sábado, 28 de fevereiro de 2015

Um tango à distância





"He cometido el peor de los pecados que un hombre puede cometer.
No he sido feliz." (Jorge L. Borges)



Ele se chama Carlos e ela se chama Helena.
Conheceram-se há muitos anos, quando eram jovens, belos e, como todos os jovens, eternos. Ocorre que não se viam há...
- Muito tempo, sorriu ele.
- É bom nem pensar nisso, disse ela.
Riram os dois, fazendo contas que não revelaram um ao outro. Estavam na entrada do colégio à espera da saída dos alunos. Ele fora buscar o filho e, ela, a neta.
- É verdade, disse ela, já tenho neta.
- Incrível.
- E seu filho?
Como se precisasse se desculpar, ele explicou que casara muito tarde, talvez tarde demais, era um pai quase velhinho.
- Velhinho? Imagine! Você está muito bem.
- E você... perdão, continua linda.
Soou o primeiro sinal de saída de alunos.
- O primeiro sinal, disse Carlos, sem saber o que dizer.
Helena não pareceu ouvir, os olhos perdidos no final da rua, um sorriso nos lábios. Ele observou que ela parecia mais jovem e bonita. Perguntou:
- Está pensando no quê?
- Ah, desculpe. Eu...
- Estava muito longe daqui, comentou Carlos.
- É verdade. Lembrando de um baile.
- Foi longe, então. Já não existem bailes há muito tempo. Não aqueles.
- Você lembra do tango?
- Que tango?
- O tango que dançamos. Todos pararam para ver. Fomos aplaudidos. Não lembra?
Carlos não conseguiu evitar a gargalhada:
- Eu, tango? Sou o pior dançarino do mundo, quanto mais tango! Você foi com outro namorado nesse baile.
Helena balançou a cabeça:
- Nada disso. Lembro como se fosse hoje. A orquestra, a nossa turma, meu vestido novo, vermelho. E você metido num terno azul escuro.
- Não era eu. Eu não tinha terno.
- Não brinque. Veio até a mesa, me cumprimentou e me convidou para dançar. Naquele tempo era assim, lembra?
Foi quando Carlos lembrou. O terno do irmão. A mesa com refrigerantes e algumas flores. Quando se dirigiram para o salão ele disse que ela estava tão linda quanto aquelas flores, frase que lhe pareceu ridícula e da qual se arrependeu, envergonhado. Ela sorriu.
- Mas eu não sei dançar tango, Helena.
- Foi o que me disse naquele dia.
É verdade. Dissera: eu não sei dançar tango. Aliás, não sei dançar nada, sou um desastre, completou com convicção.
- Eu também disse que não sabia dançar tango.
Os dois riram.
- Foi o tango mais maravilhoso da minha vida – disse Helena. Jamais esqueci.
O segundo sinal soou, os dois aproximaram-se do portão. A primeira a chegar foi a neta de Helena, correndo. Mais atrás, arrastando uma mochila, o filho de Carlos.
Despediram-se. Helena atravessou a rua com a neta. Carlos acompanhou o filho pela calçada. Quando chegaram ao automóvel, o filho perguntou:
- Quem era aquela mulher, pai?
- Uma dançarina.
- Dançarina?
- De tango. A melhor que conheci.




domingo, 15 de fevereiro de 2015

O dia em que fundaram o PT








Que tempos eram aqueles?
Jamais saberemos. O ser humano imagina decifrar enigmas havidos há séculos, mas custa a entender o que viu com seus próprios olhos.
A explicação pode ser simples. O que vivemos é uma mescla de sentimentos e desejos e ideias e fantasias com uma pitadinha disso que se chama de realidade. E é rebelde a conceitos. Já fatos remotos podem ser depurados e pensados com clareza racional. Por essa razão imaginamos ser capazes de entender o passado.
Então, os tempos eram aqueles.
Ali na PUC/SP tínhamos aula numa saleta minúscula. Cursávamos uma coisa chamada pós-graduação em Filosofia da Educação. Vi pouca filosofia da educação ali e menos ainda quaisquer aventuras de pensamento. Recebíamos uma dieta de leituras de Marx e Gramsci, servidos com fervor religioso. Era possível discordar aqui ou ali, jamais questionar o texto em si. O sagrado, é sabido, não se contesta.
O professor era um tipo pequenino, frágil, voz quase inaudível, hesitante, apoiando a bunda na mesa, de onde não desgrudava, fazendo poucos movimentos com braços e mãos. Parecia faltar vida ao sujeito. Eu o observava com sentida piedade e julgava que dentro de sua cabeça deveriam existir cubos, retas, triângulos, todos muito bem organizados, com os quais esgrimia aquilo que chamava de dialética em busca do conhecimento histórico.
Pois num desses dias em que eu morria de tédio durante a aula – duas horas de relógio, ou seja, seis horas de duração – olhei para um colega sentado a meu lado e, sem qualquer sinal, saímos da sala. Não aguentávamos mais.
Fomos ao corredor e lá ficamos conversando. O assunto estava nos jornais. No dia anterior, 10/02/1980, no Colégio Sion, a algumas quadras de onde estávamos, fora fundado o Partido dos Trabalhadores. Havia certa euforia no ar. Meu colega me provocou:
- Acho uma besteira fundar um partido.
Eu conhecia o argumento. Partidos acabam entrando na lógica da política dita burguesa, na tal democracia formal etc., sendo mais perigosos do que se pensa. Uma arapuca.
Decidi, com alguma convicção, devolver a provocação:
- E você queria que eles fizessem o quê? A Revolução?
A Revolução, com inicial maiúscula como se usava na época, era um sólido bloco monolítico do qual não se duvidava. Sem ele, impossível pensar. Ficamos nisso. Já havíamos nos chateado o bastante na aula e deixamos para lá.
Fomos à cantina, fumamos um cigarro e uma hora depois voltamos para a aula seguinte.
Entrou porta adentro uma nova professora. Cabelos imensos, certa fúria e extravagância. Era mutante. A cada aula se metia numa fantasia diferente. Colocou livros sobre a mesa na qual repousara há pouco a bunda do professor e disparou:
- Tudo o que eu penso está comprometido politicamente. Sou engajada e estou aqui para fazer a cabeça de vocês! Defendam-se!
Eu e meu colega não conseguimos acreditar no que ouvíamos.
E talvez não tenhamos entendido até hoje. Não posso garantir. Esse meu colega sumiu do mapa e não guardei seu nome. O que é uma pena. Quem sabe chegou a entender o que se passara naquele dia. Poderia me ajudar trinta e cinco anos depois.




domingo, 1 de fevereiro de 2015

O que diria Molière dos médicos atuais?





"Morreu de quatro médicos e dois farmacêuticos"
(Jean Baptiste Molière - 1622-1673)



Tenho boas lembranças de médicos que me atendiam quando menino.
Doutor Balsini era magro, desajeitado e de um bom humor notável. Conversava, deitava na cama a meu lado e fazia palhaçadas enquanto, sem eu notar, me examinava. Eu ria e, por milagre, melhorava antes de tomar os remédios.
Homem mais sisudo, doutor Câmara era de igual competência. Pai de um amigo meu, Gastão, hoje médico homeopata em Joinville. Doutor Câmara sondava meus modestos males com exames de garganta, nariz, ouvidos, cutucões na barriga. Ríamos muito, enquanto minha mãe nos observava à distância:
- Duas crianças, dizia ela, repetindo o mesmo comentário quando o médico era o doutor Balsini.
Dois médicos célebres na Blumenau daqueles tempos – cidade que hoje só existe na minha memória. A eles acrescento Carlos Augusto de Souza, meu amigo e pediatra do meu filho e de minha neta, além de meus irmãos Cid e Élia. Médicos de uma escola antiga, calmos, compenetrados e serenos. Os três ainda na ativa.
Devo dizer que a sorte tem sido favorável comigo e até hoje precisei pouco de médicos. Para males menores, desses que se resolvem com um analgésico, um antiácido ou um anti-inflamatório. Nada de mais complicado. Como todo hipocondríaco, tenho saúde de ferro. Até o momento.
E acrescento: sei de outros médicos atuais que merecem aplausos e respeito.
Mas, como dizia João Antônio: sempre tem um porém.
Hoje saí de uma consulta com a sensação de que eles mudaram. São nervosos, agitados, gostam de papéis e de carimbos, de fichários e de uma tela e de um teclado de computador. Tenho a impressão de que errei de porta e que estou diante de um gerente de banco.
Criaturas afobadas que evaporam em poucos minutos. Fui apresentar a ele a minha rinite alérgica. Ao surgir no corredor da clínica, que parece um shopping, já o identifiquei. Corria, formulários nas mãos, engomado num jaleco branco, braçadas ao vento. Entrou no consultório, examinou o celular. Depois, olhou para a tela do micro e me chamou.
Eu esperara quarenta minutos e fui atendido em menos de cinco. Perguntou o que não ia bem, falei da rinite, ele interrompeu dizendo que não tem cura mesmo, talvez fosse necessária uma cirurgia. Sente-se aqui, disse. Sentei numa cadeira enorme, ele enfiou um tubo em minhas narinas. Retornou ao teclado e digitou velozmente.
Não me perguntou nada. Com o que trabalho, se não trabalho, como ocorrem as crises de rinite. Por reflexo, informei coisas que não perguntou. Falei de um remédio que tomo.
Não se abalou. Acho que nem ouvia. Digitava. Imprimiu a receita. De longe adivinhei os três remédios que lá estavam – meus conhecidos de outras consultas, deve ser protocolo. Lembrei a ele que um deles, com pseudoefedrina, me deixa insone. Surpreso, rabiscou outro remédio sem a droga e me deu a receita.
Cinco minutos. Levantou-se e, num segundo, estava na porta do consultório com a mão protocolar estendida na minha direção:
- Passe bem. Se não melhorar, pensaremos na cirurgia.
Ah, sim, a cirurgia. Gostam muito de cirurgias. Também gostam de longas listas de exames segundo o protocolo. Sai calado. Melhor assim.