segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O tricô e o Vale do Silício




As políticas implantadas no Brasil, em todas as áreas, costumam nascer de puro improviso, quando não de oportunismo eleitoreiro. Algumas vezes decorrem da necessidade de se apresentar um programa de governo, que talvez jamais seja implantado, ou da urgência em justificar verbas que, uma vez aprovadas, serão ou não corretamente aplicadas.
Isso se dá na área da saúde, da segurança pública, do saneamento, da educação. Há muito improviso, embora vez ou outra apareçam algumas ideias generosas criadas por assessores mais generosos. E há demasiado uso politiqueiro daquilo que o país realmente precisa.
No caso da educação, destaco um ponto que me preocupa: o deslumbramento com que os atuais planejadores da educação encaram a informática. Como o universo de políticos e de burocratas no Brasil não passa por qualquer reflexão, governando-se por modismos imediatistas ou politicas oportunistas, um chavão se tornou onipresente entre eles: é preciso realizar a “inclusão digital”. Qualquer vereador ergue o nariz e um dedo marqueteiro para anunciar, impávido: inclusão digital.
Nada contra a inclusão digital, esclareço. Mas ela virou um bordão mágico, espécie de síntese dos novos tempos e anúncio dos tempos futuros. Tudo se resolveria com a colocação de micros na sala de aula, por exemplo.
Será?
Eu, que sou dado a dúvidas impertinentes, me pergunto por que existe tal empenho em colocar a informática no centro da questão educacional, quando – e isso é notório – a imensa maioria de nossas escolas não tem bibliotecas dignas desse nome? A meninada ainda não chegou ao livro e querem que mergulhe no computador. Isso seria imaginar que o computador – que é um instrumento notável – surgiu do nada, sem vínculo com a Galáxia de Gutenberg.
Não estou aqui a expressar meras implicâncias ou manias pessoais. Uso computador desde a metade dos anos 1980, quando adquiri um daqueles pré-históricos monstrengos da Itautec, o CP500 – 48 Kbytes de memória RAM! – que nem disco rígido tinha. Funcionava com dois disquetes 5,25 polegadas. Era preciso carregar o sistema, retirar o disco, colocar outro no qual seriam gravados os arquivos etc. Hoje sou usuário de um notebook que, trinta anos depois, me parece milagroso. A informática é um avanço notável, mas...
Foi quando me caiu nas mãos – ou na tela – um artigo saído no New York Times, escrito por Matt Richtel, (A Silicon Valley School That Doesn’t Compute – 22/10/2011). Nele o jornalista revela que os executivos das grandes empresas de tecnologia avançada, como o vice-presidente da eBay e funcionários da região do Vale do Silício (Google, Apple, Yahoo, Hewlett-Packard, entre outras) estão matriculando seus filhos em pequenas escolas aonde os micros ainda não chegaram. Nelas há a preocupação, como no caso das escolas Waldorf, em atividades que desenvolvem habilidades motoras, exigindo criatividade, o que pode incluir – vejam só os arautos da inclusão digital – aulas de tricô!
Isso mesmo, leitor, aulas de tricô.
Segundo Matt Richtel, ajuda a desenvolver a capacidade de solucionar problemas, reconhecer padrões, apropriar-se de conhecimentos matemáticos e amadurecer a coordenação motora.
Há uns meses, dei com uma notícia vinda dos EUA, onde se dizia que certo professor universitário aconselhava que se abolisse a escrita cursiva – e, de arrasto, canetas, papéis, lápis e borracha, pelo que posso supor. A escola deveria ensinar apenas a escrita em letras de forma, pois é só disso que as crianças precisam para enfrentar um teclado, argumentava o douto professor.
Que ideia infeliz. Escrever “a mão”, mesmo em tempos de teclados e telas onipresentes, nos oferece tempo para reflexão e concentração, desenvolve coordenação motora, ativa neurônios, cria textos mais generosos e é fonte de prazer, o que não é pouco para se aprender nos dias que correm.
Portanto, quando altos executivos do Vale do Silício colocam seus filhos em escolas sem computadores, é bom – sem abrir mão das maravilhas da informática – não abrir mão da mão propriamente dita e desses instrumentos fantásticos: lápis, canetas, papéis, borrachas. E livros. Livros.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Marcos Valério confia na justiça. E você?



Marcos Valério - aquele mesmo do mensalão, agora às voltas com documentos falsificados, formação de quadrilha, propriedades rurais inexistentes dadas como garantia - ao sair da prisão no dia de ontem (14/12) por força de um habeas corpus, deu uma declamação que se tornou um bordão corriqueiro nesses casos:
- Eu confio na justiça.
O que me deixou com uma pulga atrás da orelha, como dizia meu pai.
Acontece que a população em geral costuma fazer diversas restrições ao nosso sistema judiciário. Seria lento, caro, elitista, classista, corporativista, formalista, abrigando quadrilhas, segundo denúncia recente de uma juíza. Enfim, a justiça seria tarda e falha, murmura o povão.
Já todos os engravatados pegos com a boca na botija, disparam a máxima:
- Eu confio na justiça.
Terão suas razões.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Muito prazer em conhecer - ou: Bertrand Russell e a educação


Bertrand Russell, filósofo inglês, era um empirista radical e pacifista militante quando isso dava cadeia – aliás, foi enjaulado algumas vezes por conta de suas ideias. Além de notável pensador, um refinado escritor. Seus textos autobiográficos resultaram em livros deliciosos.
Ficou órfão muito jovem e foi educado pelo avô, Lord John Russell, o qual, percebendo seu interesse pelos livros, resolveu abrir a ele a sua biblioteca, que era vasta. Russell, ainda um menino, ficou maravilhado e passou a ler os livros que despertavam seu interesse, fazendo escolhas aleatórias. Meses depois o avô o chamou e disse a ele que, pela desordem em que deixara os livros, conseguira descobrir quais deles havia lido. E o advertiu que fizera leituras muito dispersivas, que iam da astronomia à história, da física à biologia, de romances à poesia etc. E sentenciou:
- Não faça isso. Concentre-se num só tema. Especialize-se, senão nunca vai chegar a lugar algum.
Com o humor de sempre, Russell dá o seguinte fecho ao episódio: “felizmente jamais dei ouvidos ao conselho de meu avô”.
Como é sabido, Russell manteve vida afora seu interesse por inúmeros assuntos, da matemática à lógica, da sociologia à história do pensamento. Além disso, tinha especial preocupação com a educação, dedicando livros ao tema e, em 1927, fundou uma escola experimental, a Beacon Hill.
Foi do que lembrei ao ler um texto de um desses educadores que imaginam o ensino e o ser humano como uma extensão do mundo corporativo, com suas ênfases funcionais. O tal educador se mostrava irritado com o ensino de “coisas inúteis” aos alunos. Coisas que jamais iriam usar – embora ele não revele o critério para sabermos o que, no futuro, poderá ser usado por alguém. Enfim, nada de especulações. Nada de questionamentos. Nada de filosofias. Especialização.
Tais projetos de educação restritivos sempre me assustaram, tanto quanto me encanta o gosto de Russell pela não-especialização. Ele sabia que para se criar alguma coisa de novo em qualquer área, inclusive na educação, é preciso certa vadiagem de espírito, um senso quase lírico da aventura humana. Fora disso, a secura de burocratas, formadores de robôs.
Pois nesse ponto quase esqueci o tal educador e sua entrevista e passei a outro episódio relatado por Russell, que virou folclore.
Estava ele, certa tarde, remexendo com as flores de seu jardim, quando passou o jardineiro do bairro que lhe perguntou, puxando conversa:
- Trabalhando, doutor?
E ele:
- Não. Estou descansando.
Dias depois, o mesmo jardineiro o viu sentado num banco de jardim, olhando para o céu. O jardineiro desta vez achou que acertaria:
- Descansando, hein, doutor?
E ele:
- Não. Estou trabalhando.
O jardineiro foi levado a entender que muitas vezes um filósofo – ou um cientista – trabalha quando não faz nada e descansa quando faz alguma coisa. O nada do qual se ocupa são as ideias que fica revirando em sua cabeça vadia em busca de um melhor entendimento do mundo e da vida. E o descanso é dado pela ocupação de suas mãos, o que o dispensa de perseguir novos problemas.
Certos educadores, por não conseguirem entender o que o jardineiro de Russell entendeu, jamais se perguntam pelas razões que transformam as escolas em lugares muitas vezes áridos, não raro afastados de qualquer criatividade, sem passar aos alunos o verdadeiro prazer que é possível obter em coisas tais como pensar, ler, discutir, imaginar, fantasiar, criar, observar, esvaziar a mente. Um professor de matemática, Joaquim Floriani, me ensinou que a demonstração de um teorema pode produzir a mesma satisfação espiritual que a leitura de um poema. E um professor de desenho, Ludwig von Emmerich, me ensinou que não fazer nada pode ser tão produtivo quanto colocar tijolos sobre tijolos.
O professor que maravilhar seus alunos ensinou a eles algo de essencial. É preferível o menino Bertrand Russell livre e solto na biblioteca.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Deu no New York Times



Cartoon de Mike Luckowich, originalmente publicado no Atlanta Journal Constitution.
Uma síntese exemplar do que se passou em Wall Street.


Political cartoons

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Tiro aos patinhos




Quando eu era menino, os padres faziam muitas festas de igreja. Na minha memória aquilo era uma espécie de circo com brincadeiras de pescaria, de jogar argolas em garrafas e do tiro ao pato. No caso, patos de metal que vinham nadando num mar desenhado na madeira, fazendo um barulhinho chato, o que aumentava minha vontade de acertar todos eles. Tiro ao pato era uma diversão e tanto.
Faço esse rodeio para lembrar aos leitores que há algum tempo deixei de falar de, digamos, política. É preciso ter saúde de ferro para seguir os atropelos da política nacional e, confesso, minha saúde e paciência não são grandes coisas nesse caso. Abandonei o assunto na crença delirante de que, ao abandoná-lo, ele me deixaria em paz. Lêdo engano, como dizia meu professor de português. Como no caso dos patos de tiro ao alvo, novos patinhos aparecem e o tiroteio continua.
Foi quando lembrei que os patinhos, se me divertiam, me irritavam. Eu era bom de tiro e acertava bastante, a bala de chumbinho estalava no metal e o pato caía para trás. Mas logo vinha outro e, em seguida, aquele que caíra voltava à cena, já refeito.
Era enervante.
Pois é assim que tenho visto a assim chamada política nacional nos últimos tempos. Na era Lula tínhamos os patinhos da ocasião e seus nomes curiosos – mensalão, dólares na cueca, propinoduto, valerioduto etc. – repetindo-se sem fim ou solução. Lula era mestre em fazer de conta que não sabia de nada. Amoitava-se e a coisa passava. Surgia o escândalo seguinte, a polícia federal armava mais uma operação com nome retirado da mitologia grega, e a nação seguia seu curso cambaleante.
Agora, sob Dilma, temos um arranjo diferente, mas a dança dos patos me parece a mesma. Surge um pato, digamos, um ministro de tal pasta, afloram as denúncias, as gravações, os documentos, as filmagens, e a presidente diz que não é nada, intriga da oposição, denuncismo etc. Depois, acuada, diz que os malfeitos devem ser apurados.
Bom, deixo de lado a coisa dos patos para confessar que me irrita isso de malfeitos. Nunca gostei de eufemismos. Acho que existe mesmo corrupção, roubo, extorsão, bandalheira – malfeito era, em tempos passados e mais ingênuos, aquela coisa que homens de boa lábia costumavam fazer com donzelas indefesas. Há roubo, portanto.
Bem, diante da artilharia, lá vem o ministro nadando feito patinho. E tome tiro. Uma semana, duas no máximo, cai o ministro. Quer dizer que não era denuncismo gratuito e irresponsável da oposição. Ou não?
Imagino que sim. E logo um novo patinho aponta no canto do cenário de tiro ao alvo. Começa tudo de novo. Não é nada, diz a presidente. Mandei apurar, diz o seu secretário. Nada se apura, as coisas são tão evidentes que nem precisam de apuração. E lá se vai mais um ministro.
Assim, lá se foram vários deles enquanto que o alvo atual diz que chumbinho não o derruba, será preciso tiro de grosso calibre. Correndo o risco de ser injusto, me parece que não existem ministros honestos – existem ministros que ainda não foram investigados. Mas, tal como os patinhos, os ministros voltam à cena, circulando por aí livremente, de alguns sabemos que se tornaram assessores, conselheiros, rasputins de aluguel.
Como se sabe, o denunciado de ontem, que multiplicou 20 vezes o seu patrimônio, hoje é um tipo faceiro que sai de férias e dá assessoria. Se o tipo fez tais e tantos malfeitos, para usar a linguagem piedosa da presidente, não seria o caso de estar respondendo a processos? Que tal algemas e cadeia?
Mas não.
O Brasil é imenso nessa arte de perdoar, de tudo absorver, complacente ao extremo. Eu, que sou dado a me assustar com tais coisas, dia desses liguei a televisão e vi lá um rosto hirto, duro, um olhar de águia vingadora acima dos lábios rígidos, a gravata larga e a voz de trovão. Tirando o cabelo, que branqueou, reconheci de imediato: Collor, aquele, com dois eles. Dirigindo trabalhos no senado, presidindo uma alta comissão de assuntos internacionais.
Outro, que tinha algo a ver com dólares da cueca, exerce mandato. Outro fica em casa e goza os prazeres da fortuna. Outros não explicaram onde foram parar as propinas, o caixa dois, as verbas desviadas. De que adiantou terem sido defenestrados?
Tal como os patinhos, lá vêm eles de novo. Por isso não tenho mais escrito sobre isso que chamamos de política. É irritante. Ao menos na minha infância era possível dar um tiro nos patinhos.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sobre a preguiça em Mário de Andrade


Mário de AndradePubliquei esse texto - Ai! que divina preguiça - no jornal Gazeta do Povo, Curitiba, em novembro de 2009. Ele é reproduzido aqui, acompanhando a postagem do ensaio de Mário de Andrade, A divina preguiça, para dar destaque e divulgação a uma das reflexões mais originais do pensamento brasileiro, anunciadora do que só seria discutido anos mais tarde. Mário foi nesse caso um visionário.








Ai! que divina preguiça

Roberto Gomes


Mário de Andrade tinha 25 anos quando escreveu um texto de três páginas que publicou no jornal paulistano A Gazeta no dia 3 de setembro de 1918. O título: A divina preguiça. É um texto pouco citado e, desconfio, pouco lido. O que é curioso, já que a exclamação de Macunaíma – Aí, que preguiça! – é repetida como um bordão consagrado sempre que se fala a respeito do herói sem nenhum caráter. O romance Macunaíma foi publicado em 1928, portanto Mário teve pelo menos dez anos para virar e revirar em sua mente as idéias que lançou no artigo em que sintetiza uma crítica ao trabalho, um elogio do ócio e uma divinização da preguiça. Mas não se trata de qualquer preguiça, nem de qualquer ócio ou de qualquer trabalho.
A data em que o artigo foi publicado é importante, pois na Europa a I Guerra Mundial ainda rugia – terminaria dentro de três meses. O horizonte a partir do qual Mário enfoca a questão são os descaminhos que levaram à guerra e os princípios segundo os quais se pensa a civilização. Por isso o artigo inicia lembrando a oposição que habitualmente é feita entre momentos “de progresso, de estacionamento e de eras em que a civilização volta atrás”, equívoco que Mário combate. “Na passagem das civilizações – diz ele – como na própria vida, tudo é marchar”.
Um dos sintomas desses descaminhos, anteriores “ao famigerado agosto de 1914”, ele vai encontrar, num corte cirúrgico, nas práticas cientificistas da época. Ou, nas suas palavras: “a propensão que tinham os cientistas de explicar as faltas e os vícios dos homens por meio de doenças e de atavismo”. Entre tais faltas e vícios destaca-se a preguiça, espécie de avesso de um mundo em progresso e movimento constante, com o acúmulo de riquezas e de novas tecnologias de dominação do homem e do mundo. O projeto capitalista precisava de ação e produção – motivo pelo qual a preguiça deveria ser acusada de vício, senão de crime. E os “cientistas” – mais precisamente os psiquiatras – se prestaram de imediato a esse papel.
Mário, “folheando as eruditas paginas de Austregésilo sobre a ‘Preguiça patológica’”, ri dos cientistas. Lembra que a loucura, ao longo da história, teria sido para alguns um dom divino e para outros um pecado mortal; agora, estaria acuada, “reduzida a um morbo de nova espécie!”
A preguiça deixa de ter a nobreza vinda dos deuses e o peso trágico derivado das misérias humanas. Perdeu a grandeza. Já não seria possível agradecer seu usufruto aos deuses ou penitenciar-se nos confessionários. “Sem regalo nem culpa, resumia-se a uma doença!” Os preguiçosos eram doentes sem grandeza e nada se esperava deles ou da preguiça. Toda “mandranice” se reduzia ao “mesmo morbo”.
É interessante como, no início do século, Mário desenvolve uma análise que só será pensada plenamente após a década de 1960, quando se tomará consciência dos mecanismos através dos quais o que ameaça ou contradiz o projeto capitalista deverá ser apontado como entrave à disciplina dos corpos. Isso só se ouvirá com Marcuse, Foucault etc. Há antecedentes, é claro. Um deles, O direito à preguiça, publicado em 1848, de Paul Lafargue, genro gaiato de Karl Marx. E vale lembrar que, em 1882, Machado de Assis, no notável O Alienista, havia apontado o exercício de poder que parece umbilicalmente colado ao discurso científico. A fabricação do louco, em Machado de Assis, passa pelo exercício de poder do psiquiatra positivista.
Mário e Machado estão, nesse caso, décadas antes de seu tempo.
Assim, reduzida a uma doença, a preguiça deve ser calada. E curada, talvez em estações de águas. Depois dessa terapia, ironiza Mário: “a humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!”
Mário ressalta que em diferentes momentos da história a preguiça foi vista de forma diversa. Na Grécia, por exemplo, e em Roma. O ócio era aí respeitado, pois se sabia que era a partir dele que os poetas e filósofos criavam literatura e pensamento. O conhecimento, seja na geometria ou na engenharia, precisava não apenas de mão-de-obra e de muito suor, mas também de quem pudesse resolver questões aparentemente desvinculadas de qualquer aplicação prática. Como se sabe, os gregos tinham grande desprezo pelos trabalhos manuais, o que lhes edra permitido por uma sociedade escravocrata. E sabiam que, ao se tornarem livres do trabalho servil, os homens se tornaram capazes de criar artes plásticas ou literárias, ciência e conhecimento. Aristóteles e Platão assinalam com clareza o papel do ócio na criação artística e filosófica. Mário pensa da mesma forma ao dizer que a arte “nasceu porventura dum bocejo sublime” e o “belo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio”.
Com o cristianismo – que, contrariamente ao escravismo grego e romano, postula a igualdade teórica entre todos os homens, filhos e imagem de um mesmo Deus – a preguiça vai sofrer um deslocamento. Foi transformada em pecado. “Mas, diz Mário, já não é a mesma preguiça”. Ela é um vício quando se torna enfraquecimento, tibieza, o abandono das “lutas e das porfias”. Essa “inércia lânguida” é a porta aberta aos pecados. É isso que o cristianismo combate, mas devemos lembrar que, no isolamento dos mosteiros, monges se dedicam a longos momentos de reflexão, produzindo textos religiosos, filosóficos, copiando e ilustrando textos, reinventando a pintura, o conhecimento, até alcançar os patamares a que chegou a filosofia e a pintura no século XIII.
A necessidade de se sentir livre do trabalho servil é essencial, sabem os medievais, para a geração do conhecimento, tanto que esse irá renascer quando o fundamentalismo dos primeiros séculos se abrandar. O Renascimento recuperará o ideal clássico grego ao final desse longo processo.
Mário, diante dos desastres da guerra – movida por ambição, ganância e desejo de poder – se recusa a abrir mão da preguiça. “Mil vezes não!” exclama ele. Justamente nesse momento em que se anseia pelo seu fim, poderá ocorrer a transformação civilizatória “para que o idealismo floresça e as ilusões fecundem”. Seria o “Sésamo, abre-te” do qual ele fala.
Portanto, nada de dar ouvidos aos “psiquiatras” que “querem trazer à preguiça mais essa qualificação de doentia, redimindo os ócios culposos, vulgarizando os ócios salutares! Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença!”
A preguiça tem um papel fundamental a desempenhar, portanto. A divina preguiça, criadora, bocejo sublime, será a parteira dos novos tempos.
No entanto, se Mário escrevesse, não em 27 de agosto de 1918, mas nessa morna quinta-feira de 19 de novembro de 2009, penso que ele teria um problema a mais.
Hoje circula muita desconversa a respeito do assunto. O chamado mundo corporativo – que se apropriou de algumas categorias com as quais a filosofia pensou a questão do trabalho e do ócio – vulgariza um discurso que, desinteressado do verdadeiro ócio e da divina preguiça, busca transformar trabalhadores em criaturas maleáveis, acomodadas às felicidades do consumo, ao projeto de ganhar mais, ter prestígio e sucesso. Enfim, ócio incorporado à produção.
Trata-se de uma perversão da divina preguiça. Imagino que Mário de Andrade reclamaria. É preciso estar alerta: o ócio e a preguiça têm um valor absoluto, caso contrário se perdem como instrumento de manipulação nas mãos de quem manda.
A divina preguiça injeta, nas ações humanas, um antídoto contra toda servidão ao trabalho. É o espaço aberto à criatividade, à liberdade, capaz de dar aos homens a sensação de plenitude que só o reencontro de si mesmo pode proporcionar. Sem lucros e sem utilidades oportunistas – apenas pela realização do que há de melhor no ser humano. Pouco importa que seja exercida no domínio da técnica, da ciência, das artes ou do conhecimento de si mesmo, aquilo que os gregos chamavam de autonomia.
Eis onde nos levam as intuições geniais que Mário de Andrade lançou em seu artigo de 1918.
Agora, se alguém ainda dirige à preguiça ou ao ócio um olhar de desconfiança, lembro mais um paradoxo: não é fácil encontrarmos quem tenha trabalhado mais do que Mário de Andrade. Ou quem trabalhou mais do que Picasso ou Paster.
Mas é um trabalho de outra ordem – erotizado, como diria Marcuse anos mais tarde, em 1955, ou, “no convívio da divina Preguiça”, como escreveu Mário naquele distante ano de 1918.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A divina preguiça - Mário de Andrade



Mário de Andrade por Lasar segalO artigo A divina preguiça é um texto fundamental para o entendimento da obra posterior de Mário bem como para esclarecer debates que só  viriam à tona na metade do século XX. Trata-se de um texto pouco conhecido e de difícil acesso, razão pela qual é divulgado aqui. Vai publicado na ortografia da época, o que  lhe dá um sabor especial.
Em postagem seguinte, publico um artigo que escrevi sobre esse texto de Mário de Andrade, saído originalmente no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, em novembro de 2009. Nele procuro mostrar o caráter precursor e ainda não superado das ideias de Mário de Andrade sobre a preguiça, que equivalem a uma teoria da arte e a um questionamento profundo do tal "espírito do capitalismo".







A divina preguiça
Mario de Morais Andrade
(São Paulo, 27 de agosto)


Publicado no jornal “A Gazeta” (São Paulo, 03/09/1918, Anno XIII – num. 3790)

Aquelles que asseveram ter a humanidade éras de progresso, de estacionamento e éras em que a civilização volta atrás, laboram num ligeiro desvio de concepção e numa comprehensão menos exacta da synonymia das palavras. Na passagem das civilizações, como na própria vida, tudo é marchar, buscando um horizonte dianteiro inattingível. A destruição é, como a criação, uma necessidade dessa marcha que impulsiona os homens.
A água emergida da fonte não mais tornará á balsa agreste onde surgiu: será riacho, ribeirão depois, depois caudal... Na história dos homens tudo é progresso; apenas esse progresso trilha por vezes descaminhos, perlustra as sombras dos mattagaes, em vez de, num anceio alevantado, seguir recto para os horizontes onde pompeia o Sol.
Não se poderá dizer, sem receios de pesado errar, que a civilização perlongasse (antes da Guerra) esse caminho que vai ter á luz. Digo antes da guerra, porque é certo que o pampeiro das metralhas, o holocausto dos homens moços pela Grande Causa varrerem o futuro dos bulcoes que o ensombravam; e a humanidade que sobrevier sentirá mais incentivos no desejo, mais enthusiasmos na inspiração.
Um dos symptomas desse descaminho anterior ao famigerado agosto de 1914, era a propensão que tinham os scientistas de explicar as faltas e os vícios dos homens por meio de doenças e de atavismo. Reduziam o humano a um joão-minhoca ainda menos interessante e elevado que o da concepção pessimista de Pierre Wolf.
Os philosophos germânicos, organizados na mais increnque pirataria intellectual de que jamais houve exemplo, tinham surrupiado e escondido nas sáxeas cavenas das suas philosohias aquelle mesmo trigo das virtudes “ceifado ao campo do bom senso antigo”. De que nos fala Raymundo. A guerra será talvez o “Sésamo, abre-te” dessas lapas vertiginosas.
Pensava assim, dentro commigo, folheando as eruditas paginas de Austregésilo sobre a “Preguiça pathologica... Não me assitou cem lel-las, a gargalhada dos deuses de Homero, mas confesso ter-me encrespado os lábios o sorriso das figuras de Da Vinci. Mais uma illusão que nos querem tirar! A preguiça que para uns fora dom dons deuses e para outros peccado mortal, eil-a reduzida a um morbo de nova espécie! Não poderíamos mais gozar dos nossos lazeres, agradecendo-os aos deuses, nem inculpar as nossas acedias preguiçosas, só remíveis no gradil dos confessionários!... Não; nem gozar com aquelles, nem sofrer com estas: a preguiça não era nem regalo nem culpa, resumia-se a uma doença! Todos os preguiçosos seriam outros tantos doentes!... E eu tive como que um visão nova do mundo: via a Terra, modorrada ao calor, redondinha, vestida dum immenso gramado esmeraldino sobre o qual a humanidade intensa se deitára, chapéos nos olhos, mãos nas cavas dos colletes, pausas pantagruelicas culminando no espaço, a dormir, a dormir serenamente, num gigantesco, universal convescote.
Nem gozar, nem soffrer! Não se lhe poderia increpar a mandranice, nem exaltar a felicidade dos ocios: todos soffriam o contagio do mesmo morbo! E a uma receita de doutor de dois mezes de estação de águas, sarada e firme, a humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!
*****
A preguiça teve sempre, conforme o sentido em que foi tomada, modulações varias. Cada época e cada religião, acceitando e comprehendendo a preguiça segundo seu modo de ver, decantara-a ou a repulsara. Na Grecia e na Roma de apogeus incontrastáveis, apesar de terem sido estádios de continuas atividade, onde mais se accentuava o prurido dos ideaes, a anciãs da perfeição, ella foi apreciada e divinizada quase. Tempos de formoso trabalho, onde as saúdes abundavam de seiva, onde as intelligencias eram mais geniaes e as riquezas mais plethoricas, foi-lhe dado imprimir a quase todas as artes plásticas ou literárias o impulso que fez com que ellas attingissem a portentosa serenidade na força e a suprema belleza na verdade. A arte que – como explica Reinach – é mais ou menos um luxo, differenciando-se, entre outros, por esse caráter especial das outras manifestações da actividade humana, não poderia desenvolver-se e alcançar o seu fastigio sinão em meio das riquezas que prestigiaram as collinas de Hellade e os serros mansos de Roma. A arte nasceu porventura dum bocejo sublime, assim como o sentimento do bello deve ter surgido duma contemplação ociosa da natureza. O bello e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio; e os próprios philosophos hellenicos, nas suas preguiças illuminadas, esmagando ao peso das sandálias de areia especular dos seus jardins, gostavam de repousar os olhos nos mármores intemeratos, no verde polycromico das relvas e vergeis, na palpitação das carnações sadias.
O christianismo, comprehendendo mais humana e verdadeiramente a vida, fez da preguiça um pecado... Mas já não é a mesma preguiça. O vicio que o christianismo repulsa é o que conclue pelo abandono das luctas e das porfias, a que nunca refugiram os governados de Péricles. O preguiçoso que o christianismo indigita é o que se avilta na inércia lânguida – porta aberta aos pecados mortaes. O preguiçoso do paganismo é como o Titero de Virgilio que, derreado á sombra das balseiras, olhava as suas vacas pascerem longe, tangendo na avena ruda; ou é como o calmo Petrônio, que vagava pelas ruas de Roma, entrando os mercados onde se expunham virgens nuas, ouvindo as intrigas no Forum, descobrindo as ambições dos Eumólpios, para legar aos homens do porvir as paginas vivazes do Satiricon, a chronica mais perfeita dos romanos da decadencia.
Para nossos indígenas as almas, libertadas do invólucro da carne, iriam, também repousar, lá do outro lado dos Andes, num ócio gigantesco. É a mesma concepção do Eldorado, de Poe, existente além do valle da sombra, que inspirou Baudelaire, Antonio Nobre e o nosso Alberto, nos alexandrinos lapidares de “Longe... mais longe ainda!”
Mas eis que os psychiatras querem trazer á preguiça mais essa qualificação de doentia; redimindo os ocios culposos, vulgarizando os ocios salutares!... Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença! Si algumas vezes é o resultado passageiro duma lesão, não poderá jámais misturar todos os preguiçosos num só caso de observação clinica!
Mil vezes não! Forçoso é continuar, para que o idealismo floresça e as illusões fecundem, a castigar os que se aviltam no “far niente” burguês e vicioso e a exalçar os que comprehenderam e sublimaram as artes, no convívio da divina Preguiça!

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Entrevista à TV Educativa - O conhecimento de Anatol Kraft


O programa Caldo de Cultura, da Televisão Educativa do Paraná, entrevistou o escritor Roberto Gomes e o editor Naotake Fukushima a propósito do lançamento do romance O conhecimento de Anatol Kraft.

Para assistir, clique aqui

Caminhos de uma noite escura




O homem era pequeno e gordo, mas parecia sólido. Um objeto redondo e forte. Os braços eram curtos, as mãos eram grandes, o jeito de andar denunciava que estava cansado ou vencido por alguma dor que desistira controlar. Movia-se com lentidão, não pelo cansaço, mas por alguma determinação à qual se submetia.
Carregava um saco plástico grande e negro, rebelde às suas tentativas de mantê-lo sobre os ombros. O saco despencava para os lados a todo momento. Por isso ele dava solavancos com os ombros, sacudindo vigorosamente a perna direita num chute brusco – o saco ia para o lugar e ele andava uns metros. Logo a aflição recomeçava: o saco deslizava, o homem dava um chute no ar e tudo se arranjava por alguns passos.
Gastara vários minutos, talvez uns vinte, para ajeitar o que colocara dentro do saco. Parado ao lado da caixa coletora de lixo do condomínio, foi escolhendo o que era de seu interesse. Latas, via-se pelo brilho súbito. Mas também papéis, papelão, objetos de plástico. Garrafas. O saco aumentava de volume e se deformava, enquanto o homem lhe dava bofetões de um lado e outro para que se ajeitasse. Gastou nisso os vinte minutos, depois fechou a caixa de lixo e lutou para colocar o saco nas costas, no que gastou algum tempo, pois precisou devolver duas vezes o saco ao chão, ajeitar algo dentro dele, chutá-lo com alguma irritação de um dos lados e sacudí-lo com raiva para que tudo se arranjasse dentro dele. Ao final, se plantou de pernas abertas diante de sua obra e a observou com ares de desafio. De um só golpe, agarrou a boca do saco e o jogou sobre os ombros.
Devia ser pesado. Deu um passo para a direita, outro para a esquerda e pareceu avaliar o seu destino. Súbito, deu um arranque e subiu a rua, certamente o caminho mais difícil.
Vindo de uma rua lateral, o primeiro rapaz, camuflado na escuridão da rua, passou ao lado dele e parou para observá-lo. Outro rapaz surgiu, pilotando um skate, e não teve tempo de desviar. Fez uma manobra brusca e trombou no braço do homem, que deu um berro e rodopiou, largando o saco no chão.
O homem esbravejou, os braços pequenos ergueram as mãos enormes, e disse vários palavrões.
Os dois rapazes apenas olharam para ele, sem reagir.
O homem ameaçou avançar sobre eles, mas parou quando eles ficaram um de cada lado, esperando o ataque e prontos para se defender.
Disse outros palavrões, agarrou o saco com raiva e o jogou sobre o ombro. Foi quando dois outros rapazes chegaram de bicicleta.
Agora estava cercado.
Os rapazes conversaram em voz baixa, olhando para ele.
O homem estufou o peito, deixou o braço esquerdo bem aberto, como se fosse uma arma perigosa, e deu um passo. Os rapazes aproximaram-se. Ele deu um giro para olhar cada um deles, mas não se moveu do lugar.
As bicicletas avançaram em sua direção. Tiraram um fino, uma de cada lado, e ele, assustado, mal conseguiu se manter de pé. Socou o ar e rosnou, engolindo certamente algum palavrão. Foi quando o outro rapaz atingiu suas costas com o skate, derrubando o saco.
Pelo chão ficaram esparramados papéis, papelões, plásticos e algumas garrafas, Uma delas quicou no asfalto e quebrou. O homem avançou sobre um pedaço da garrafa e o empunhou como se fosse um punhal. Já não falava nem dizia palavrões. Com a mão esquerda fazia gestos desafiando que viessem. A mão direita empunhava a arma.
Os rapazes riram. Um deles imitou seu gesto segurando o pedaço de garrafa. Outro fingiu que tremia de medo. Puseram-se a girar em torno dele, aos gritos, enquanto ele tentou atingi-los com golpes inúteis até cair no chão. Antes de sumir pela mesma rua de onde haviam surgido, os rapazes deram chutes nos papéis, papelões e garrafas. Depois se foram às gargalhadas.
O homem custou a se levantar. A mão com a qual segurara a garrafa estava cortada e sangrava. Tirou um pano sujo do bolso e embrulhou a mão. Levantou-se. Recolheu tudo que se espalhara no asfalto. Levou nisso mais de vinte minutos. Tudo terminado, deu um solavanco, um golpe com a perna direita e recolocou a carga nos ombros.
Poderia descer rua abaixo, mas preferiu a direção contrária, que no entanto parecia a mais difícil.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Leia um livro antes de ou depois de


 
Confesso que fico perplexo diante do número de títulos picaretas com os quais as editoras enchem as prateleiras das livrarias. Que fazer? Pela lógica do mercado, é isso mesmo. Sendo isso, pelo que dizem, o que a maioria dos leitores quer ler.
Dia desses, alguém me escreveu perguntando como poderia adquirir um livro de Jamil Snege, autor de textos refinados. Esse leitor já percorrera todas as livrarias de sua cidade sem nada encontrar – e não se trata de uma cidade pequena; trata-se de uma capital e de algum porte. Porte e pose, digamos.
Fui obrigado a explicar a esse sofrido leitor que, em primeiro lugar, ele procurara o livro no lugar errado. De fato, uma livraria é hoje o último lugar do mundo para se procurar um livro. Sobretudo livro que não pertença à tralha dos best-sellers ou não seja obra de alguma celebridade televisiva.
Onde procurar, então? A primeira opção é óbvia, mas não é levada em conta pela maioria dos leitores: ir ao site da editora e comprar pela internet. Simplíssimo. Telefone também serve. Seu livro será entregue em sua casa. Gostoso e quentinho, como uma pizza.
A segunda opção é cada vez mais usada pelos leitores desesperados: procurem num sebo. É nos sebos que encontramos os melhores títulos, tanto os clássicos quanto os editados há mais de um ano. Não insista com as livrarias. As pobres coitadas já não dão conta de vender livros de ocasião, de autoajuda, de “espiritualidade”, e você querendo que elas se ocupem com títulos culturalmente importantes. Como treinar para tanto atendentes pegos a laço e que jamais abriram um livro? Demais para uma livraria.
Falar em atendentes, dia desses aguardei quatro tentativas para que um deles digitasse corretamente Eça de Queiroz. Uma sucessão de equívocos. É Sá de Queiroz. Essa de Queiroz. Éssa de Queiroz. Sá de Queiroz. Foi quando soletrei. Saiu Eca de Queiroz, mas isso é culpa da configuração do teclado ou talvez mais uma ironia do escriba português.
Como passei a vida remando contra a maré – e já não me resta ânimo nem paciência para remar a favor – fico com uma pulga inquietante atrás da orelha. Por exemplo: há no mercado uma série de livros cujos títulos são variações a respeito da equação marqueteira seguinte: “1001 coisas a [incógnita] antes de morrer”.
A variedade é infinita: ler, viajar, conhecer, ver, rever, citar, esquecer. Imagino que venda horrores – horrores equivalentes às séries dos vampiros, monstros, extraterrestres, gnomos, espíritos do bem e do mal, com as quais as prateleiras também andam cheias. Sem falar nas joias do pensamento picaretamente correto que produzem bons conselhos e mediocridade ao alcance de todos.
Mas a equação marqueteira me deixa perplexo, repito. Na minha lógica simplista, tudo que qualquer ser humano possa fazer será necessariamente “antes de morrer”. Ou não?
Pois, remando contra a maré, vou em frente. E depois de morrer? Pronto, lá fiquei matutando para saber o que farei depois de morrer, eu que já nem sei o que fazer antes de.
Como aprendi com Oscar Wilde que se deve resistir a tudo, menos às tentações, concluí que gostaria de ler. Foi ao menos a primeira coisa que me passou pela cabeça. Portanto, havendo possibilidade de fazer algo após a morte, se lá no paraíso prometido não houver uma boa biblioteca, tô fora.
Me perdi. Queria comentar as tais coisas a fazer antes de morrer e me perdi, pois esse truque marqueteiro me parece aflitivo. Mais ou menos como aquelas mães que dizem aos filhos: come tudo que está no prato senão dou a comida para o cachorro. Então, a criança come. Uma competição com o cachorro, ou, para manter o clima dantesco do tema, com o Cão. Que está ali, na porta que se abre (ou fecha) para o além.
Então, vamos fazer o que? Ver, viajar, conhecer coisas. Acumular coisas. Amontoar coisas. Cidades em cartões postais ou em cartões de memória, onde ficarão sepultadas para sempre. Empanturrar-se de coisas vistas, ouvidas, faladas, comidas, bebidas. Que coisas? Não importa. Que sejam muitas coisas, que é uma maneira de projetar para após a morte um mundo igual ao fantástico mundo do consumo que se viveu antes dela. Tudo vale a pena se a pança não é pequena, deve ser o lema.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O conhecimento de Anatol Kraft

Levo ao conhecimento dos amigos e seguidores desse blog que, através das editoras Criar Edições e Insight lancei recentemente meu novo romance, O conhecimento de Anatol Kraft, que já se encontra a disposição dos interessados nos sites das editoras (www.criaredicoes.com.br e www.editorainsight.com.br).

Transcrevo abaixo o release divulgado pelas editoras. Quem ajudar a divulgar junto a seus amigos, ganhará como prêmio um paradoxo inédito de Anatol Kraft, especialmente bolado para a ocasião... 

Agradeço a todos.



O conhecimento de Anatol Kraft - release

Sétimo romance publicado por Roberto Gomes, tem como personagem central a figura de um imigrante alemão, que chegou ao Brasil na primeira metade do século XX, depois de circular por vários países da Europa. Criatura dotada de um senso de humor peculiar, capaz de paradoxos a cada frase, Anatol, na sua busca de compreender a experiência humana, se encontra perdido entre o gozo estético, a militância política, a polêmica cultural mais ou menos inútil e a busca do prazer puro e simples.
Nas palavras do crítico literário André Seffrin, que escreve o texto de apresentação do livro, “Anatol Kraft chegou ao delírio de imaginar que a vida fosse dividida em parágrafos, palavras, letras. O mundo não passaria enfim de um trepidante romance: quanto mais delirante, mais verdadeiro mundo, com personagens reais porque absurdos, exagerados, impossíveis”.
No inesperado quarteto que se estabelece entre Anatol, com mais de setenta anos, e os jovens Henrique, Marina e Tereza, o romance de Roberto Gomes abriga dentro dele mesmo outro livro, escrito por Anatol, chamado Do outro lado do mundo. Desse jogo de espelhos o romance tem, no dizer ainda de André Seffrin, “um enredo moldado à maneira de novela ou conto russo do final do século XIX, em que o domínio pleno da arte narrativa e personagens com força vital não são de fato os únicos atrativos”.
O quarteto amoroso, no entanto, não é apenas uma ciranda afetiva e sexual. Trata-se da busca de um sentido perseguido pelos quatro personagens. Busca destinada ao fracasso, pois, como repete Anatol Kraft ao longo do romance: “prever o passado é uma arte dificílima”.

domingo, 9 de outubro de 2011

Cuba antes e depois de Fidel




Noturno de Havana (Ed. Seoman) me lembra outro livro a respeito da ilha de Fidel – Viagem ao crepúsculo (Ed. Casa das Musas), do jornalista pernambucano Samarone Lima sobre o qual escrevi há cerca de um ano. Noturno é do jornalista norte-americano T.J.English, autor com alguns prêmios no currículo. Não é um livro brilhante e a edição brasileira tem uma desvantagem: a tradução é sofrível e a revisão é troglodita. Mesmo assim, povoado de personagens hoje míticos – Albert Anastasia, Lucky Luciano, Meyer Lansky e, que não se perca pelo nome, Santo Trafficante, tendo como atores coadjuvantes nada menos que Frank Sinatra e George Raft – o livro de English merece ser lido.
O que pode ligar essas duas obras é o que as afasta no tempo. Viagem ao crepúsculo, de Samarone, é pós-Fidel: fala dessa Cuba que o mundo acompanha há cinquenta anos e que para muitos de nós foi objeto de debates acalorados, quando não de pugilatos explícitos. Samarone mostra um país que, depositário de tantas esperanças, se desfez sob o tacão do autoritarismo, do dirigismo e do sectarismo. Um sonho desfeito. Num país como o Brasil – onde nada se discute, onde ninguém toma posição intelectual sobre nada, motivo pelo qual os debates sobre Cuba costumam não passar de uma descarga convulsiva de preconceitos – ilumina os impasses a que chegou a Cuba de Fidel.
Já o livro de T.J. English se encontra na outra ponta da história: pré-Fidel. Trata do sonho da uma ilha tropical onde tudo é permitido – a Cuba dos cassinos sob o controle da Máfia, o país de Batista, o ditador fanfarrão, visto com bons olhos pelos EUA. Um mundo de fantasias, de luzes e delírios, de boates e shows, de grandes festas, de jogatina, com a música de fundo sob a batuta de Pérez Prado e sua orquestra.
Essa Cuba pré-Fidel foi gestada muitos anos antes por duas figuras do submundo: Lucky Luciano e Meyer Lansky. Luciano, que vivia contrariado seu exílio na Itália, chegou a Cuba para se reunir com Lansky, um baixinho de 1,60m também conhecido como “Little Man”. Encontraram-se no Hotel Nacional e redesenharam seus antigos planos.
Perseguida nos EUA, a Máfia tinha como objetivo se estabelecer em Cuba como base de ações criminosas, plano que vinha dos anos 20, quando se tornara rota para o tráfico ilegal de bebidas. Luciano e Lansky não foram os primeiros mafiosos a chegar a Cuba. Al Capone teve essa primazia. Ele gerenciou seus negócios entre charutos, assassinatos e audições de Enrico Caruso, seu cantor preferido.
No entanto, é com Lansky que essa Cuba florescerá nos anos dourados de 1952 a 1959. O país gozará então de um crescimento extraordinário. Grandes hotéis-cassino, boates, turismo, estradas, luzes de néon, mambo, drogas e sexo. Tal “crescimento”, no entanto, serve apenas para mostrar que a festa se destinava a uma minoria de estrangeiros e nacionais agregados, além de uma multidão de turistas. A grande massa da população estava à margem, vivendo na miséria, em casebres, sob o tacão de Batista, “El mulato lindo”, que amealhava um milhão e meio de dólares mensais para manter o quintal em ordem.
Estava armada a festa dos anos dourados de Cuba, a projetada Monte Carlo do Caribe. Foi nesse ponto, o país mergulhado em corrupção, tráfico e jogatina, que apareceu Fidel, de início ignorado por Batista e pelos mafiosos, que não o levaram a sério até o último momento, quando fugiram da ilha levando dólares em maletas e abandonando fortunas acumuladas com base em atividades criminosas. Não foi sem motivo que Rolando Masferrer, matador de aluguel e senador cubano, tentou por duas vezes matar Fidel. Depois, quando a situação já estava perdida, Lansky – que ofereceu prêmio de um milhão de dólares para quem matasse Fidel – fez vários projetos de assassiná-lo, de comidas envenenadas a explosivos em charutos, mas já era tarde.
Pois entre essas duas Cubas, encontramos Fidel, que deu fim à festa do crime organizado. Mas Cuba não se tornou o paraíso sonhado pelos criminosos nem o paraíso socialista sonhado por Fidel. Continuam lá, apesar de avanços em áreas restritas, a miséria, o atraso, o espírito ditatorial, a liberdade cativa, as prisões arbitrárias e algumas coisas tristes e comoventes em seu primarismo. Cinquenta anos após a revolução, Cuba anuncia medidas que nos fariam rir se não escondessem tragédias: os cubanos poderão a partir de 01/10/2011 vender ou comprar seus carros! Talvez um daqueles cadilaques nos quais Albert Anastasia fumava charutos e mandava atirar em quem o aborrecia.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Os óculos de Eulália





A filha, Anita, observou a mãe, Eulália, diante da televisão. Curvada para a frente, os olhos espremidos, a testa enrugada, as mãos apoiadas nos braços da poltrona como se fosse saltar na direção da tela.
- Mãe, cadê seus óculos?
Eulália olhou-a irritada. Lá vinha a filha perguntar de novo pelos seus óculos. Anita adquirira nos últimos tempos essa mania de controlar tudo que fazia, aonde ia, como andava, se estava com a coluna reta ou torta, se tossia ou gemia ao se abaixar.
- Não sei, disse, fingindo-se de desentendida. Por aí.
- Por aí, onde, mãe?
- Por aí, fez ela, aproximando-se da televisão e apertando os olhos.
Anita levantou-se e se colocou entre ela e a tela.
- Que foi? perguntou Eulália.
- Os seus óculos sumiram já faz uns seis meses. Não se faça de boba.
- É. Mais ou menos isso. E daí?
- A senhora precisa usar óculos, mãe.
- Ah, deixa eu ver a novela! Sai da frente.
- Só se me prometer uma coisa.
Eulália jogou-se contra o encosto da poltrona, vencida:
- O que você quer dessa vez?
- Que a senhora vá comigo ao oculista.
- Por quê?
- Porque a senhora está precisando.
- Precisando o quê?
- Enxergar direito.
- Enxergo muito bem. Estou vendo a novela, não estou?
Anita perdeu a paciência, disse que ia caminhar, aproveitar aquele final de tarde com sol. Perguntou:
- Quer caminhar comigo?
- Deus o livre! Quero ver a novela. Sabe o Carlos Alberto?
- Não, não sei, não assisto novela.
- Acho que ele vai...
Furiosa, Anita saiu porta afora.
Eulália ficou sozinha e, mesmo tendo Carlos Alberto aparecido na tela e se aproximado de Ana Maria, não prestou atenção na televisão. Quem sabe Anita estivesse com a razão, pensou, olhando para a porta por onde ela escapulira furiosa.  A filha tinha manias de solteirona, mas a verdade é que andava preocupada. Talvez ainda continuasse solteira só para cuidar dela. Eulália levantou-se da poltrona e foi em busca de um copo de água. Quando alcançou a porta da cozinha, ouviu um grito e se virou para a televisão. Uma sombra escura, Carlos Alberto, se debruçava sobre uma sombra vermelha, Ana Maria. Que grito estranho, pensou. Essa Ana Maria é cheia de fricotes, devia aceitar de uma vez casar com Carlos Alberto. Ou seria o Aguiar, o crápula, que entrara em cena?
Eulália aceitou fazer os exames no oculista. Quando os óculos ficaram prontos, ela sentou na frente da televisão e viu que de fato já não enxergava quase nada. Lá estava a casa de Carlos Alberto, os móveis, os quadros na parede, a paisagem vista pela janela. O rosto perfeito de Ana Maria. Como eram belas aquelas cores, pensou ela. E saiu pela sua própria casa, olhando para tudo com uma surpresa de criança. O retrato de Anita quando menina sobre a cristaleira. A cortina, o tapete, lá fora no jardim o pé de goiaba. Seu Alípio atravessando a rua. Suspirou. O banheiro com seus ladrilhos floridos, a cortina de plástico rosa. O espelho no corredor.
Eulália parou na frente do espelho e ficou estática. Curvou-se para a frente e viu um rosto cansado, marcado por rugas e manchas. O olho esquerdo parecia derramado para o lado. Os cabelos, ralos, eram fiapos espetados no ar. Meu Deus, pensou ela, como estou velha e feia.
No dia seguinte, na hora da novela, Anita deu pela falta dos óculos.
- Mãe, cadê seus óculos?
- Pois não sei, minha filha. Sumiram.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O preço do livro eletrônico é extorsivo


 
Divido com muita gente o fato de ser um apaixonado por livros. Por isso passei a vida às voltas com livros e, além de escrever alguns, editei uma boa grande quantidade deles.
O livro – essa coisa física - me parece uma das realizações mais geniais do ser humano. Pode ser ele mesmo uma obra de arte primorosa e, ao mesmo tempo, ser portador de uma obra de arte. É prático, é simples, é companheiro, viaja conosco, dorme ao nosso lado, está disponível para ser consultado em qualquer ordem ou lugar – e sem precisar de bateria ou de tomada elétrica por perto.
Costumo dizer que se na prometida vida após a morte não existir uma boa biblioteca, tô fora.
Apesar desse apego ao livro físico em papel, acho ótimo o aparecimento do e-book. Já escrevi nesse blog que o e-book não substituirá o livro em papel. É outra forma de apresentar textos e imagens. Em algumas coisas supera o livro em papel: podemos armazenar um número enorme de livros num leitor e carregar conosco uma biblioteca; a consulta por palavras é mais rápida, mais simples e mais segura. Mas tem suas desvantagens: o leitor no qual ele é lido jamais poderá ser chamado de obra-prima e em sua tela não poderemos apreciar obras de arte em termos de tipografia e de reprodução de imagens com a qualidade que se alcança em papel. Etc.
No entanto, o e-book veio para ficar e a meu ver é bem vindo.
Mas está havendo certa bandalheira na venda de livros eletrônicos. A bandalheira à qual me refiro não se deve ao e-book como tal, mas à atração que o ser humano tem pela ladroagem.
Vejam bem. Tomo como exemplo a Autobiography, de Mark Twain, livro que espero ler em breve. No site Amazon, a edição em papel – que o site diz custar oficialmente 34,95 dólares – está sendo oferecida por 21,29 dólares. Em reais (tomo por base o dia 14/09/2011) R$ 59,85 e R$ 36,46, respectivamente. Sendo em formato para e-book, custa $ 11,79, ou seja, R$ 20,04.
Como se vê, o livro eletrônico custa mais da metade do livro em papel. Me parece um absurdo. Afinal, no livro digital só sobra do livro em papel – ainda que seja o principal - o texto. Sem papel, sem impressão, sem acabamento, sem capa, sem distribuição, estocagem, transporte, correio ou embalagem. É caro. Caríssimo.
A coisa fica ainda mais absurda se compararmos com o preço cobrado num site brasileiro, onde o mesmo livro de Mark Twain, em formato digital, custa R$ 42,09 reais. Ou seja, mais do que o preço cobrado no site Amazon pelo livro em papel.
Encontrei vários outros exemplos, todos confirmando o preço extorsivo. Não vou cansar os leitores com um bando de números. Apenas noto que, salvo engano meu, na maioria dos casos o preço do digital supera os 50% do livro em papel. Achei apenas um exemplo contrário digno de nota: a edição italiana da Divina Comédia, de Dante, que em papel pode ser adquirida por 24,50 euros e, em forma digital, por algo entre 0,99 euros e 5,25 euros.
Isso me lembra o preço cobrado pelos softwares - da Microsoft e de outras empresas. Sempre me pareceram extorsivos, em muitos casos justificando a pirataria. Como é que se pode cobrar, por exemplo, $149,99 por uma cópia do Office Home and Student 2010? São 256,89 reais! E se você quiser o Office Professional 2010 terá que desembolsar $499,99, ou seja 857,33 reais! Por uma coisa que é vendida aqui no Brasil e nos confins da China, em Paris tanto quanto em Angola! Além do fato de todo preço acompanhado de vírgula 99 me parecer uma afronta à inteligência do comprador.
É demasiado por algo que se vende – via download - mundo afora após um clique de um mouse! Mesmo considerada a criação do programa e a estrutura de atendimento, o preço é exagerado.
O preço dos e-books, portanto, está seguindo a lógica dos softwares: são cobrados preços arbitrários e absurdos. Extorsivos.