terça-feira, 31 de maio de 2016

Telefonando a gente se desentende









Trancafiado num estúdio a trabalhar, meu filho me pede para confirmar uma reserva de passagem aérea. Respiro fundo e sinto o golpe. Todos sabemos o que significa enfrentar telefones dessas centrais de atendimento. Temendo pelo pior, disco para o 0800 da companhia aérea.
Sou atendido por uma voz mecânica:
- Para atendimento em português, disque um, para aten...
Disco 1.
- Se for passageiro, disque 1, se for agên...
Disco 1.
Se for para tratar de reservas, disque...
Disco 1.
- Para sua segurança esta conversa poderá ser gravada...
Minha segurança? Não me sinto ameaçado a não ser pela tal voz mecânica. Alguém nos espiona? Fico perplexo sempre que ouço essa advertência.
Fim da voz mecânica. Entra voz supostamente humana:
- Aqui glub glob tchã plasht!
Que me perdoem os leitores, mas foi o que entendi.
- Alô, senhorita, pode repetir? Com a cabeça fora da água, por favor.
- Como, senhooor?
- Nada, esquece.
- Aqui é Marzita Floripes. Em que posso servi-lo?
Explico: preciso confirmar uma reserva feita por meu filho, pois no site apareceu uma mensagem dizendo que houve um problema de conexão.
- Qual o código da reserva, senhooor?
- Não é possível pesquisar pelo nome do meu filho, dia do voo, saída e destino?
- Não, senhooor.
Antes que me chame novamente de “senhooor”, prolongando molemente a sílaba final, como é costume dessas atendentes, desligo. Ligo para meu filho:
- Pedem o número da reserva.
- Está no anexo ao e-mail, diz ele.
Vou ao anexo. Lá está, em tipo cinza claro sobre fundo branco, praticamente invisível – certamente por razões de segurança. Um teste para míopes.
Refaço todo o caminho, disco 1, 1, 1 etc.
- No que posso servi-lo, senhooor?
É outra voz. Ou será a mesma? Repito toda a explicação. Informo o código de reserva. Ela diz o nome de meu filho, eu confirmo. Ufa! Vai funcionar.
- E o número do cartão de crédito, senhooor?
- Precisa?
- Sim, senhooor.
Desligo. Ligo pro meu filho. Ele me passa o número do cartão. Ligo.
Quando chego ao número do cartão, outra voz me pergunta: e o código de segurança, senhooor?
Nem espero, desligo. Ligo para o meu filho. Peço o código de segurança. Retorno. Depois que informo o código de segurança o clone da primeira voz me pede o prazo de validade do cartão.
A paciência explode:
- Mas por que não pediram antes? É o quinto telefonema que dou!
- Ocorre que jaskl prst weenuf nenúnfares, senhooor.
Desligo. Desconfio ter sido xingado. Aquele nenúnfares me parece suspeito.
Munido do código, do prazo, refaço tudo, e penso que se eu escrever sobre isso os leitores não vão acreditar. Informo todos os dados, pergunto se está tudo correto, a voz me diz, fanhosa:
- O número do telefone de seu filho, senhooor.
Ah, esse eu sei! Agora me vingo! Digo o número e a voz contesta: aqui tenho outro número, senhooor
- Tenho certeza que esse é o número do telefone, senhooora.
- Não é o número que seu filho digitou no site, senhooor.
- E qual número ele digitou?
- Não posso lhe dizer, senhooor.
Desisto. Desligo. Ligo para o meu filho.
- Você tem outro telefone?
Ele me explica que errou o último algarismo ao digitar no site. Refaço todo o caminho. 1, 1, 1, etc. Quando chegamos ao número de telefone explico que no site meu filho digitou errado o último algarismo. A nova voz, por certo percebendo que eu estava de arma em punho, diz que fará a correção sem problemas. E por que a voz anterior não o fez? Deixo pra lá.
- Bom, digo eu, está tudo certo? Não vai anotar o código de segurança?
- Não precisa, senhooor.
Fico atônito:
- Não precisa?! Mas... a outra atendente me pediu...
Ela nem me ouve e encerra o papo:
- Amanhã seu filho receberá um e-mail confirmando a reserva.
E, com voz mecânica, ela dispara a recitar entediada um texto no qual a companhia se diz muito honrada e...
Desligo. É a única vingança que me resta.




segunda-feira, 30 de maio de 2016

Algumas frases de Nelson Rodrigues



Resultado de imagem para Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues em ação. 


Para sacudir a poeira desses tempos bicudos, lá vão algumas frases do Nelson Rodrigues que ajudam a demolir a bobagem que é o politicamente correto e essas militâncias via Internet em que o xingamento grosseiro virou argumento político sofisticado e libertário. Infelizmente, não é apenas a seleção brasileira de futebol que despencou nos últimos anos para o pré-sal da mediocridade. Precisamos recuperar a ironia e o paradoxo.

Sobre a leitura:
“Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia”.
Sobre a imprensa:
“Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de ‘ilustre’, de ‘insigne’, de ‘formidável’, qualquer borra-botas”.
Sobre defeitos humanos:
“O ser humano é cego para os próprios defeitos. Nem o idiota se diz idiota. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: ‘Senhoras e senhores, eu sou um canalha’”.
Sobre amor e dinheiro
“Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”. “Há homens que, por dinheiro, são capazes até de uma boa ação”
Sobre o amor possível
“Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”.
Sobre o beijo na boca:
“O verdadeiro defloramento é o primeiro beijo na boca. A verdadeira posse é o beijo, e repito: — é o beijo na boca que faz do casal o ser único, definitivo.”
Sobre o povo brasileiro
“Cada brasileiro, vivo ou morto já foi Flamengo por um instante.” “Se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro”.
Sobre políticos:
“Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais doce político, tenha senso moral”.
Sobre santos e pulhas:
“Façam a seguinte experiência: — ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Não convencerá ninguém. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto”.
Sobre qual seu conselho aos jovens:
“Envelheçam!”.
Sobre o triunfo do idiota:
“O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”. “Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores”.
Sobre maturidade:
“O adulto não existe. O homem é um menino perene.”
Sobre seu epitáfio:
“Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”’.




quarta-feira, 11 de maio de 2016

O que poderia ter sido








E ela, como seria?

Olho em volta como se pudesse encontrar algo que me ajudasse a imaginar como ela seria. Bobagem. Fantasia. Não há como saber. Não há nada a saber.

Apesar disso, resolvo fazer umas contas, eu que sou péssimo com números e com cálculos e com datas e endereços – quer dizer, com quase tudo.

Gasto um bom tempo procurando lembrar como tudo aconteceu e onde eu estava. Não preciso de muito esforço. Jamais esqueci. O quarto, a janela ao lado, o dia que acompanhei desde o início da madrugada. Meu filho estava comigo e nós dois esperávamos. Quietos, sem trocar palavra. Ele saia do quarto dele, vinha pelo corredor, chegava à janela do quarto, onde eu fazia de conta que lia um livro. Logo ele retornava a seu quarto, inquieto. Eu seguia de cara enfiada no livro.

Foi nesse dia, a data não consigo precisar. Mas creio que ela teria agora uns 27 ou 28 anos. Digamos que seja vinte e oito - os números pares me parecem sempre mais simpáticos.

Ela tem 28 anos. Já terá feito alguma faculdade, quem sabe fale inglês com fluência e, como todos os de sua geração, pense em estudar nos EUA. Tem namorados, como convém. Uns vão, outros vêm. Eu me divirto trocando de propósito o nome deles.

Não, tudo isso é clichê.

Ela seria uma bela jovem mulher de 28 anos, teria cabelos claros como os do irmão, e seria agitada, eis aí. Agitada, falante, metida. Adoro mulheres jovens e metidas, donas de seus narizes. E seu rosto seria muito bonito. Muitas vezes eu ficaria olhando para ela disfarçadamente em busca de traços de seu irmão, seus tios, avós, mas não encontraria nada disso. Por alguma razão que não entendo, ela seria diferente de todos, ou melhor, uma mistura inédita que dissolveria todas as semelhanças embora fosse capaz de lembrar todas elas.

Vou até a janela, como meu filho foi naquele dia distante, e acho que estou delirando. Melhor parar com isso. Aliás, essas lembranças começaram, sem que eu percebesse, quando rabiscava um rosto de mulher num pequeno pedaço de papel. Ao perceber isso, sou tomado por uma urgência de rever o desenho. Foi feito num pequeno papel de recados, desenhei no verso casualmente enquanto não pensava em coisa alguma e esperava que alguém atendesse ao telefone.

Reviro meus papéis, abro e fecho cadernos de anotações. Mas cadê o papel? Por quase meia hora me debato pela casa para afinal encontrá-lo caído prosaicamente junto ao pé da mesa.

Acontece que o desenho não me diz nada. O rosto que ali está é demasiado sério e com certeza não é o de uma jovem mulher de 28 anos. Não sei por que me lembrou de... Como se chamaria? Não consigo lembrar, o nome já estava escolhido, mas sumiu de minha memória.

Largo o papel sobre a mesa e digo a mim mesmo que preciso tomar um café. Preciso acordar dessas fantasias. Afinal, ela não existe e nunca existiu. Ou terá existido? Claro, existiu por uns meses.

A verdade é que poderia ter sido uma moça muito carinhosa, talvez tivesse paciência com minhas manias, compreendesse meus tormentos, quem sabe fosse ao cinema comigo. Quando, distraído, eu saísse de casa sem pentear os cabelos ou com os botões da camisa abertos, chamaria minha atenção.

Antes disso teria sido uma menina sapeca e faladeira. Uma pequena alma cheia de alegria.

Afinal veio o telefonema que esperávamos desde a madrugada. Foi breve e definitivo. Fui à janela, onde meu filho me aguardava imóvel, olhos perdidos no ar. Eu o abracei e não foi preciso trocarmos qualquer palavra.

Por isso não está hoje conosco essa bela jovem mulher de 28 anos, dona de seu nariz, linda, cabelos alvoroçantes, atrevida, capaz de me dar um abraço, de pular no meu pescoço e quase me estrangular com sua furiosa euforia.

Lembro: se chamaria Ana Carolina.
Fica vivendo em algum universo paralelo fabricado pela minha memória – é lá que costumo depositar o que poderia ter sido, mas que não foi. O que me permite pensar nessa filha que não tive e em minha história para sempre incompleta.