quinta-feira, 28 de abril de 2011

Um elefante no meio da rua


O elefante surgiu na esquina às sete horas. Pontual como sempre. Não costuma se atrasar, exceto às sextas-feiras, quando faz um desvio para passar na praça onde há uma feira e uma cesta com frutas a sua espera.
Lá vinha ele, como sempre, sem dar qualquer sinal de que me via. Aliás, tem esse ar ausente dos elefantes. Parece pensar em outra coisa, ocupado com raciocínios profundos e distantes de nossas ocupações habituais. Os elefantes são introspectivos.
Ali no meio da rua, ultrapassado por um ônibus apressado e um menino numa bicicleta, ele não se abala. Lerdo e pesado, segue nas mesmas passadas sonolentas. Olha as casas, parece examinar as calçadas, vez por outra para e remexe o chão com as patas enormes.
Como de costume, espero junto ao meio fio.
Confesso que às vezes me irrita esperar por ele, demorado e calmo para minha aflição. No entanto, lá vem ele, a quatro quadras de distância, o que aumenta o tempo de espera. Já pensei em fazer algo que possa acelerar seu passo. Talvez acenar, gritar, mas desisti. A agonia é minha, não dele. Melhor que chegue lentamente, balançando o corpo de um lado para outro, dando pernadas que parecem chutes casuais no ar, assumidamente preguiçoso.
Melhor assim, vou pensando, agora que caminhamos juntos. Mantenho certa distância, uns seis ou sete metros, e me coloco quase no meio da rua enquanto ele prefere andar a poucos centímetros da calçada. Minha distância, explico, é estratégica. Trata-se do melhor ângulo para observá-lo e a garantia de que não serei atingido caso ele resolva fazer alguma obra inconveniente.
Essa é uma das razões que colocam em polvorosa algumas senhoras aqui do bairro que, além de cuidarem da própria casa, se dedicam a cuidar de tudo que se passa na rua, seja um carro barulhento, um cão vadio ou, como é o caso, um elefante. Algumas delas aguardam a passagem do paquiderme empunhando uma pá e uma enxada. Quando ele, desprezando seus cuidados, avança sem sujar a rua, elas vibram e gritam umas para as outras:
- Escapamos!
E riem. Acho até que elas gostam do elefante, mas não conseguem dizer isso a ele, que as olha com seu olhar sofrido.
Além dessas mulheres, há um homem gorducho, de bigodes sorridentes, que nos espera sentado num banquinho colocado na calçada. Cruza os braços em volta da pança enorme e repete o mesmo refrão ao passarmos:
- Vejam só aquilo! Vejam só! Lá vão os dois!
Na verdade, o elefante só reage assustado quando surge uma senhora que mora a duas quadras da praça. No primeiro dia em que a vi, levei um susto enorme, pois ela batia com um martelo numa enorme panela, gritando:
- Xô! Xô! Xô!
No dia seguinte, quando ela voltou com a panela e o martelo, perguntei por qual razão espantava o pobre elefante. Ela respondeu não querer que o animal – é como se referiu a ele – subisse na calçada, pois ela afundaria sob o seu peso descomunal.
Examinei a calçada e vi que não estava danificada. Perguntei:
- Mas ele já invadiu a sua calçada?
- Não.
- Então, por que o espanta?
Ela não perdeu a pose:
- Nunca se sabe o que um bicho desses pode fazer, não é mesmo?
O elefante virou-se na minha direção e trocamos um olhar cúmplice. Juro que ele sorriu. O que jamais confessarei para o pessoal aqui do bairro. Pensariam que fiquei biruta.
Outra meia hora de caminhada e nos separamos, a duas quadras de minha casa.
Ele faz uma pequena parada na esquina, balança a cabeça e me olha de forma quase dolorosa, despedindo-se. Aceno para ele e me afasto. Até a próxima, digo, mas é certo que ele já não me escuta. Voltou a mergulhar em suas lembranças imemoriais.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Pequeno manual para entender capitalismos e comunismos


O mundinho em que vivemos anda incompreensível.
Dou exemplos. Em Cuba, tida e havida como socialista e comunista, a presidência do partidão foi  passada do Castro, Fidel, para o Castro, Raul, no melhor estilo imperial.  Comenta-se que está em estudo no país do Caribe a liberação dos habitantes para gerirem pequenos negócios, fazerem comércio e mesmo – vejam só que decadência burguesa! – venderem suas propriedades, como casas e terrenos, sem a autorização direta do governo.
Lembra o tempo dos Luízes franceses, que concediam licenças aos comerciantes para se estabelecerem em pequenos quiosques nas pontes de Paris.
Enquanto isso, a Lamborghini anuncia que espera vender mais carros de luxo na China – país dito República Popular e mencionado como socialista – do que nos EUA. A máquina custa algo em torno de dois milhões de reais, se comprada no Brasil, e cerca de 260 mil euros na Europa.
A China, como se sabe, não é um modelo em termos de direitos humanos e políticos, o que não impede que democratas dos EUA e esquerdistas de outros recantos a apontem como exemplo a seguir.
Mundinho estranho. Não é sem motivo que um amigo meu costume suspirar no meio de nossas conversas:
- Ah, que saudades do tempo em que esquerda era esquerda, direita era direita, capitalistas eram capitalistas, comunistas eram comunistas, democratas eram democratas! Eu era feliz e não sabia!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Picasso, Drummond e a menina Maria Julieta.

Em dezembro passado, dia 12, publiquei aqui no blog um desenho feito pela filha de Carlos Drummond de Andrade, Maria Julieta, no qual a menina retratou o pai como de certo ele lhe parecia. Um ser alvoroçado, de pernas para o ar e cabeça avoada.
Esse era o desenho:


Carlos Drummond de Andrade visto pela filha Maria Julieta.


Além da maravilha do traço infantil, com soluções inusitadas e muita graça, o desenho me colocou na cabeça a impressão de que me lembrava alguma coisa. Pois dia desses, folheando um livro a respeito de Pablo Picasso, lá estava o famoso e genial O acrobata, de 1930.
A mesma agilidade, o mesmo gestual, a mesma vivacidade. Como se sabe, Pablo Picasso era um exímio desenhista já aos 11/12 anos. "Eu desenhava como Rafael", dizia ele, que não via limites para seu ego. O mais interessante é que ele também disse, muito tempo depois: "levei anos para voltar a desenhar como criança". O resultado é esse que está abaixo. As aproximações com o desenho de Maria Julieta são muitas e deliciosas:
Embora um retrate o ar destrambelhado de um poeta e o outro o contorcionismo tenso de um acrobata, nos dois há a mesma transfiguração do que se chama de realidade. A mesma liberdade expressiva.


O Acrobata, quadro de Pablo Picasso, 1930.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Sobre o anjo da guarda


Cético, com o tempo ele acabou ficando pessimista. Pessimista, não. Odiava a palavra pessimista. Dava azar. Era um otimista, embora cauteloso. Um otimista não ingênuo, apenas isso.
Mas o seu saldo, digamos, era bom e ele acabou concluindo ser um sujeito de sorte. Nenhum assalto em vários anos, nenhum arranhão no carro.
Foi quando passou a acreditar em Anjo da Guarda. Logo ele, cético, sem religião, sem crenças.
Como seria seu Anjo da Guarda? No livrinho de religião do colégio o anjo da guarda era alto, atlético, vestido de branco e tinha asas. As asas eram enormes. O olhar era doce e protetor. Não convencia, pensou o homem. Um anjo no século XXI não pode ser tão tranquilo, tão limpinho e de olhos azuis. Um anjo, nos dias que correm, seria meio estropiado. Asa caída, coberta de fuligem, a roupa escura, talvez estrábico. E nada de sandálias  – seu anjo usaria tênis. Velho.
Mas era um anjo e o protegia. Por isso resolveu fazer uma viagem de avião. Tendo a seu lado um anjo, criatura especialista em voos, era hora de acabar com o medo de voar. Três dias depois estava socado numa poltrona estreita, ao lado de um homem gordo e sorridente que, sem que nada lhe fosse perguntado, explicou que aquele seria o seu voo de número duzentos. O homem sorriu, feliz com seu recorde, e ele se assustou. Imaginou a notícia nos jornais do dia seguinte: “justo quando completava duzentos voos aquele homem foi surpreendido...” Não. Nada disso. Nada aconteceria. O avião estava apenas balançando. É normal. Olhou para o gordo, que sorriu e disse: não se assuste, é assim mesmo.
Onde estaria seu anjo? O piloto mandou que apertassem o cinto e a aeromoça veio pelo corredor espalhando sorrisos falsos. Iam atravessar uma tempestade, disse o piloto, só três minutos de turbulência. Mantivessem a calma. Três minutos. O céu escureceu. Raios. O gordo a seu lado comentou que aquilo estava indo longe demais. E ele, desastrado, disse:
- Tenho um anjo da guarda comigo, não se preocupe.
O gordo o olhou perplexo. O avião mergulhou na noite mais sinistra. O gordo pulou no seu braço:
- E o seu anjo? Como é o nome dele?
- Não sei, respondeu.
- Mas ele é seu anjo da guarda e você não sabe nem o nome dele?!
Jamais pensara nisso.
- Francisco, arriscou.
O gordo o fulminou:
- Francisco?! Isso lá é nome de anjo! Isso é nome de santo!
- Que posso fazer? É Francisco. Chico.
- Chico?! Você é maluco! – o avião pareceu escorregar ladeira abaixo, o gordo gritou pela mãe e o homem, que era cético, olhou o relógio e conferiu que já haviam passado os três minutos previstos pelo piloto. Ergueu os braços e esbravejou, também em pânico:
- Escuta aqui, ô! Agora, chega! Coloca esse voo em ordem!
Foi como se as nuvens fossem sugadas para o espaço sideral, levando com elas os raios, os trovões e as saliências nas quais o avião resvalava.
Fascinado, o gordo olhou para ele e perguntou:
- Como conseguiu?
- Consegui...?
- Nos salvar! Deter a queda do avião.
- Não fui eu. – apontou o alto-falante e disse: Foi ele.
- Ele quem?
Sentiu que não poderia contrariar o gordo. Admitiu:
- O anjo.
- Como é mesmo o nome dele? perguntou o gordo.
- Chico.
O gordo o abraçou e lhe deu um beijo na bochecha:
- Você é um anjo!