sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A última de Lula, o farsante


No último dia de mandato, no último dia do ano, Lula, o farsante, aproveitou o apagar das luzes para não nos surpreender. Recusou a extradição de Cesare Battisti para a Itália, país no qual, em tempos de absoluta normalidade democrática, esse sujeito matou quatro cidadãos, tendo sido julgado e condenado conforme prevê a lei italiana.
Decidindo contra a justiça e o bom senso, afagando e afetando um esquerdismo oportunista, quem nega a extradição de um assassino julgado e condenado pelas leis de um país democrático, é o mesmo Lula de sempre. O mesmo que estava ao lado de Fidel quando um preso político morreu em greve de fome – Lula não deu um pio. O mesmo que afagou o afegão Armadinejad, certamente um grande vulto democrático que deve ser defendido. O mesmo que venera o histriônico Chaves com cujas vestes vermelhas e ridículas vestiu sua sucessora. O mesmo. O que disse nada saber. O que disse que uma coisa é estar no poder e outra na oposição. O mesmo que queria o terceiro mandato contra tudo e contra todos. O mesmo que tem pela democracia um desprezo absoluto, a não ser quando ela se presta a seus desejos. O mesmo que, ontem, disse que se divertia ao ver os países da Europa e os EUA em dificuldades.
Lula, o que não surpreende. O mais assombroso e rasteiro oportunista na história desse país.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Lula chora e vai embora.


Assistimos ao espetáculo patético de um presidente da república que choraminga país afora porque seu mandato chegou ao final. Não é sem razão. É o mesmo personagem que fez várias manobras apostando num terceiro mandato. O mesmo que enfiou goela abaixo do PT e da nação uma sucessora – que veio do nada e chegou aonde chegou – e que poderá lhe ceder a cadeira em 2014. O mesmo que disse há poucos dias que gostaria de receber uma herança bendita de um governante como ele próprio. Enfim, um megalomaníaco estufado – física e psicologicamente – com o próprio ego transbordante. O inventor da frase segundo a qual “nunca antes na história desse país” etc., frase, aliás, que se baseia na mais completa ignorância da história do tal país. Mas, como Lula não é o único ignorante da nação, ele diz o que bem entende e oitenta e tantos por cento da população aplaude e pede bis.
Repito: como disse Gonzaguinha, “vocês merecem”.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Telefonar faz mal à saúde?


Uma senhora americana, doutora por alguma universidade daquelas redondezas e dirigente de uma Ong, anda fazendo campanha para que não se use celulares. Dá câncer, diz ela. Diminui pela metade a produção de espermatozoides. Terá ela alguma prova disso? Confessa que não tem. Suspeito que não fez nenhuma contagem da taxa de espermatozoides, mas fica indignada quando lhe pedem provas; diz que é preciso agir de imediato e não esperar provas para agir quando já for tarde demais.
Que maravilha de lógica, não é mesmo? Professora universitária. Doutora.
Pois eu fiquei aqui matutando a respeito de outros alarmismos semelhantes a essa advertência da professora.
O amigo leitor já fez um levantamento de quanta coisa já foi acusada de ser fatal para a nossa saúde? O Jamil Snege se atormentava com essa questão e, diante do volume de coisas maléficas a nossa volta – todas deliciosas, aliás – acabou chegando à conclusão de que “viver faz mal à saúde”. Conclusão irretocável. Aos mortos pouco importa a qualidade dos alimentos, o mal causado pelos agrotóxicos, o fumo ativo ou passivo, os celulares. Os problemas só aparecem quando se trata de quem está vivo. Quem está vivo é que é o problema.
Foi aí que me lembrei do tomate. Já foi crucificado como a pior praga gerada pela lavoura. Acusavam os japoneses de terem entupido os tomates com antifungicidas, venenos, defensivos etc., pois, era dito, só isso explicaria que os tomates ainda existissem. Deixados a si mesmos, teriam sumido há muitas décadas. Seriam resíduos pré-históricos capazes de gerar tantas e tais doenças que nem era bom pensar. Bombas recheadas de veneno, assim eram vistos os tomates.
Pois não é que eles se recuperaram? Japoneses e não japoneses continuaram a produzir tomates, a turma não deixou de comê-los, hoje já existem tomates com grife de orgânicos. Foram vencidas as pragas, as calúnias, os medos. E mais: descobriu-se que o tomate faz bem à saúde, tendo várias virtudes, entre elas a de prevenir câncer, em particular o de próstata. Dizem ser rico em licopeno, vitaminas, fósforo, potássio.
Não é pouco para quem esteve à beira de uma condenação capital.
Outra praga era o café. Um mal medonho, causador de azia, má digestão e úlcera. Produzia nervosismo, taquicardia, insônia. Campanhas foram disparadas, o café cambaleava e muita gente passou a evitá-lo e a falar mal dele. Os que tinham úlcera lamentavam serem obrigados a evitar um simples cafezinho.
Eis que se descobre não apenas que o café não tinha nada com isso, mas também que a úlcera não é causada pelo cafezinho. Antes mesmo que o café estivesse à mingua, ele voltou a ser saudado como aquilo que sempre foi: um prazer inigualável, uma bebida digna dos deuses. E mais: quem passou a ocupar o papel de vilão foi o açúcar – ele faria mal, não o café.
Hoje, o café deixou de ser uma espécie de primo pobre entre as bebidas e é servido e cultivado por baristas, passado em máquinas sofisticadas, tendo uma variedade enorme de tipos e de qualidades. O que não impede que, na maioria dos casos, o café servido no Brasil seja da pior qualidade, sem contar o hábito pavoroso de ser servido já adoçado.
A única ameaça atual ao café, a meu ver, é o surgimento de especialistas equivalentes aos sommeliers. Com seus discursos complicados, os conhecedores são capazes de nos desanimar diante do simples ato de beber um bom vinho ou um bom café.
Agora, essa senhora ataca os celulares. Confesso que não sei se ela tem ou não razão. Eu, que não gosto de telefones, fixos ou móveis, só aderi ao celular há poucas semanas, depois que uma falha no meu carro me deixou às três da madrugada numa rua deserta e sem ter como chamar socorro. Comprei um celular para uso exclusivo em emergência, cujo número não revelo nem sob tortura.
Mas, apesar de minha bronca com telefones em geral, fico pensando se dentro de alguns anos não serão descobertos os benefícios dos celulares.
Baseado no caso do tomate e do café, defendo, profeticamente, que o celular não faz mal algum à saúde. Saúde física, acrescento. À saúde mental, que me perdoem os adeptos, faz um mal danado.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Decálogo da República Brasileira


1 – Estão burlando a “Lei da Ficha Limpa” na maior cara de pau.  Já livraram a cara dos Garotinhos (ele e ela) e estão livrando o notório Paulo Maluf. Logo, logo, todos estarão limpinhos. De cara limpa.
2 – Lula, fazendo seus habituais gestos afetados diante dos microfones, já armou a cilada: CPMF deve voltar; dona Dilma, na moita, manobra nessa direção. Como disse Gonzaguinha: “Vocês merecem".
3 – 60% de aumento para os deputados;  qual foi o aumento que v., prezado leitor, recebeu nessa virada de ano?
4 – Na plateia, o processado chefe do mensalão, José Dirceu, afinal se mostrando em público. Na mesa, o futuro homem forte do governo Dilma, Palocci, processado por violar sigilo bancário daquele  jardineiro. Também na mesa, o dublê de mordomo Michel Temer, o vice, que faz de conta que não manda na maioria dos ministérios. Modesta profissional quando lhe convém, a senadora Marina Silva, anotava coisas num papelzinho – tímida, silenciosa, sabe-se lá no que ela pensa ou acredita.
5 - Ao microfone, Lula explicou que quando falava em “nunca antes na história desse país etc. etc.” não queria dizer que estava inventando o Brasil. Mas que “fez o que os outros não fizeram”. Lá isso é verdade. Melhor se tivesse reinventado o Brasil.
5 - Na despedida, Lula cometeu o óbvio ato falho do sonho do terceiro mandato, na direção do qual manobrou nos últimos quatro anos. Ele confessou “como eu gostaria de ter herdado um país para governar depois do presidente Lula”. E não herdou? Freud não falha.
6 – Diz Lula que não interferiu na escolha do ministério Dilma. Acreditamos. Também acreditamos que ele não sabia de nada, que não houve mensalão etc. etc. Nós acreditamos em tudo. Ao menos aqueles  oitenta e tantos por centos dos brasileiros que batem palma e pedem bis.
7 – O delírio de grandeza de Lula não se refere apenas a ele próprio. Trata-se de um delirante paranoico coletivo ao afirmar “que duvida que qualquer governante do mundo tenha um vice como eu tive”. Lula, como se sabe, conhece todos os governantes do mundo de todos os tempos e seus respectivos vices.
8 – O Franklin Martins, ministro da Comunicação de Lula, saudou a “tremenda presidente” que fará um “tremendo governo”. Além de sofrer com a pobreza estilística, o ministro me deixou  trêmulo diante da nova invenção do Brasil que se anuncia.
9 - Na mesma batida, Jacques Wagner, governador da Bahia, alegou que Lula transformou oito anos em oitenta.  Do ponto de vista de quem aguardava com ansiedade o final desse governo, até que concordo.
10 – Como diz Hélio Fernandes: “Que República!”

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Brinde de fim de ano: Millôr Fernandes


Primeiro brinde: um dos poemetos do Millôr; é de 1949:

ODE A UM QUASE CALVO

Ontem, hoje
e amanhã
o homem o cabelo parte
parte o cabelo com arte
até que o cabelo parte.


Segundo brinde, essa frase do mesmo ano:

“A pedra, que no papel nem serve para desenhar uma reta,
dentro d’água faz círculos perfeitos.”


A mentira sempre governou e escreveu a história


A presidente eleita anda declarando por aí que receberá de seu antecessor uma “herança benigna”. A expressão faz menção àquela de Lula, que disse ter recebido uma “herança maldita” de FHC.
Como durante todo o governo FHC publiquei críticas contundentes a seus desacertos, me sinto à vontade para esclarecer o seguinte. Naqueles oito anos, apesar dos absurdos políticos e administrativos e das bandalheiras que envolveram as privatizações, o país foi arrumado financeiramente pelo Plano Real, do que Lula se beneficiou, motivo pelo qual só fez repetir a política financeira e econômica de FHC.
Falar em “herança maldita” é um chavão eleitoreiro e populista, assim como trombetear a respeito de uma “herança benigna”. Insistir nessa crítica é demonstração de que os Lulistas – informo aos desavisados: não existe mais PT, existe Lulismo – não apenas estão escrevendo mal a história do Brasil; também estão ensinando erradamente o que ocorreu na história do país. Um mínimo de honestidade intelectual exigiria que tratassem os oito anos de FHC com seriedade e não com demagogia barata. Deveriam apontar seus gravíssimos erros – que não foram poucos – e reconhecer seus acertos.
Mas, como políticos brasileiros não são sérios, Dilma e Lula jamais abrirão mão da molecagem politiqueira em favor da análise histórica.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Não estranhem os estrangeirismos


Com alguma regularidade, volta-se a discutir o que pensar a respeito do uso de palavras estrangeiras na língua portuguesa. Há mesmo um deputado com um projeto maluco pretendendo proibir estrangeirismos – a febre legislativa dessa gente é indomável.
O curioso é que a questão é apresentada como se fosse nova, algo que só atualmente, com a informática, os filmes americanos, a música pop, a linguagem dos técnicos em administração e economia, estivesse acontecendo.
Aí começa o equívoco, que acaba levando de arrasto uma série de discussões que se transformam num show (olha o estrangeirismo!) de desencontros. Basta uma olhada nas palavras que usamos para descobrir, com uma grande frequência, a intromissão de vocábulos de outras línguas. Coisa que não é nova.
Uma primeira coleção de palavras ingressou no português vindas dos idiomas indígenas, talvez mais do que suspeitamos. Vejam só: o saboroso guaraná, a inocente paçoca, o Maracanã, a afoita perereca, etc. Sem falar no magnífico urubu. Além disso, nomes de lugares e de pessoas.
A seguir, palavras que vieram de línguas africanas. Começa pelo samba, a senzala, a batucada, o bafafá. E o esporte nacional, o fuxico. O quiabo e o dendê. Como contar a história do Brasil sem falar em cangaço e da música popular sem falar em berimbau? E a bagunça política? O menino pode ser guri ou moleque. O cachimbo, o macaco e a quitanda. E há a onipresente e imbatível - no bom sentido - bunda.
Todo esse vocabulário já está incorporado definitivamente ao falar e escrever brasileiro, embora exista quem pense que tais palavras sejam portuguesas. Então, viria a pergunta: o que faremos com tais palavras, caso nos obstinarmos a espantar todo estrangeirismo?
Mas não é só. Antes do inglês, através dos dois impérios recentes – Grã-Bretanha e EUA – o francês era bastante falado no Brasil (não por todas as classes, como é óbvio) e deixou pelo caminho muitas palavras e expressões que incorporamos há muitas décadas, na verdade há mais de um século. Lá vai: maiô, complô, batom, tricô, sutiã, guichê, metrô, vanguarda. E o indispensável garçom. Eu passei a infância chamando armário ou prateleira de etagér (étagère).
Depois veio o inglês, que tanta preocupação desperta nos puristas. Mas não é raro esquecermos contribuições, não desprezíveis, vindas das línguas faladas por imigrantes italianos, espanhóis, alemães etc. Influência, como todas as outras, que se dá não apenas no vocabulário, mas no próprio modo de produzir frases e expressões. Penso especialmente no italiano, de grande presença no linguajar popular brasileiro, mas também no texto literário, sobretudo de escritores paulistas, gaúchos, paranaenses e catarinenses. De Adoniran Barbosa a Sérgio Faraco, o italiano está sempre presente. De minha parte, lembro que usei vocábulos e formas de expressão com influência italiana quando escrevi o romance Os dias do demônio, que se passa no sudoeste do Paraná.
Essa falsa polêmica contra os estrangeirismos ignora o que ocorreu com a língua portuguesa quando veio ela própria transplantada para o Brasil. E é interessante lembrar que o “perigo” dos estrangeirismos é relativo e muito exagerado. Assim como certas palavras ou expressões foram incorporadas, outras sumiram depois de um sucesso momentâneo. Há algumas décadas, tudo que era grande, importante, admirável, marcante, era chamado de big – pois é, sumiu. Calça feminina, comprida, era chamada de eslaque (do inglês, slake) – hoje pode parecer ofensa.
O uso assimila ou rejeita certas modas. É tudo. E isso só faz enriquecer a língua. A língua que hoje falamos ou escrevemos, está muito longe daquela falada pelos primeiros portugueses que vieram para o Brasil, e também está distante da língua que se fala hoje em Portugal. Enfim, a língua é algo vivo, dinâmico, mutante e, como todo organismo vivo, assimila, rejeita ou transforma, conforme as circunstâncias, aquilo com que entra em contato.
Enfim, alguma paciência e certa dose de antropofagia, como queria Oswald de Andrade, poderiam colocar ordem nessa polêmica inútil.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Drummond de Andrade aos olhos da menina Maria Julieta

Essa raridade foi publicada pelo jornal O Trem Itabirano, do qual falei dia desses. Reproduzo aqui para dividir com todos a beleza que os olhos de uma criança podem nos proporcionar quando retratam o próprio pai.


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Moacir Santos, música quase absoluta


Quem me ensinou a gostar de Moacir Santos foi meu filho, João Marcelo. Garanto existirem poucas coisas mais prazerosas do que aquelas que aprendemos com nossos filhos.
Então aluno de música, ele passou a pesquisar com obstinação a obra de Moacir. Encontrou LPs raros, CDs, coisas baixadas pela internet, MP3s, livros, artigos, teses etc. De tudo isso, resultou sua dissertação de mestrado e um show em homenagem a Moacir (Teatros Guaíra, 2006, SESC e Guairinha, 2007), do qual participou tocando contrabaixo acústico (entre nós conhecido como Baixo Gordão).
Até então eu sabia do criador de “Coisas” apenas aquilo que todos de minha geração ouviram no Samba da Benção, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, quando o poetinha pede: “a benção Moacir Santos, tu que não és um, és tantos, como este meu Brasil de todos os santos”.
Aprendi não só a ouvir Moacir, mas fiquei sabendo que nascera na pequena cidade de Flores, Pernambuco, em 1926. Órfão, saiu pelo mundo, realizando um destino com o qual todos sonhamos quando meninos: fugir com um circo. Tocou em bandas, aprendeu todos os instrumentos, escolheu o saxofone, veio para o Rio, foi assistente de Koellreuter e professor de toda a turma da Bossa Nova. Fez música para cinema – Canga Zumba, entre outros – e foi para os EUA em 1967.
Conhecedor de música clássica – onde as composições são chamadas de Opus 1, Opus 2 etc. – resolveu denominar suas obras assim: Coisas 1, Coisas 2 etc. Daí o nome de seu disco mais famoso, recheado de obras-primas: Coisas. Como bom brasileiro, herdou e assimilou a herança clássica européia e a transformou numa música da melhor qualidade, mesclando influências da música brasileira, africana, caribenha.
Um gênio, enfim.
Moacir só voltou ao Brasil já idoso, quando recebeu homenagem organizada por Mário Adnet e Zé Nogueira, com um show e a gravação de Ouro Negro. Faleceu uma semana após completar 80 anos.
Por isso escrevo essas coisas como agradecimento a meu filho e a Moacir Santos. E convido a todos: ouçam Moacir, é puro deleite, é quase divino.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

A leitura sem fim


Como todos aqueles que um dia foram fisgados pelo vício da leitura – as razões e as motivações são as mais diversas possíveis, mas o resultado é um só – eu também coloquei na cabeça que deveria ler todos os livros do mundo. Aos treze anos, quando a febre começou, compreende-se. Nessa idade podemos tudo e teremos tempo para tudo. O problema é que sabemos pouco. Uma das coisas que não sabemos: o número de livros existentes no mundo.
Muitos anos depois, quando eu já havia me livrado da agonia em ler “todos os livros do mundo”, encontrei em uma entrevista de Wilson Martins a mesma tara leitora. Disse o Wilson que seu projeto de leitor iniciante era ler todos os livros existentes e foi em frente até descobrir que isso era impossível. É bem verdade que ele acabou lendo muito mais do que todos nós juntos, simples mortais mais ou menos preguiçosos – o homem era uma fera nesse ofício de leitor, o que sempre me deixou com uma enorme inveja.
O que importa é que, tendo passado a vida com o nariz enfiado no meio de livros, nem por isso vi diminuir sensivelmente duas coisas: a quantidade que restava a ler e minha sensação de que, por mais esforço que fizesse, não conseguiria diminuir os domínios sobre os quais eu continuava tendo uma robusta ignorância.
Os livros que não li, portanto, são infindáveis, além de aumentarem a cada dia, pois sempre há quem escreva novos livros – aliás, em certos casos o número de autores me parece maior do que o número de leitores. Essa equação que descreve os livros que não li, portanto, se assemelha àqueles problemas matemáticos nos quais surge um número qualquer que jamais podemos limitar: ele cresce sempre e passa a ser considerado infinito. Um infinito numérico, não o infinito atrás do qual andam os filósofos, os teólogos, os místicos e os astrofísicos.
Foi quando cheguei a nova etapa como leitor. Percebi que existiam, além dos livros lidos e dos livros que não li, uma quantidade infinita de livros que jamais lerei. Trata-se de início de uma impossibilidade física – pela quantidade infinita – mas que se associa a um fator existencial: o tempo. Ou seja, o tempo que cabe a cada um de nós viver. Foi quando lembrei, vejam só, do famoso e divertido play-boy Jorginho Guinle, que tinha uma coleção assombrosa de discos (LPs 33 rotações) com tudo que havia de melhor no mundo do jazz. Quando li uma descrição do que havia nessa discoteca, fiquei pasmo. Fui assaltado por um desejo de pedir licença para ouvi-la do começo ao fim. Nova decepção. O próprio Jorginho confessou em entrevista ter feito umas contas esquisitas. Calculou o número de discos que possuía, multiplicou pelo número médio de canções em cada um deles, em seguida multiplicou pelo tempo médio de duração de cada faixa – concluiu que não lhe restava tempo de vida para ouvir tudo aquilo, mesmo que não fizesse outra coisa. Se bem me lembro, Jorginho doou sua discoteca, ou a maior parte dela, e ficou com aqueles discos que considerava essenciais. Era o possível. Era o tempo que lhe restava.
Eis como se aprende que a vida é limitação e frustração contínuas. O mesmo que vale para os discos, vale para os livros, os lugares, as pessoas, os filmes, os poemas, os vinhos – tudo, enfim. A humildade é algo que aprendemos à custa de pancadas que o infindável de tudo e os limites do tempo nos dão no lombo.
Resta, portanto, selecionar. Aos poucos, a biblioteca que acumulamos vai nos parecendo demasiada. Lemos tudo ou quase tudo, mas o melhor seria escolher aqueles que realmente são nossos preferidos. Aqueles que relemos – ao menos é o que faço – de forma meio aleatória, numa espécie de vagabundagem literária. Pego o livro, releio uns trechos sem pressa, saboreando cada palavra e parágrafo, e depois devolvo o volume à prateleira. Voltarei a ele um dia. Se voltar.
Mas, como a sede de infinito – não mais no sentido numérico – parece não nos abandonar, volta e meia me assalta a ilusão de que, entre tantos livros, deve haver algum que me proporcione o prazer que me causou outra categoria de livros: aqueles que caíram em minhas mãos na hora certa. É uma experiência única: nós e o mundo jamais seremos os mesmos. O que reacende a esperança.
É quando recomeço.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Embarque n'O Trem Itabirano


Itabira, nós conhecemos. Quer dizer, conhecemos a Itabira dos poemas de Drummond. Para todos nós ela é aquele retrato na parede, independente da cidade de onde viemos. Em resumo, Itabira é onde nascemos.

Mas, se alguém quiser conhecer Itabira mais de perto, faça a assinatura de O Trem Itabirano, um jornal cheio de humor, molecagem e indignação. E com algumas raridades também. Na edição que acaba de sair, há um desenho do poeta feito por sua filha Maria Julieta quando tinha cinco anos. Além de trechos da introdução de um livro que será lançado em breve com cartas trocadas entre Mário de Andrade e o historiador itabirano Luiz Camilo de Oliveira Netto.

Mas não é só de Drummond que fala O Trem. Fala de tudo – e como fala! Numa página, Leonardo Boff pergunta a quem pertence a Terra e, mais adiante, encontramos o anúncio espantoso: Juliana Paes e Reynaldo Gianecchini pelados em Itabira!

Vale a pena pegar Trem Itabirano.

Para assinar – pode-se receber também a edição em PDF - telefone para (31)3835-1329 ou clique aqui: otremitabirano@yahoo.com.br. – para obter mais informações.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Meditações que medito

Quando me disseram – faz algum tempo – que o Paulo Coelho iria escrever um livro infantil, eu, distraído como sempre, perguntei: mas não é isso que ele sempre fez?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Luiz Gonzaga Jr., o notável moleque



O leitor terá, tal como esse cronista desatento, certas lembranças que se fixam em sua mente de uma forma definitiva. Podem desaparecer por uns tempos, mas retornam. São frases, situações, rostos ou imagens que, por algum motivo, ficam presentes em nossa memória para sempre. São às vezes coisas que pertencem a uma época, a uma geração e, outras, apenas a um indivíduo.
Escrevo tudo isso para dizer que tenho sido perseguido por uma lembrança desse tipo. Assisti na televisão, que é onde há décadas vemos o que se passa no mundo. Umberto Eco tem uma observação genial a respeito. Diz ele que situou a ação do romance O nome da Rosa na Idade Média porque dessa época ele – professor de filosofia medieval – tinha um conhecimento direto, enquanto que, do século XX, apenas através da televisão.
O ano era 1973. Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha, até então um cantor e compositor quase desconhecido, participou do programa Flávio Cavalcanti para apresentar a canção Comportamento Geral.
O programa tinha grande audiência e Flávio o usava para decretar que mundo lhe parecia melhor, auxiliado por um grupo de desfrutáveis que ocupavam o lugar de jurados, ali colocados como se fossem entendidos em música popular. Nesse dia, do qual lembro muito bem, se apresentou o Gonzaguinha.
Ele era um tipo magro – na verdade, magérrimo, pois nunca essa palavra se ajustou tão bem a um tipo físico – e um crítico feroz da burrice geral da época e da ditadura militar então em vigor. Acusavam-no de ser mal humorado, chato, impertinente. Volta e meia alguém procurava falar dele como sendo um sujeito ingrato que tinha problemas com o pai – o semi-deus Luiz Gonzaga, músico e sanfoneiro magistral – como se ter problemas com o pai fosse uma exclusividade dele ou dos então chamados “subversivos”.
Gonzaguinha cantou Comportamento Geral, canção na qual arrolava várias das misérias nacionais da época. A letra dizia: “Você merece, você merece / Tudo vai bem, tudo legal / Cerveja, samba e amanhã, seu Zé / Se acabarem com o teu Carnaval?”
Os olhares do histriônico Flávio Cavalcanti faiscavam em fúria. Seus jurados se retorciam indignados. Era possível prever que algo ia acontecer, até os holofotes do auditório ameaçavam explodir em chamas.
Terminada a apresentação, Flávio e seus asseclas massacraram a canção com os piores adjetivos que conheciam e que podiam colocar no ar: ruim, feia, pessimista, chata, monótona. Gonzaguinha só ouvia. E a pancadaria continuava: rancoroso, do contra, pessimista.
Foi quando Gonzaguinha se aproximou do microfone. Calmo, frio e impessoal como só um magro consegue ser, olhou para o Flávio, para os membros do júri e, antes de se retirar tranquilamente, disse:
- Vocês merecem.
Até então um compositor pouco conhecido, a partir da participação no programa de Flávio Cavalcanti – que virou notícia em função de sua tirada cirúrgica e cruel – tornou-se um sucesso de venda e seu compacto, que andava encalhado nas lojas, esgotou em poucos dias. Não demorou a ser convidado a lançar novo disco.
Como era de se esperar para a época, o DOPS – órgão governamental dedicado a bisbilhotar a vida de todo mundo e que decidia o que se podia publicar, gravar, levar ao teatro ou falar em sala de aula – apressou-se em chamá-lo para depor e passou a censurar suas músicas, entre elas a própria Comportamento Geral, que foi proibida. Para selecionar dezoito músicas para disco seguinte, Gonzaguinha precisou apresentar setenta e duas à censura. Flávio Cavalcanti e sua trupe de jurados por certo se sentiram vitoriosos nesse momento, mas para sempre ficou no ar a tirada apocalíptica e moleque de Gonzaguinha:
- Vocês merecem.


domingo, 7 de novembro de 2010

Tentativa de censura a Monteiro Lobato

O Brasil, país autoritário, além do delírio legislativo – tudo deve virar lei – tem demonstrado inclinação pela censura. O deputado federal do PCB, Aldo Rebelo – virtuoso estilista da língua, como todos sabemos – já quis eliminar o uso de palavras de origem estrangeira. Agora, outro deputado pretende a proibição de nomes próprios estrangeiros. Aliás, pergunto como é que fico: Roberto é um nome que vem de algo como “Hruoberaht” e se difundiu a partir do alemão Rodebert. Deverei trocar por Manoel? Peri?


Grave e não menos circense é, no entanto, a polêmica em que nos envolveu o Conselho Nacional de Educação, que baixou parecer acatando censura ao livro de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Os iluminados conselheiros do CNE farejam nele indícios de racismo, desprezo pelos animais e pela África, e exigem que só possa ser publicado com uma nota advertindo sobre os “desvios” da obra.

Marisa Lajolo, hoje a maior especialista em Lobato, reagiu contra a sandice:

“Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.
O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma autocrítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?”

A questão, como ocorre com todos os problemas mal formulados, é insolúvel e infindável. Em primeiro lugar, que “racismo” existiria em Lobato, se existe? Em segundo lugar, deveríamos supor que os leitores só devem ler o que desejamos que leiam? Só devem fazer do livro a interpretação que preferimos?

Lembro a propósito um trecho do romance O Jogador, de Dostoievski. Diz o texto que “Estava no hotel nesta ocasião um conde polonês” – e acrescenta, entre parêntesis, com cirúrgica ironia: “(todos os poloneses em viagem são condes)”.

Deveriam os poloneses censurar Dostoievski? Proibir o livro? Deveriam se unir aos condes para vingar a ironia? Deveriam acrescentar ao livro uma nota explicativa encomendada aos iluminados do CNE?

"A presidenta está contenta?"


Passamos oito anos ouvindo muitos atropelos à pobre língua que falamos. Agora, seria bom que ao menos não escangalhassem, por simples ignorância ou delirante feminismo, a palavra que designa o cargo ocupado pelo presidente do país.

Por isso, divulgo o texto esclarecedor do Dicionário Aulete Digital (que você pode baixar em seu micro gratuitamente - vale a pena):
Durante toda a campanha, a candidata eleita Dilma Rousseff usava em seus discursos o termo presidenta, como forma feminina de presidente. Na verdade, os substantivos e adjetivos de dois gêneros terminados em -ente não apresentam flexão de gênero feminino (e nem masculino, afinal, são de dois gêneros). Por esse motivo, não se diz "a gerenta", "a pacienta", "a clienta" etc. Caso fosse correto o uso de "a presidenta", por coerência, diríamos que "a presidenta está contenta" e “o presidente está contento”?

Então, em benefício de nossos ouvidos, livrem-nos ao menos dessa tortura.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Wilson Martins e a História da Inteligência Brasileira


Obra de um homem que era dono de uma erudição generosa e fértil, e que dispunha de uma capacidade de trabalho assombrosa, essa História da Inteligência Brasileira é uma fonte indispensável de pesquisa para quem deseje entender a evolução da cultura brasileira.
Num país em que predomina a ligeireza improvisadora ou a pseudo-erudição dos que escrevem para um círculo fechado de acadêmicos, a obra de Wilson Martins é louvável por todas as razões. Abrange um período que vai de 1550 a 1960 e varre com cuidado e até com certa minúcia tudo que foi produzido em termos de cultura literária durante esse imenso espaço de tempo. Não é obra para iniciados – ao contrário, inicia seus leitores no universo literário – e se lê com prazer.
Nessa edição, são 4.606 páginas, divididas em sete volumes, que receberam um cuidadoso trabalho de editoração e de planejamento gráfico. Além disso, o autor, que faleceu no início de 2010, aos 88 anos de idade, teve tempo de fazer ele mesmo a conferência da edição, o que a torna ainda mais valiosa.
Não resisto e sugiro à Editora da UEPG que pense na possibilidade de tornar disponível o texto dessa obra para pesquisas on-line na internet. Com as facilidades de busca que a rede oferece, seria uma contribuição notável a estudiosos, pesquisadores e mesmo a curiosos, pois, além de outros méritos, esse livro de Wilson Martins interessa e é acessível ao leitor comum, que é o grande alvo de toda divulgação cultural.

NOTA: História da Inteligência Brasileira pode ser adquirida em livrarias ou diretamente no site da editora da UEPG – www.uepg.br/editora - por R$ 270,00, um preço que só uma editora universitária seria capaz de bancar. Os volumes individuais custam R$ 45,00.

sábado, 30 de outubro de 2010

Machado de Assis e as eleições. Entre o pão-de-ló e a pizza.


A julgar pelas pesquisas, as eleições estão decididas. Os números martelados em jornais e televisões durante as últimas semanas afirmam uma vantagem suficiente para a candidata do Lulismo (não me refiro ao PT, partido que já não existe; existe o Lulismo) se eleger. Ocorre que no Brasil não apenas os políticos estão desmoralizados, mas também os institutos de pesquisa – eles erraram em quase tudo no primeiro turno, como sabemos. Isso nos leva a pensar que as pesquisas são formas de desviar a atenção daquilo que se deveria discutir durante as campanhas. Gastamos mais tempo expondo e discutindo pesquisas do que discutindo questões políticas urgentes.
É por essas e outras que eu, cansado de guerra, andei calado por uns dias e voltei a ler e reler Machado de Assis, sobretudo as crônicas a respeito do Velho Senado de 1860, ainda no Império. Lá se vão 150 anos.
Diz o Machadinho, então nos seus vinte e um anos:
“O que há de política? É a pergunta que naturalmente ocorre a todos, e a que me fará o meu leitor, se não é ministro. O silêncio é a resposta. Não há nada, absolutamente nada. A tela da atualidade política é uma paisagem uniforme: nada a perturba, nada a modifica. Dissera-se um país onde o povo só sabe que existe politicamente quando ouve o fisco bater-lhe à porta.”
Eis então o diagnóstico de Machadinho: o marasmo político, o tédio dos eleitores, a falta de algo relevante em discussão, a ausência de partidos com ideologia própria – todos cada vez mais personalistas – e a única unanimidade: pagamos impostos demais.
Adiante, como se não bastasse, o profeta Machadinho antecipa a vida política brasileira que vivemos. Diz ele, depois de denunciar o ministério medíocre e a mediocridade dos políticos: “nos fornos do Estado se coze e tosta o apetitoso pão-de-ló, que é depois repartido por eles, para glória de Deus e da pátria”.
Eis aí. Machadinho não apenas revolucionaria o romance brasileiro, como, antes disso, previu a grande pizza em que tudo termina no Brasil.
Um gênio. Ai de nós.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

As certezas que só a burrice proporciona


Já falei aqui a respeito do livro Não contem com o fim do livro, com diálogos entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. Pois destaco hoje um dos inúmeros temas que eles abordam com inteligência e descontração, como é possível nos melhores papos entre amigos. Inteligentes, é claro.
Dizem eles – no hilariante capítulo “Elogio da burrice” – que é preciso classificar, antes de mais nada, o imbecil: “É aquele que vai dizer o que não deveria dizer num dado momento. É autor de gafes involutárias.” Já o estúpido sofre de outro mal. Seu defeito é lógico, tirando conclusões estapafúrdias de premissas equivocadas. Ele, no entanto, não se contenta em enganar. “Ele afirma alto e bom som o que julga verdade. A estupidez é tonitruante.”
E a burrice? Alma gêmea das duas anteriores, a burrice, como dizia Flaubert, tem sede em concluir. Quer fechar a questão. Tem um furor maníaco pela certeza.
Além das gafes, das conclusões sem lógica, encontramos desta forma os tipos que são tomados pela fúria sagrada em concluir e nos impor suas verdades. É aí que mora o perigo. Ou, como diz Jean-Claude Carrière: são “verdades que nos dão calafrio na espinha”.
Proponho então que se faça uma espécie de jogo dos sete erros. Peguem o retratinho de figuras nacionais e internacionais e descubram onde elas se encaixam. Garanto que é divertidíssimo.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Livro e o Livro Digital


Ainda não terminei a leitura do livro Não contem com o fim do livro (Record, 272 páginas, 2010), mas já recomendo. Nele estão registrados diálogos entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière com a mediação do jornalista e escritor Jean-Philippe de Tonnac. É uma leitura essencial para quem quer repensar o chamado livro tradicional em confronto com esse novo livro que está chegando, o digital. Ao contrário das discussões marcadas por preconceitos ou puro desconhecimento, Eco e Carrière, além de esbanjarem erudição a respeito da história do livro e das transformações técnicas e culturais que o século XXI deverá sofrer, iluminam a questão de inúmeros ângulos, arejam as abordagens, ampliam horizontes. Um desses livros que faz com que o leitor se sinta mais inteligente e o mundo lhe pareça um lugar habitável. Não é pouco. Recomendo e voltarei ao tema quando terminar a leitura.

domingo, 10 de outubro de 2010

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

À imagem e semelhança de Pablo Picasso

Diz-se que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. Mas também se diz o contrário: os deuses são feitos à imagem e semelhança do homem, o que explica que, sendo muitos os homens, existam tantos deuses.

Agora, se o homem em questão é Pablo Picasso, o Deus criado será generoso e agirá por puro prazer. Vejam só o que ele disse:

“Deus é, sobretudo, um artista. Ele inventou a girafa, o elefante, a formiga. Na verdade, Ele nunca procurou seguir um estilo – simplesmente foi fazendo tudo aquilo que tinha vontade de fazer.”


segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Tiririca será um Cacareco?

As eleições fizeram com que Cacareco – que ficou famoso com esse nome embora fosse uma rinoceronte fêmea – voltasse aos jornais. Ele foi eleito em 1959 com 100 mil votos. Registre-se que Cacareco(a) não chegou aos dez anos e não deixou descendentes. Portanto, Tiririca não é da família.

Cacareco foi resultado claro de um movimento de protesto dos eleitores contra os desmandos e a corrupção na política. Tenho dúvidas de que a maioria dos votos em Tiririca tenha sido de protesto. Há quem tenha votado nele com convicção, tanto que ele fez campanha para valer – ao contrário do Cacareco – ainda que usando do deboche. Seja como for, parte significativa dos que votaram nele o fizeram em função da mediocridade cultural e política do Brasil atual. Não fosse o voto obrigatório, esses tipos iriam pescar e não criariam essa palhaçada.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O voto não é obrigação, é direito

O Brasil é um país de ponta-cabeça, dizia o sábio Tom Jobim.
A razão dessa anomalia é que se trata de um país incapaz de reflexão e, portanto, de princípios. Por exemplo: só no Brasil um presidente poderia se comportar como cabo eleitoral alegando que faz isso “fora do expediente”. É um caso único: um presidente que cumpre “expediente”. Lula continua pensando como um torneiro mecânico. Não entendeu até hoje o que significa ser presidente. Aliás, não é o único.
Vejam o caso do voto obrigatório, que mostra que o Brasil ainda não chegou à Revolução Francesa. Trata-se de um absurdo, já que o voto é um direito e ninguém pode ser obrigado a realizar um direito – isso faria dele um dever. Por exemplo: temos direito a ir e vir, à felicidade, à propriedade, mas ninguém pode ser obrigado a ir e vir, a ser feliz ou a ter propriedades.
Como o país não pensa, nesse domingo todos irão depositar compulsoriamente um voto na urna. Muitos sem saber o que estarão fazendo. Outros venderão o voto em troca de dentaduras, dinheiro, favores, ou como parte de um curral eleitoral qualquer. Ou votarão levando em conta dois ou três pequenos preconceitos que conseguiram produzir ao longo da vida. O que ocorre em todas as classes sociais, diga-se.
Houvesse reflexão e o voto fosse visto como um direito, a noção de cidadania poderia se tornar um valor social. É isso que significa ser cidadão, sentir-se sujeito de direitos. Saber-se livre de coações. Os que fossem votar saberiam o que estariam fazendo. E quem não quisesse votar faria melhor ficando em casa ou indo pescar. Com todo o direito.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Lula, o pai do filme


Na quinta-feira (23/09), Roberto Farias - diretor do excelente "O Assalto ao trem pagador", 1962, que não merecia essa mancha em seu currículo -  anunciou a indicação do filme “Lula, filho do Brasil”, para concorrer ao Oscar na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira. A Comissão de Seleção, formada por membros do MinC, da Secretaria de Audiovisual, da Ancine e da Academia Brasileira de Cinema decidiu por unanimidade. Suspeitíssimo.

Que fazer? O filme é ruim, primário, tosco, boboca, piegas. Tão piegas que é capaz de ganhar o Oscar. É um equivalente daquele produzido durante a ditadura militar, em 1972, “Independência ou morte”.

Se não estivéssemos no Brasil, eu estranharia o silêncio do pessoal do cinema. Só Daniel Filho, que também concorria, chiou. Arnaldo Jabor, que faz poses de ousado e agressivo, preferiu dizer que não tinha o que dizer.

Aguardemos agora a indicação, pela Academia Brasileira de Letras, do Luiz Inácio para ocupar a vaga do próximo imortal que fizer a gentileza de falecer.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O homem que lia seu jornal


O homem já estaria lá quando cheguei, mas não o vi. Havia nele algo de invisível, eis a verdade. Nele e naquele paletó cinza, naquela calça azul-clara e naqueles sapatos pretos e amarrotados que calçava. Sentado numa mesa pequena, no fundo da lanchonete, junto à parede de tijolos a vista, ele me chamou a atenção quando moveu o jornal. Aliás, não foi o movimento que me chamou a atenção, mas o barulho – barulho de jornal sendo aberto, dobrado, remexido. Eu conhecia aquele barulho. Virei-me e lá estava ele.
O homem parecia uma mistura confusa de cabelos grisalhos, de paletó dormido, de jornal sendo triturado contra a mesa. E ele empunhava uma esferográfica. O que faria aquele homem naquela mesa de lanchonete lendo um jornal com uma esferográfica na mão? É verdade que ele tinha um ar investigativo, descendo os óculos de lentes grossas na direção do jornal, como se quisesse tirar dele o máximo possível. O que buscava?
Constrangido com minha própria curiosidade, tentei me concentrar no sanduíche que o garçom colocara na minha mesa. Tentei esquecer o homem. Não o esqueci. Me esforcei para não prestar atenção nele, só isso. Que me interessava aquele sujeito que jamais vira, com aquele ar cinzento, com aquele modo desastrado de ler jornal? Foi quando notei um detalhe: o homem não se servira de nada. Na mesa, só o jornal e a esferográfica.
Ele oscilava para frente e para trás. Amolecia-se na direção da mesa, como se ele fosse um imenso edifício desabando em câmara lenta, e, depois, vítima de um pequeno susto, voltava a se aprumar. Estava cochilando. Ali, no meio da lanchonete barulhenta, com gente falando alto, rindo, discutindo, o homem cochilava.
E cochilava de uma forma decidida. Cada vez que sua cabeça descia na direção da mesa, ele ameaçava afundar muito além do jornal, como se cumprisse alguma jornada da qual não quisesse perder detalhe algum.
Pensei que ele poderia, numa daquelas investidas na direção da mesa, bater a cabeça, espatifar seus óculos, ferir-se. Mas ele era dotado de algum mecanismo de controle. Quando estava a uns três centímetros da mesa, sofria um golpe assustado e retornava a cabeça para trás. Era muito hábil nisso.
Que idade teria? Setenta e cinco anos, algo assim. Era o que dizia o rosto castigado, as orelhas enormes, os olhos tristes. As mãos também eram antigas, lentas e antigas. As costas curvavam o paletó cinza, criando uma previsível corcunda pontiaguda. Tudo era meio surrado, meio velho e antigo naquele homem.
Fiquei pensando no que faria ali, por volta das cinco da tarde, com uma esferográfica e um jornal, sentado sozinho numa mesa, cochilando e sem ligar a mínima para o mundo a sua volta – mundo que nesse momento passou a incluir duas jovens barulhentas que passaram sem que o homem lhes dedicasse qualquer atenção.
Que profissão teria?  Impossível dizer. Aposentado, é claro. Teria sido funcionário público. Ou encarregado de algum setor de estoque. Contabilizou caixas e pacotes a vida inteira. Entradas, saídas, saldo. Anotou coisas em papeizinhos, fez relatórios, seria o encarregado de chavear o depósito pontualmente às seis e cinco da tarde, quando voltava para casa. Ou quando vinha para a lanchonete?
Eu não sabia nada sobre aquele homem, eis a verdade, nem sobre as duas jovens que voltaram da toalete fazendo aquele alarido com que as mulheres freqüentam as toaletes. O homem não as viu. Agora sua cabeça descia muito devagar na direção da mesa e dois garçons o observavam, rindo de seus cochilos. Quem sabe eu devesse dar uma bronca nos garçons, reclamar com o gerente, acordar o homem, aconselhando que fosse dormir em casa? O homem teria uma casa? Para onde iria aquele homem depois de cochilar naquela mesa de lanchonete?
Paguei minha conta e, ao sair, passei ao lado de sua mesa. A esferográfica repousava sobre o quadriculado de algum quebra-cabeça. Traços desconexos haviam sido rabiscados no jornal. Me afastei preocupado em não fazer barulho algum que pudesse perturbá-lo, mas ainda vi quando a cabeça do homem desceu uma última vez e repousou docemente sobre seu braço. Agora dormia profundamente.

sábado, 25 de setembro de 2010

Sincronicidades tupiniquins

Como essas duas coisas acontecem ao mesmo tempo, faço o seu registro para que futuros arqueólogos das asneiras e patifarias nacionais possam estudá-las.

Hoje – 25.09.2010 – o Supremo Tribunal Federal, exercitando o formalismo cínico, protelador e chicaneiro que infecciona todo o judiciário brasileiro, conseguiu empatar a votação do projeto de origem popular Ficha Limpa – havia que decidir se a lei já valeria para as atuais eleições ou não – sendo que seu presidente, juiz com toga e badulaques, anunciou que não desempataria nada. Adiaria, pronto.

Gil Vicente executa Bush Jr.

Ao mesmo tempo, os desenhos do artista pernambucano Gil Vicente estão ameaçados, pela OAB de São Paulo, através de seu presidente, Luiz Flávio Borges D’Urso, de serem retirados da Bienal. Gil desenhou a si mesmo executando conhecidos bandidos nacionais e internacionais: Bush Jr., Fernando Henrique Cardoso, Lula, Mahmoud Ahmadinejad etc.

Então, para o pessoal da sincronicidade, eu informo: liberar geral para que bandidos concorram nas próximas eleições, tudo bem. Aceitar a manifestação de um artista que repudia esses mesmos bandidos, nenúncaras.

É a cara da república e da democracia tupiniquins.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Três notas e uma farsa só




Nota Um
Dia desses, entre outras ridicularias, autoridades queriam manter a proibição aos humoristas brasileiros de fazerem caricaturas dos políticos em campanha. Felizmente, a proibição foi cancelada – até porque, imagino eu, os políticos já são risíveis e ridículos sem a ajuda de humoristas.

Nota Dois
Sarkozy, que faria melhor se se ocupasse de Carla em tempo integral, agora está às voltas com ciganos, que deseja expatriar, e a popularidade em queda. Além disso, sofre acusações de financiamento irregular a partidos políticos e troca de favores entre um ministro e a milionária Liliane Bittencourt. Ora, Sarkô, venha para o Brasil que sua Carla será destaque da Beija-Flor e você será reeleito e, de sobra, fará seu sucessor.

Nota Três
O jornal governista egípcio recortou Hosni Mubarak, que estava no fundo de uma foto, e o colocou à frente de seus acompanhantes: Barack Obama e Benjamin Netanyahu entre eles. Pego com a boca na botija, o jornal “esclareceu”: a foto alterada é uma expressão fiel da liderança de Mubarak. Trata-se do realismo fantástico do jornalismo governista: se a realidade atrapalha, tanto pior para ela.

Dispensam-se, portanto, humoristas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Nasko


Tinha esse nome selvagem e áspero: Nasko. Mas tinha também uma certidão de nascimento na qual constavam inclusive seus avós e bisavós. Todos puros cães huskies.
Cão? Nunca me convenci. Os huskies são lobos ou pelo menos uma criatura inédita entre o cachorro e o lobo. Mostra disso é o seu campo de interesse: muitos quilômetros, motivo pelo qual, dizem, se fugir de casa, não sabe voltar. Não é que não saiba. É que vai longe, anda muito, não volta. Não tem interesse em voltar. Deixassem, continuaria andando outros vinte quilômetros.
Era orgulhoso, nobre, metido. Não obedecia a ninguém. É verdade que a mim ele fazia de conta que obedecia. Me olhava com aqueles luminosos olhos azuis, ficava imóvel, mostrando que, se quisesse, continuaria na mesma. Depois, expressando profundo desprezo pelo mundo, se afastava. A passos lentos. Como quem deixa para lá e não quer se aborrecer.
Não latia, embora soubesse latir. Uivava, como todo lobo. E conversava. Quando queria comida ou entrar em casa – adorava entrar em casa para sentar na poltrona, a cabeça erguida como um monarca observando seus domínios – ficava de pé junto à janela e desenvolvia uma conversação rouca e insistente. Eu respondia num palavreado qualquer e ele seguia a conversa, cada vez mais impaciente. Não desistia enquanto não fosse atendido.
Era nobre e orgulhoso. Independente e insubmisso. Solitário e resmungão. Belíssimo.
Perdi um grande amigo quando ele morreu. Aliás, soube morrer como um sábio.

Quem merece esses políticos?


Uma única coisa me surpreendeu nessa campanha eleitoral: o candidato Plínio ter ironizado, durante um debate, que os presidenciáveis ali presentes estavam todos fazendo pose de bem comportados. Todos bonzinhos.
Não estou fazendo nenhuma declaração de adesão ao Plínio. Assinalo apenas que ele foi o único candidato a dizer alguma verdade. E a verdade é sempre aquilo que subverte. Analisemos a frase dita por ele. A sua força está no desnudamento que realiza dos candidatos, dos debates e dessa campanha cansativa e inútil que assistimos entre bocejos de tédio.
Todos sabemos que os políticos se tornaram marionetes nas mãos de marqueteiros. É lamentável a situação em que se encontram. Precisam medir cada palavra. Cuidar com as olheiras, as sobrancelhas, os penteados. Zelar pela gravata, o terno e o vestidinho. Além da maquiagem e da cirurgia plástica, é preciso acertar o tom de voz. É preciso fazer pose de educado e não criticar demasiado, pois com isso se perde votos. E é preciso evitar idéias, pois elas são entendidas por uma pequena faixa da população. Mais vale urrar frases desconexas em palanques, enfiar bonés na cabeça, comer carne de bode, se fazer de amigão do povo. Nada de análises sobre problemas sociais e econômicos – os eleitores podem desligar a televisão. E, havendo alguma coisa unânime no ar, jamais criticá-la. Se, como dizia Nelson Rodrigues, a unanimidade é burra, sejamos burros. Fazer ares de imparcial, de criterioso, de aberto ao diálogo. Tudo – idéias, projetos, programas, alianças, a história de cada um – deve ser colocado no mesmo caldeirão onde se cozinha uma mistura insossa e disforme. Dizer sim a tudo que possa pescar algum voto. Ao governo que sai. Às pesquisas que rolam. Àquilo que dizem que a maioria pensa. Destacar o positivo, ter horror ao negativo. Não colocar o dedo na ferida – o dedo ficará sujo. Não apontar as brechas por onde se esgotam as riquezas do país, os becos nos quais apodrece a miséria nacional. Não mostrar onde não estudam os jovens, onde não se curam os doentes, onde não são protegidos os velhos, onde não se vence a doença e se vive em meio à imundície dos esgotos a céu aberto. Onde se vive à custa de trocados que dão ingresso a um vasto curral eleitoral. Onde se vive no lixo, na ignorância, sobretudo na mediocridade boçal dos que julgam que chegaram ao paraíso porque compraram um carro velho em setenta prestações mensais. Não discutir o que significa ser a quinta economia do mundo ou supostamente estar paga a dívida externa.
Não causar atritos. Quanto a isso que chamam de reforma agrária, todos são favoráveis, inclusive o governo atual, que não a fez. A reforma política, também: são todos favoráveis. A tributária? Ora, até correm projetos pelo congresso, como é sabido. De resto, são todos ecológicos. Rende votinhos. Pisar em ovos. Andar no fio da navalha.
Por exemplo: alguém viu quebrar o pau sobre a transposição do rio São Francisco? Nenúncaras. Revirar o poço da impunidade e da corrupção? Jamais. É preciso alardear – sendo oposição ou governo, já que a unanimidade é imbatível – que o país vive um momento paradisíaco rumo ao futuro apontado por aquele asfalto perfeito que aparece no filme publicitário cheio de chavões noveleiros. A eleição se desenvolve apenas no plano das imagens. É um jogo de espelhos. Parecer é mais eficiente do que ser. É isso que medem as pesquisas: impressões, imagens. Tantos por cento vão votar nesse e tantos por cento naquele. Por quais motivos e com que grau de informação não importa, nem importa quem são os que votam assim ou assado. As pesquisas, aliás, medem a desinformação e a concordância bovina.
Ora, política de verdade se faz com confronto, ainda que não com agressão. Política se deve fazer com definições e não com palavreado complacente que nada postula. Política tem que colocar uns de um lado e outros de outro.
Ou, parodiando o poeta Manuel Bandeira: “todo o resto será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar” aos eleitores. O que estamos assistindo é uma pantomima deprimente. Todos querendo nos tapear como se fôssemos um bando de idiotas. Ou seremos um bando de idiotas? Nesse caso, os marqueteiros estão cobertos de razão.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Sofrer não vale a pena

St Denis fez um comentário interessante ao post Sem medo do livro digital, (11.09.2010). Lembrou que quando foram introduzidas as mulas para transporte de cargas do litoral ao planalto curitibano, os carregadores, que até então as traziam nos ombros, fizeram protestos. Isso me lembra algo que disse um dos pioneiros da propaganda no Brasil, um dos três da DPZ: um problema para a introdução de máquinas de lavar roupa no país foi a convicção das mulheres da época de que lavar roupa exigia sofrer e fazer força. Sem isso não era um trabalho digno. Antes de vender, foi preciso convencer às donas de casa de que era necessário mudar essa visão masoquista. O mesmo se deu com a introdução do teclado do micro: velhos jornalistas e escritores não admitiam um teclado macio e silencioso em troca do pesado matraquear das antigas máquinas de escrever. Era preciso fazer força e sofrer para se sentir escrevendo algo de valor. O esforço estava ligado ao ato de escrever – aquele mesmo que fez com que George Simenon, que matraqueou mais de 400 livros, tivesse os dedos achatados de tanto martelar teclas. As novas tecnologias enfrentam esse problema simples: o ser humano não apenas sofre, mas com o tempo se acostuma a sofrer e passa a gostar do sofrimento. Vira uma segunda natureza. Precisamos nos livrar disso.

domingo, 12 de setembro de 2010

Meditações que me dito

Escrevi isso lá por volta de 1982 - século passado, vejam só - e acho que vale a pena repetir aqui:

Não é possível confiar nem na direita nem na esquerda. Basta a gente virar as costas para que elas troquem de lado.

sábado, 11 de setembro de 2010

Sem medo do livro digital

Sempre que surge um novo meio ou uma nova tecnologia, emerge das profundezas humanas o temor de que mundo anterior seja destroçado. Os anunciadores de catástrofes adoram esses momentos, adoram anunciar o fim do mundo. Já aconteceu com a fotografia, que decretaria o fim das artes plásticas, com o cinema, que exterminaria com o teatro, com a televisão, que acabaria com o cinema. Quando os computadores chegaram à imagem, houve quem decretasse o fim da escrita. O monitor do micro seria um buraco negro para a palavra.

Mania antiga. Quando Gutenberg, em meados do século XV, criou os tipos móveis e revolucionou a história do livro, também enfrentou resistências. Dizia-se que essa nova arte de “escrever sem mão e sem penas” tinha algo de sobrenatural e diabólico. Não se temia o fim do livro anterior, mas a proliferação da nova tecnologia. O livro, até então caríssimo, deixaria de ser posse exclusiva de alguns nobres e o populacho passaria a ler, a dar palpites, a discutir idéias e... nunca se sabe onde isso pode parar.

Hoje sabemos que o computador não exterminou com a palavra. Pelo contrário, faz com que milhões de usuários escrevam e leiam textos na tela dos micros, seja em e-mails, blogs, sites, jornais e revistas on-line etc. Se muitos desses textos são toscos ou primários, é bom lembrar que no século XIX só Flaubert escrevia como Flaubert.

Assim, a palavra não morreu. Quem matou a charada foi Millôr Fernandes. Diante dos deslumbrados, que repetiam que uma imagem vale por mil palavras, ele desafiava: diga isso sem usar palavras. Silêncio geral.

O fato é que a palavra sobreviveu, assim como a pintura sobreviveu à fotografia, o teatro ao cinema, o cinema à televisão, a televisão ao computador. E é bom lembrar outro vilão que assombrou aos puristas: as histórias em quadrinhos. Meus professores costumavam esbravejar contra elas, que determinariam o fim da literatura e da inteligência, sendo a fonte da burrice das novas gerações. Deu-se o contrário: as HQs recriaram nosso imaginário e serviram de mote para novas invenções literárias.

Hoje, o fantasma da vez se chama e-book. Dia desses lá estava na televisão uma editora de livros assustada com o fantasma do livro eletrônico. Dizia ela que o e-book seria frio, não teria graça alguma, jamais poderia substituir o livro impresso em papel. Ao seu lado, um sujeito ligado à informática fazia argumentação contrária: o e-book não usaria papel e, portanto, não derrubaria árvores, podendo ser levado no bolso carregado com uma centena de títulos.

Acho que os dois erram, pois supõem que o e-book substituirá o livro impresso. Inúmeros tipos de livros jamais poderão ser editados numa telinha de 14 por 24 centímetros. Por outro lado, o e-book poderá evitar a derrubada de árvores, o que seria bom, mas não nos iludamos, pois, ao surgir o computador, também foi dito que se gastaria menos papel. O que aconteceu, com as impressoras conectadas aos micros, foi o contrário.

A questão é outra. Os editores temem não o fim do livro impresso, mas o fim de sua indústria, que terá que ser repensada. Temem que sumam – como aconteceu com a indústria fonográfica – os seus lucros. E o povo da informática faz de conta que o e-book não tem problemas, tais como telas cansativas e com má resolução, a questão dos direitos de autor, das traduções etc.

Lembro que já ouve outro fantasma nessa história, o livro de bolso. Quando foi lançado, decretou-se que o livro tradicional morreria. Não morreu. Hoje convivem edições de bolso e em outros formatos. No futuro, livros impressos e e-books deverão conviver, como o cinema com o teatro etc. etc. Atendem a usuários, a situações e a objetivos diferentes.

O e-book tem uma desvantagem. Nele se perde o contato físico com o papel, a tinta, o ato físico de virar as páginas. E não sentiremos o cheiro gostoso de um livro novo, que era por onde Hélio Pelegrino dizia começar a crítica literária. Mas, tem uma vantagem: a ausência de fungos em edições fac-similares, que poderemos ler tal como foram originalmente impressas. Os alérgicos – estou entre eles – agradecem comovidos. E me fascina a idéia de andar com uma biblioteca no bolso.

Enfim, todos sobreviverão. O pensamento catastrófico perderá mais essa.