segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Leia um livro antes de ou depois de


 
Confesso que fico perplexo diante do número de títulos picaretas com os quais as editoras enchem as prateleiras das livrarias. Que fazer? Pela lógica do mercado, é isso mesmo. Sendo isso, pelo que dizem, o que a maioria dos leitores quer ler.
Dia desses, alguém me escreveu perguntando como poderia adquirir um livro de Jamil Snege, autor de textos refinados. Esse leitor já percorrera todas as livrarias de sua cidade sem nada encontrar – e não se trata de uma cidade pequena; trata-se de uma capital e de algum porte. Porte e pose, digamos.
Fui obrigado a explicar a esse sofrido leitor que, em primeiro lugar, ele procurara o livro no lugar errado. De fato, uma livraria é hoje o último lugar do mundo para se procurar um livro. Sobretudo livro que não pertença à tralha dos best-sellers ou não seja obra de alguma celebridade televisiva.
Onde procurar, então? A primeira opção é óbvia, mas não é levada em conta pela maioria dos leitores: ir ao site da editora e comprar pela internet. Simplíssimo. Telefone também serve. Seu livro será entregue em sua casa. Gostoso e quentinho, como uma pizza.
A segunda opção é cada vez mais usada pelos leitores desesperados: procurem num sebo. É nos sebos que encontramos os melhores títulos, tanto os clássicos quanto os editados há mais de um ano. Não insista com as livrarias. As pobres coitadas já não dão conta de vender livros de ocasião, de autoajuda, de “espiritualidade”, e você querendo que elas se ocupem com títulos culturalmente importantes. Como treinar para tanto atendentes pegos a laço e que jamais abriram um livro? Demais para uma livraria.
Falar em atendentes, dia desses aguardei quatro tentativas para que um deles digitasse corretamente Eça de Queiroz. Uma sucessão de equívocos. É Sá de Queiroz. Essa de Queiroz. Éssa de Queiroz. Sá de Queiroz. Foi quando soletrei. Saiu Eca de Queiroz, mas isso é culpa da configuração do teclado ou talvez mais uma ironia do escriba português.
Como passei a vida remando contra a maré – e já não me resta ânimo nem paciência para remar a favor – fico com uma pulga inquietante atrás da orelha. Por exemplo: há no mercado uma série de livros cujos títulos são variações a respeito da equação marqueteira seguinte: “1001 coisas a [incógnita] antes de morrer”.
A variedade é infinita: ler, viajar, conhecer, ver, rever, citar, esquecer. Imagino que venda horrores – horrores equivalentes às séries dos vampiros, monstros, extraterrestres, gnomos, espíritos do bem e do mal, com as quais as prateleiras também andam cheias. Sem falar nas joias do pensamento picaretamente correto que produzem bons conselhos e mediocridade ao alcance de todos.
Mas a equação marqueteira me deixa perplexo, repito. Na minha lógica simplista, tudo que qualquer ser humano possa fazer será necessariamente “antes de morrer”. Ou não?
Pois, remando contra a maré, vou em frente. E depois de morrer? Pronto, lá fiquei matutando para saber o que farei depois de morrer, eu que já nem sei o que fazer antes de.
Como aprendi com Oscar Wilde que se deve resistir a tudo, menos às tentações, concluí que gostaria de ler. Foi ao menos a primeira coisa que me passou pela cabeça. Portanto, havendo possibilidade de fazer algo após a morte, se lá no paraíso prometido não houver uma boa biblioteca, tô fora.
Me perdi. Queria comentar as tais coisas a fazer antes de morrer e me perdi, pois esse truque marqueteiro me parece aflitivo. Mais ou menos como aquelas mães que dizem aos filhos: come tudo que está no prato senão dou a comida para o cachorro. Então, a criança come. Uma competição com o cachorro, ou, para manter o clima dantesco do tema, com o Cão. Que está ali, na porta que se abre (ou fecha) para o além.
Então, vamos fazer o que? Ver, viajar, conhecer coisas. Acumular coisas. Amontoar coisas. Cidades em cartões postais ou em cartões de memória, onde ficarão sepultadas para sempre. Empanturrar-se de coisas vistas, ouvidas, faladas, comidas, bebidas. Que coisas? Não importa. Que sejam muitas coisas, que é uma maneira de projetar para após a morte um mundo igual ao fantástico mundo do consumo que se viveu antes dela. Tudo vale a pena se a pança não é pequena, deve ser o lema.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O conhecimento de Anatol Kraft

Levo ao conhecimento dos amigos e seguidores desse blog que, através das editoras Criar Edições e Insight lancei recentemente meu novo romance, O conhecimento de Anatol Kraft, que já se encontra a disposição dos interessados nos sites das editoras (www.criaredicoes.com.br e www.editorainsight.com.br).

Transcrevo abaixo o release divulgado pelas editoras. Quem ajudar a divulgar junto a seus amigos, ganhará como prêmio um paradoxo inédito de Anatol Kraft, especialmente bolado para a ocasião... 

Agradeço a todos.



O conhecimento de Anatol Kraft - release

Sétimo romance publicado por Roberto Gomes, tem como personagem central a figura de um imigrante alemão, que chegou ao Brasil na primeira metade do século XX, depois de circular por vários países da Europa. Criatura dotada de um senso de humor peculiar, capaz de paradoxos a cada frase, Anatol, na sua busca de compreender a experiência humana, se encontra perdido entre o gozo estético, a militância política, a polêmica cultural mais ou menos inútil e a busca do prazer puro e simples.
Nas palavras do crítico literário André Seffrin, que escreve o texto de apresentação do livro, “Anatol Kraft chegou ao delírio de imaginar que a vida fosse dividida em parágrafos, palavras, letras. O mundo não passaria enfim de um trepidante romance: quanto mais delirante, mais verdadeiro mundo, com personagens reais porque absurdos, exagerados, impossíveis”.
No inesperado quarteto que se estabelece entre Anatol, com mais de setenta anos, e os jovens Henrique, Marina e Tereza, o romance de Roberto Gomes abriga dentro dele mesmo outro livro, escrito por Anatol, chamado Do outro lado do mundo. Desse jogo de espelhos o romance tem, no dizer ainda de André Seffrin, “um enredo moldado à maneira de novela ou conto russo do final do século XIX, em que o domínio pleno da arte narrativa e personagens com força vital não são de fato os únicos atrativos”.
O quarteto amoroso, no entanto, não é apenas uma ciranda afetiva e sexual. Trata-se da busca de um sentido perseguido pelos quatro personagens. Busca destinada ao fracasso, pois, como repete Anatol Kraft ao longo do romance: “prever o passado é uma arte dificílima”.

domingo, 9 de outubro de 2011

Cuba antes e depois de Fidel




Noturno de Havana (Ed. Seoman) me lembra outro livro a respeito da ilha de Fidel – Viagem ao crepúsculo (Ed. Casa das Musas), do jornalista pernambucano Samarone Lima sobre o qual escrevi há cerca de um ano. Noturno é do jornalista norte-americano T.J.English, autor com alguns prêmios no currículo. Não é um livro brilhante e a edição brasileira tem uma desvantagem: a tradução é sofrível e a revisão é troglodita. Mesmo assim, povoado de personagens hoje míticos – Albert Anastasia, Lucky Luciano, Meyer Lansky e, que não se perca pelo nome, Santo Trafficante, tendo como atores coadjuvantes nada menos que Frank Sinatra e George Raft – o livro de English merece ser lido.
O que pode ligar essas duas obras é o que as afasta no tempo. Viagem ao crepúsculo, de Samarone, é pós-Fidel: fala dessa Cuba que o mundo acompanha há cinquenta anos e que para muitos de nós foi objeto de debates acalorados, quando não de pugilatos explícitos. Samarone mostra um país que, depositário de tantas esperanças, se desfez sob o tacão do autoritarismo, do dirigismo e do sectarismo. Um sonho desfeito. Num país como o Brasil – onde nada se discute, onde ninguém toma posição intelectual sobre nada, motivo pelo qual os debates sobre Cuba costumam não passar de uma descarga convulsiva de preconceitos – ilumina os impasses a que chegou a Cuba de Fidel.
Já o livro de T.J. English se encontra na outra ponta da história: pré-Fidel. Trata do sonho da uma ilha tropical onde tudo é permitido – a Cuba dos cassinos sob o controle da Máfia, o país de Batista, o ditador fanfarrão, visto com bons olhos pelos EUA. Um mundo de fantasias, de luzes e delírios, de boates e shows, de grandes festas, de jogatina, com a música de fundo sob a batuta de Pérez Prado e sua orquestra.
Essa Cuba pré-Fidel foi gestada muitos anos antes por duas figuras do submundo: Lucky Luciano e Meyer Lansky. Luciano, que vivia contrariado seu exílio na Itália, chegou a Cuba para se reunir com Lansky, um baixinho de 1,60m também conhecido como “Little Man”. Encontraram-se no Hotel Nacional e redesenharam seus antigos planos.
Perseguida nos EUA, a Máfia tinha como objetivo se estabelecer em Cuba como base de ações criminosas, plano que vinha dos anos 20, quando se tornara rota para o tráfico ilegal de bebidas. Luciano e Lansky não foram os primeiros mafiosos a chegar a Cuba. Al Capone teve essa primazia. Ele gerenciou seus negócios entre charutos, assassinatos e audições de Enrico Caruso, seu cantor preferido.
No entanto, é com Lansky que essa Cuba florescerá nos anos dourados de 1952 a 1959. O país gozará então de um crescimento extraordinário. Grandes hotéis-cassino, boates, turismo, estradas, luzes de néon, mambo, drogas e sexo. Tal “crescimento”, no entanto, serve apenas para mostrar que a festa se destinava a uma minoria de estrangeiros e nacionais agregados, além de uma multidão de turistas. A grande massa da população estava à margem, vivendo na miséria, em casebres, sob o tacão de Batista, “El mulato lindo”, que amealhava um milhão e meio de dólares mensais para manter o quintal em ordem.
Estava armada a festa dos anos dourados de Cuba, a projetada Monte Carlo do Caribe. Foi nesse ponto, o país mergulhado em corrupção, tráfico e jogatina, que apareceu Fidel, de início ignorado por Batista e pelos mafiosos, que não o levaram a sério até o último momento, quando fugiram da ilha levando dólares em maletas e abandonando fortunas acumuladas com base em atividades criminosas. Não foi sem motivo que Rolando Masferrer, matador de aluguel e senador cubano, tentou por duas vezes matar Fidel. Depois, quando a situação já estava perdida, Lansky – que ofereceu prêmio de um milhão de dólares para quem matasse Fidel – fez vários projetos de assassiná-lo, de comidas envenenadas a explosivos em charutos, mas já era tarde.
Pois entre essas duas Cubas, encontramos Fidel, que deu fim à festa do crime organizado. Mas Cuba não se tornou o paraíso sonhado pelos criminosos nem o paraíso socialista sonhado por Fidel. Continuam lá, apesar de avanços em áreas restritas, a miséria, o atraso, o espírito ditatorial, a liberdade cativa, as prisões arbitrárias e algumas coisas tristes e comoventes em seu primarismo. Cinquenta anos após a revolução, Cuba anuncia medidas que nos fariam rir se não escondessem tragédias: os cubanos poderão a partir de 01/10/2011 vender ou comprar seus carros! Talvez um daqueles cadilaques nos quais Albert Anastasia fumava charutos e mandava atirar em quem o aborrecia.