segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O dia seguinte



Aqui na Vila temos três tipos de leitores: os que leem, os que escrevem e os que não leem. Paulinho Ventura é o maior leitor de todos os viventes, devorador de livros e de papéis, sabedor de todos os clássicos e contemporâneos. Criou uma biblioteca comunitária só para ele e vive no quartinho dos fundos, o único não ocupado pela livrarada que abarrota as outras dependências.
Leitor menos modesto e mais arteiro é Laurinho Telefone, autor de vários poemas de T.S.Eliot, que costuma ler para amigos e amigas em telefonemas dados durante a madrugada. Ao acordar os incautos para ler os poemas, perde amigos, mas conquista novas namoradas.
E há Carlão Borracheiro, que não lê, nunca leu, jamais lerá coisa alguma. Alimenta, ao contrário, aquele orgulho feroz que só a mais completa ignorância é capaz de proporcionar. Já tem tanta gente lendo, pergunta ele, por que vou perder tempo?
Quanto a Sutil Pedroso, não se sabia se era ou não leitor, pois tem por hábito chegar ao boteco já torrado e macambuzio, resmungar um boa-noite rude e ocupar a mesa mais afastada, onde fica a beber olhando fixo para a parede em frente. Tipo indecifrável. Só sai dali carregado por Carlão Borracheiro, quatro ou cinco horas depois. Assim era Sutil Pedroso.
Até que um dia ele chegou mais cedo e cumprimentou, alto e bom som:
- Boas noites, senhores.
Laurinho cutucou Paulinho Ventura e disse:
- Andou lendo Machado de Assis.
Os dois caíram na gargalhada e Sutil Pedroso fez que não era com ele. Lá pelas tantas, quando Paulinho lamentou o tédio atual dos livros publicados – enredos de série de televisão, no máximo, comentou o erudito – Sutil interferiu na conversa:
- Sabe...
Os dois acompanharam assombrados aquela torrente de palavras que o ex-mudo disparou:
- ...dia desses li um livro.
Laurinho sussurrou para Paulinho:
- Não te disse?
- Que livro? perguntou Paulinho.
- Livro, ora.
- Podemos saber o título? indagou Laurinho.
- Nem sei.
Laurinho ia perguntar pelo autor, mas calou-se quando viu Sutil puxar uma cadeira e sentar a seu lado.
- Não sei de nome nem de autor. Livro de história. Mas tem uma coisa que não me saiu da cabeça. O dia 14 de maio de 1888.
- 13 de maio, corrigiu Laurinho.
- Não, poeta, disse Sutil, como quem atira uma pedra. É 14 de maio mesmo. O dia seguinte. Já imaginou aquela turma toda nas ruas, livre, andando de um lado para outro? Quer comer, cadê comida? Quer dormir, cadê casa? Cadê emprego e grana? Acho que dava um romance.
O silêncio tomou conta do boteco e mesmo Cego Tião interrompeu a anotação de um jogo de bicho e deixou dona Martinha esperando. Estava pasmo. Bem que achou aquele boas noites muito estranho. Que dera no homem?
- E daí? Paulinho e Laurinho perguntaram em uníssono.
- Só isso. – e Sutil acrescentou o que lhe veio à cabeça: Tem outra coisa...
- O que? – foi o Cego Tião quem perguntou, já ao lado da mesa.
- A Domitila. Sacam a Domitila? perguntou Sutil.
- Sacamos – responderam os três.
- Tá no começo do livro. Pois perto dessa Domitila marquesa de Santos, o mensalão é pinto. Perto dela a distribuição de cargos e verbas de nossos dias é fichinha.
Laurinho e Paulinho se olharam, mudos. O cego voltou ao balcão para completar o jogo de dona Martinha, que já tamborilava sobre o balcão. Sutil Pedroso levantou-se e, antes de sair do boteco – pela primeira vez usando as próprias pernas – colocou o copo sobre a mesa e disse:
- Cês pagam.
E nunca mais abriu a boca no boteco. Voltou ao velho hábito: chega, pede a primeira dose, bebe olhando para a parede em frente até ser carregado por Carlão. Volta dois dias depois. Nunca mais disse palavra, nem um simples boas noites.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Luis Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura - lições de tudo


O livro Conversa sobre o tempo (Agir, 2010) reúne um longo – e interminável – papo entre Luis Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura. As entrevistas são conduzidas – às vezes em excesso – pelo jornalista Arthur Dapieve. As conversas, ao longo das duzentas e cinquenta páginas, passeiam por todos os quadrantes, em torno de cinco eixos: amizade, família, paixões, política e morte. A leitura é sempre um prazer, mas se ressente que duas coisas: a sensação de que em momento algum os entrevistados deslancham de verdade, chutando todos os paus da barraca e abrindo a alma francamente, tomando as rédeas da conversa. Outro senão é o fato de que, sendo Zuenir um extrovertido muito do exibido e Veríssimo um introvertido mórbido – lembro que “exibido” e “mórbido” não são críticas, pelo contrário – o primeiro fala muito mais do que o segundo.
Mas o livro é bom e se lê com prazer. Além das conversas sobre amizades, família e paixões, o que torna a leitura mais intensa são as conversas sobre política e morte, sobretudo sobre essa última, a indesejada das gentes, que fecha o livro. Daí a sensação paradoxal que nos assalta ao final: fala-se de morte e saímos do livro como de um renascimento.
Diante da gratuidade e absurdo da vida, ficamos ao final com as confissões bem humoradas e irônicas dos entrevistados, que tentam exorcizar suas vaidades. Zuenir confessa que gostaria de ser lembrado como pintor de paredes, ofício que exerceu quando menino, ao lado de seu pai. E essa seria a frase que resumiria sua vida: “Começou como pintor de paredes e nunca se superou”.
Já Veríssimo, depois de dizer que seus livros estão mais no campo do entretenimento do que no da literatura, conclui que “gostaria de ser lembrado como um cara decente. Um cara decente como foi meu pai, decente em todos os sentidos da palavra. E que, sei lá, tocava um blues respeitável”.
Duas grandes figuras fazendo homenagem ao pai, aos pintores de parede e aos músicos amadores, entre os quais Veríssimo se inclui. E nos sugerindo coisas sobre o que realmente importa na vida, na literatura, no jornalismo e num país chamado Brasil.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Medo de voar e de outras coisas






Laurinho Telefone, o mais célebre dos poetas do boteco do cego Tião, é autor de proezas dignas de um Don Juan das Araucárias. Já foi perseguido pelas ruas da Vila por maridos em fúria, por credores armados com pistola e, sobretudo, por algumas de suas incontáveis ex-mulheres.
E nada disso o assusta. Porém – há sempre um porém, como sabemos – Laurinho tem um medo do qual não consegue se livrar: avião. Até poucas semanas, era um segredo de estado sobre o qual nunca se ouvira falar. Ocorre que na Vila, mais dia menos dia, tudo se sabe e foi o que aconteceu. De tanto inventar mentiras para evitar viagens, Laurinho acabou desmascarado e a Vila descobriu que ele, tão destemido, teme, como gosta de dizer, “aquele charuto de lata abarrotado de querosene”.
O poeta virou motivo de chacota. Colocaram avisos moleques nos postes da redondeza e um trovador, seu concorrente na disputa das musas, fez uns versinhos onde debocha do sujeito que, vivendo sempre tão alto, teme voar.
- Avião é seguro – provoca o causídico da Vila, Dr. Pâmphilo Data Vênia – Pode ficar descansado: avião não cai!
Laurinho, antes de virar mais uma dose, fulminou o doutor:
- O problema não é cair. O problema é que ele voa!
Pronto, estava feita a polêmica. Os dois, mais Carlão Borracheiro e Paulinho Ventura passaram o resto da noite, sob o olhar entediado do cego Tião, a discutir questões de voo e de pouso, de alturas e querosene. E nada se concluiu.
Mas, sob tamanha pressão, Laurinho resolveu dar um basta no drama. Passou várias tardes no Afonso Pena, depois de um estágio observando aviões menores descendo e subindo no Bacacheri. Andou pelas livrarias, onde é conhecido por comprar apenas livros de poesia – coisa que ninguém faz, nem mesmo poetas consagrados – e recolheu livros de autoajuda para vencer o medo de voar. Antes disso, leu tudo que foi possível encontrar na internet, via Google, o senhor de todos os saberes, a respeito de voos e medos de. Trancou-se em casa, na companhia de algumas garrafas de vinho, e fez uma verdadeira pós-graduação em medos de, acidentes em, voos para, estatísticas sobre.
Foi um choque. Dias depois, já dissertava com autoridade no boteco sobre a segurança nos voos. Existem dois ou três sistemas de controle das aeronaves, sabiam? Ninguém sabia. E explicou, com ares de especialista:
- É avião quando está no chão. Aeronave quando está voando. Sabiam?
Não, não sabiam. E a falação continuava:
Segundo estatísticas, o avião é o meio de transporte mais seguro de todos, tirando o trem. É, o trem. Mas de trem, dizia ele, não se vai a lugar algum, nem mesmo até à Vila Capanema. Ocorre que nesse momento estão no ar 450 mil aeronaves – e os acidentes só acontecem na proporção de um para cada um milhão de voos.
E Laurinho mergulhou em distinções de natureza epistemológica:
- Medo de voar é uma coisa. Fobia é outra. Quem tem medo, voa mesmo assim. Quem tem fobia nem entra em avião.
Foi um espanto na academia literária do boteco. E Laurinho seguia, esgrimindo dados e novas doses de pinga:
- 60% das pessoas têm medo de voar – e acrescentou, após um breque cheio de suspense: Os outros quarenta por cento mentem.
Gargalhada geral. O homem estava curado, comemorou o doutor Pâmphilo.
Antes de se debruçar sobre a mesa e adormecer profundamente, Laurinho concluiu dizendo que indo de carro para o aeroporto há uma chance quinhentas vezes maior de acidente do que voando. Andar de bicicleta é mais perigoso. Até mesmo caminhar ou subir escadas é mais perigoso. Os acidentes domésticos matam mais. E, antes de começar a ressonar, arrematou: é o que dizem as estatísticas.
No dia seguinte, porém, passado o porre, a Vila descobriu que Laurinho, não apenas não perdera o medo de voar, como passara a se atormentar com novos medos, todos apoiados em estatísticas. Largou o carro na garagem, frequenta apenas o térreo da boate de Ritinha Veludo, evitando subir escadas, e, por dois trocados, vendeu a bicicleta. E só caminha de mansinho. 


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Meditações que medito

1.

Todo bom percussionista não bate bem.

2.

Não se pode confiar nem na direita nem na esquerda. Basta virarmos as costas para que elas troquem de lado.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Duas catástrofes: a natural e a política


Catástrofes servem para aprendermos geografia. É o que ensinava uma antiga crônica de Rubem Braga. Dizia ele que só assim ficamos sabendo da existência de certas ilhas, vulcões ou cantões perdidos nos confins do mundo.
Como sabemos, o mundo mudou e hoje, além de já não serem escritas crônicas líricas e refinadas como as do velho Braga – os tempos são rudes e ásperos – as catástrofes, desiludidas de sua tática pedagógica, passaram a ocorrer nos quintais de nossas casas. Já não nos ensinam geografia. Perdemos o lirismo e os saberes dos confins do mundo.
É o que ocorre com essas catástrofes de janeiro. Todos sabemos algo a respeito de Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo. Sabemos que dom Pedro II amava passar seus dias naquelas alturas e alguns de nós já tivemos a sorte de visitar a região.
Então, o que nos ensinam essas catástrofes? Duas coisas, penso eu.
A primeira é a solidariedade e o espírito de sacrifício da população em tragédias desse tipo. Não faltou nem mesmo um salvamento cinematográfico, o daquela senhora içada ao alto de um prédio por dois rapazes que conseguiram – onde? através de que milagre? – uma corda suficientemente longa e forte para a proeza.
Não faltaram outros exemplos. Gente que perdeu tudo, mas que mesmo assim se tornou voluntário e passou dias recuperando corpos, limpando ruas, atendendo feridos. Um senhor – pedreiro, pelo que lembro – me deixou perplexo. Perdeu a mulher e o filho. No entanto, lá estava ele, enxada em punho, ajudando a amenizar dores alheias em luta com as próprias dores.
Além disso, de todos os lugares do país, com uma velocidade e um volume incríveis, surgiram doações, recolhidas por todo tipo de gente, levadas aos postos de coleta a pé, de carro, de bicicleta. Isso quer dizer que somos capazes de solidariedade e de atuação efetiva, que nos comovemos e reagimos cordialmente, no sentido que dava a essa palavra Sérgio Buarque de Holanda: agimos pelo coração. Ademais, que somos capazes de ações coletivas extremamente complexas – seleção, embalagem, transporte, entrega, tudo isso que especialistas chamam de logística – realizadas com grande competência.
A segunda coisa que aprendemos nos foi oferecida pelo espetáculo de autoridades atônitas, perdidas como baratas tontas, indo e vindo entre declarações desencontradas, esquivando-se de responsabilidades com a ligeireza de bagres ensaboados. Entrevistas cuidadosas, menos preocupadas com as vítimas, os mortos e os desastres, e mais em como passar uma imagem de eficiência. Todas as autoridades apontaram a “natureza” como a culpada.
Claro, a natureza tem seus próprios rumos e, como é dito dos rios, sempre volta a seu curso. Se os homens dependuram casas onde não poderia haver casas, ela as joga morro abaixo e as cobre de escombros.
É verdade que as autoridades, por mais que se imaginem poderosas, não podem nem são obrigadas a domar a natureza. Mas quem administra uma cidade, um estado ou um país, precisa estar atento a cuidados básicos. Ou seja: alertar do perigo, socorrer vítimas com eficiência, determinar e fiscalizar onde é possível construir – os leitores estarão lembrados do morro do Bumba, quando a catástrofe nos ensinou que um bairro foi construído em cima de um lixão.
Assim, contrastando com a capacidade com que a população reage solidária, constatamos a lerdeza e alheamento das autoridades.
Por isso, lembrei-me de certos governantes que alegam, diante de protestos populares, que não “decidem sob pressão”. A verdade é que autoridades só agem sob pressão. Só pensam quando no limite. No mais, exercem seus truques, disfarçando a própria incompetência, a falta de planejamento, a falta de visão. A imprevidência. E só lhes resta fazer, entre voos de helicóptero ou declarações estudadas para a mídia, caras de preocupação e promessas de providências que jamais serão tomadas.
A presidente da república, como se anunciasse uma verdade metafísica, disse e repetiu que a ocupação irregular é uma regra. Esqueceu-se de dizer que, se a catástrofe natural está além da força humana, a catástrofe administrativa é a triste lei dos homens.