocado no crédito ou no débito do autor. Há controvérsias.
Finalmente, Machado foi um vitorioso na sua vida pessoal. Era apaixonado por Carolina, que dedicou a ele os cuidados que a vida de menino não lhe concedeu. Viveram uma bela história.
Ele sabia que realizara seus sonhos. Ao morrer, pronunciou, segundo José Veríssimo, a seguinte frase: “A vida é boa”.
Sendo a vida boa, o que não era bom? A resposta está nos romances e contos e crônicas que escreveu. Foi uma consciência crítica severa de seu tempo – daí o “pessimismo”.