domingo, 28 de fevereiro de 2016

A arte de furtar e de não matar mosquitos




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O Brasil é um país repetitivo. Estamos hoje às voltas com o mosquito Aedes Aegypti, o mesmo que atazanou o Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX e exigiu que Oswaldo Cruz, enfrentando feroz resistência política e popular, empreendesse uma campanha de mata-mosquito e de saneamento. Oswaldo Cruz venceu o mosquito e a imundície que sufocava a cidade do Rio de Janeiro.
Mas o mosquito retornou – mais de uma vez.
Na situação atual, o mosquito e a dengue já estão instalados há muitos anos. José Serra, quando ministro da Saúde, anunciou uma campanha para seu extermínio. A campanha teve razoável sucesso, mas, como parte das repetições do Brasil, governantes seguintes não se interessaram pelo assunto. Minguaram as verbas e as ações de controle. O aedis saiu novamente vitorioso.
Hoje, estamos sob novo ataque do mosquito, agora com suspeitas bem fundadas de que pode transmitir doenças gravíssimas.
Dilma, uma presidente sem crédito e sem prestígio, sem projetos e sem saber o que fazer, aproveita-se da situação e anuncia medidas necessárias, logo ela, que em 2015 cortou 60% das verbas destinadas ao combate ao mosquito. Pelo bem ou pelo mal, tivemos soldados nas ruas, mata-mosquitos, pulverizações, campanhas de esclarecimento etc. Note-se que as campanhas de esclarecimento exigem da população que faça sua parte – nada mais justo. Mas podemos perguntar: e a parte do governo, a começar pelo saneamento?
Mas não é apenas nisso que o Brasil é repetitivo.
Um dos livros mais importantes em língua portuguesa é A Arte de Furtar. Não se sabe quem o escreveu. A autoria atribuída ao padre Antônio Vieira não se sustenta. O autor permanecerá definitivamente anônimo.
Escrito numa prosa volumosa, barroca e abundante, fere um ponto central da vida brasileira. O livro foi publicado pela primeira vez no ano de 1744, com vários truques e despistes editoriais. Além do anonimato do autor, a menção a uma edição anterior, de 1652, que tudo indica jamais existiu. Tais truques visavam proteger o autor das punições a que estavam sujeitos aqueles que desmascarassem a presença corrosiva disso que hoje chamamos corrupção. Capturado, o autor enfrentaria a forca. Já os ladrões seguiriam soltos. Lógico.
Esse Brasil de 1744 não difere em nada do atual quanto aos trambiques representados por saques, roubos, assaltos, desvios, impunidade.
Vejam esse trecho (capítulo LXIX) sobre a impunidade então reinante e que ainda hoje é o câncer que corrói o país:

“Duas coisas há que facilitarão muito os ladrões a furtar: uma é o que sobeja neles e a outra o que falta em nós. (....) sobeja neles cobiça para nos roubarem e falta em nós justiça para os emendarmos. Bem está, assim é; mas tomara saber donde vem sobejar neles a cobiça e faltar em nós a justiça?”

Com um sistema judiciário dado a medidas protelatórias, chicanas, reduções de penas, os ladrões não tem razões para se emendar. Cometem o crime e, havendo grana para pagar advogados, a pena ficará para as calendas. Jamais será cumprida. No máximo um sexto. Ou nem tanto.
Dois exemplos aqui do Paraná. Em 2009 o então deputado Karli Filho, voando em sua máquina selvagem a 180 quilômetros por hora, ceifou a vida de dois jovens – Gilmar Rafael Souza Yared e Carlos Murilo de Almeida. Karli estava bêbado, sua carteira de motorista suspensa, ele não poderia dirigir. Pois até hoje, sete anos depois, segue livre. Deve ir a júri popular, dizem. Mas quando? E, dados os recursos que advogados inventarão, por quanto tempo?
Outro exemplo. O assassino confesso que degolou com uma faca de cozinha o escritor Wilson Bueno está em liberdade. Passou quatro anos na cadeia e, solto, foi julgado e considerado inocente em 2014 em júri popular. Está por aí, aguardando a próxima vítima.
É essa incompetência e incapacidade em punir que produz novos crimes. E produz também o sentimento de impotência na população e de prepotência nos criminosos. Enquanto isso os brasileiros vão morrendo de picadas de mosquito e sendo roubados por quadrilheiros instalados no governo.
E assim vai o país.
É verdade que nesses últimos anos, com a ação da PF e do Ministério Público, foram colocados atrás das grades algumas dezenas de bandidos. Mas não podemos nos iludir. Por mais importantes que sejam os resultados da Lava Jato, batalhões de políticos e de advogados estão à espreita para desfazer o que foi conquistado.
É bom ficar de olho.




terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A teoria conspiratória das coisas que enguiçam







Sempre julguei que a minha atrapalhação habitual explicasse o fato de que meus papéis, minhas anotações, meus livros, meus óculos e o celular, bem como as contas a pagar e documentos de qualquer natureza, volta e meia sumissem. Depois de tantos anos e profundas meditações, já não penso assim. A culpa é das próprias coisas.
Elas se mexem, se escondem, jogam-se atrás da escrivaninha, enfiam-se no vão do sofá, entram nas páginas de um livro que eu nem estava lendo e passam a dormitar por lá enquanto eu procuro onde, afinal, anotei o endereço de que preciso.
Vejam o celular. É uma espécie de besouro neurótico.
Apita – normalmente quando não deve – tremelica, recebe ligações de número que desconhecemos, some com nossas mensagens. É verdade que eu o largo em qualquer lugar da casa, exceto a geladeira, e quando preciso dele não o encontro. Só então uso esse outro objeto neurótico, o telefone fixo, animal em extinção, para achar o celular. Disco para ele. Toca, toca, diz que não pode atender, eu que deixe recado. Como deixar recado para mim mesmo, ainda que de graça, como diz a gravação? Volto a ligar. Nada. Só então, após revirar a casa e as gavetas e as mesas, o sofá e a cama, é que me lembro de que pode estar no carro, quatro andares abaixo, na garagem. Não seria a primeira vez.
Acertei. Lá está ele, quieto. Não sei como desceu tantas escadas para se ocultar justo ali, no canto mais escuro. Já aconteceu, certamente ao me ver chegando, de mergulhar para baixo do banco e lá ficar de tocaia. Só consegui retirá-lo do esconderijo com a ajudar de uma lanterna e de um lápis.
Para ficarmos no celular, tenho notado que ele tem sido tomado por impulsos suicidas. Deixei-o em cima da mesa da sala e, lá da cozinha, escutei seu chamado histérico. Estava passando um café, esperei. Foi quando escutei o estrondo. O neurótico, que além de assobiar tremelica quando me chama, deslizou pela mesa e se atirou no chão. Infelizmente não se quebrou todo. Esparramou bateria e tampa pelo chão, mas, remontado, funcionou.
Mal, é claro. Celular sempre funciona mal.
E essa é uma das características das coisas: elas conspiram. Nunca acontece de queimar uma só lâmpada na casa. Quando queima uma, outra chega ao fim. Ou o ferro de passar roupa não funciona. Ou a televisão perde o sinal. Ou o rádio é invadido por ruídos meteóricos. Ou o celular, sempre ele, perde-se no ar em busca de uma rede que não encontra.
As coisas – eis o princípio – agem em conjunto, conspirando.
Mesmo os livros, essas criaturas tão dóceis e amigas, muitas vezes entram em conluio com as coisas em geral, sobretudo se uma diarista resolve espaná-los e os enfia em qualquer vão de estante, o que faz com que livros de fotografia convivam com livros de história, os de filosofia com aqueles de música. Dia desses peguei um encontro inusitado, num canto remoto de prateleira, entre Minhas tristes putas, do Gabriel Garcia Márquez e uma biografia de São Francisco de Assis.
Temos, portanto, enguiços de eletrodomésticos, sumiços de celulares, livros que se homiziam, como dizem os repórteres policiais, em lugares indevidos e não sabidos.
Mas não para por aí.
Tenho aqui no apartamento um cano ou uma junta qualquer que resolve volta e meia pingar no apartamento abaixo. A moradora me deixa um recado por debaixo da porta: “Está pingando de novo!!”, assim mesmo, com duas exclamações, o que indica um certo limite de paciência.
Pois tem mais: só pinga quando ela vai ao espelho se pentear. Bem na cabeça. Diga-se que são pingos miúdos, de frequência incerta e humilhante, justo os mais incômodos. Não abro mais a torneira suspeita, passo a usar o outro chuveiro, informo à vizinha que tomei providências. E lá vem novo bilhete: “Continua!!”
Volto a usar a torneira e o chuveiro, o encanador vem inspecionar. Os pingos cessam. Impossível localizar de onde vêm.
Na última ocasião o encanador levou um mês para descobrir a origem do vazamento. Tratava-se de uma falha em algo chamado rejunte, que foi remendado. Deixou de pingar. Mas agora voltou. E, é claro, já não sei onde se enfiou o papelzinho onde anotei o telefone do encanador.
Tudo isso comprova minha tese de que há uma conspiração em andamento. As coisas conspiram, seja por cansaço de tanto nos servirem sem reconhecimento ou por mera molecagem.
Certa ocasião, numa viagem, começou a chover e eu tentei acionar o limpador do para-brisa. Nunca havia apresentado defeito, mas resolveu não funcionar. A chuva aumentou. Parei no acostamento e um sujeito fez o mesmo. Vai me ajudar, pensei. Ele veio, olhou, perguntou o óbvio:
- Não funciona o limpador?
E eu:
- Não. E logo agora que começou a chover.
O sujeito me deu um tapa nas costas, brincalhão:
- E você queria o quê? Só enguiça quando chove.
E voltou ao seu carro e se mandou, às gargalhadas.
Não fiquei irritado com ele. Tratava-se de um sábio, conclui. Desde então adotei a teoria da conspiração das coisas que enguiçam. Não há outra explicação.




quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A moda é viola




O violeiro. José Antônio Silva (1909-1996). Óleo sobre tela.


Eis um livro que eu pensava faltar na bibliografia da música caipira. Eu estava errado. Embora o autor, Romildo Sant’Anna, seja meu conhecido – à distância, é verdade, nos vimos em São José do Rio Preto no século passado, início da década de 1980; foi uma vez só mas foi o suficiente – eu desconhecia que ele havia cometido esse Ensaio do Cantar Caipira, subtítulo do livro A moda é viola.
Conhecia Romildo – professor, jornalista – como um estudioso da cultura popular, em especial como o pesquisador dedicado do pintor “naïf” José Antônio Silva, que o próprio Romildo apresenta assim em página da internet:

“Criado na roça e filho de humildes meeiros, José Antônio chegou a Rio Preto bem jovem, a capinar em sítios e fazendas da região. Sua disposição para a arte o chamou para a cidade, em finais de 1930. Sem eira nem beira, foi alojado com a mulher e seis filhos descalços, nos fundos do Centro Espírita Allan Kardec de São José do Rio Preto. Realizava o serviço que aparecia, de carroceiro e pedreiro a guarda-noites de hotéis. Já famoso em São Paulo na década de 1950, e por indicação do governador Adhemar de Barros, lhe foi dado emprego na Prefeitura Municipal.  Era o faxineiro da Biblioteca.  Muito antes já havia criado uma pequena Galeria de Arte em sua residência. Nem sabia o matuto da roça que estava criando o primeiro Museu de Arte na cidade que o acolhera.”

Hoje a obra de José Antônio Silva se encontra abrigada no Museu de Arte Primitivista "José Antônio Silva", em São José do Rio Preto, fundado e dirigido por Romildo.

Mas o caso aqui é a moda e a viola. Esse devorteio foi só para apresentar o autor.
Já o livro é uma alentada obra saída em primeira edição no ano de 2000 e que chegou em 2015 a esta terceira edição ampliada. São robustas 552 páginas nas quais o autor minuciosamente – mas com uma linguagem solta e agradável, cheia de vida, tal como os ponteios de viola – estuda e expõe a cultura caipira e sua música. É claro, destrói preconceitos e ideias feitas. Situa essa expressão cultural no seu meio, no seu seio – e lhe dá o devido valor. É impossível não sentir desde as primeiras páginas a paixão com que o autor se debruça sobre esse tema, que não é para ele coisa de academia, mas fonte de vida, tal como a pintura de José Antônio Silva.

Eis aí, violeiros desse Brasil afora, quem quiser falar sobre cultura caipira sabendo do que está falando tem obrigação de ler essa obra fundamental.