domingo, 30 de dezembro de 2012

Os brasileiros que nos orgulham



Niemeyer - desenho Roberto Gomes (2005)


Estávamos tão acostumados com a presença de Oscar Niemeyer que chegamos a nos convencer de que era imortal. Não no sentido figurado, daquela imortalidade postiça de que pensam gozar os acadêmicos, mas duma imortalidade de fato e de direito, em carne e osso. Ele seria imorrível, digamos. Mas, cumprindo a premissa do silogismo que postula ser todo homem mortal, Niemeyer morreu.
E lá ficamos nós numa orfandade avassaladora.
Mas de que orfandade se trata? Não da perda de um homem e de seus feitos, mas de toda uma época e das realizações que ela tornou possíveis. Por exemplo: um tempo em que ainda éramos adolescentes e havia um presidente inteligente, de humor refinado, além de bom dançarino de valsas, em contraste com as carrancas ferozes dos militares da época da ditadura. Ou em contraste com outras carrancas posteriores, ora boçais, ora vociferantes, ora de boca dura.
Um amigo arquiteto anda desde então inconsolável, suspirando saudoso a lembrar de fatos relacionados ao período em que entrou para a faculdade. O motivo é simples: foi fazer arquitetura inspirado em Niemeyer.
Da arquitetura à bossa nova, quantas vocações nasceram naquele momento? Confesso que também imaginei um dia fazer arquitetura, mas descobri que, além de ter outros interesses, meu único ponto a favor era o gosto pelo desenho. Para chegar ao curso de arquitetura deveria enfrentar provas de física e matemática. Fui cantar em outra freguesia.
Mas a morte de Niemeyer não pode ser lamentada como fato em si, já que ele viveu gloriosos 105 anos e sua vida foi completa. E não se pense que não lamento equívocos seus, o mais grave sendo a ortodoxia marxista, o que o coloca fora de foco em certos momentos. O que me veio à mente não foi nenhuma frustração pessoal ou profissional, mas uma frustração mais profunda, que não deve ser só minha. Fiquei pensando em coisa mais incômoda.
Temos na história brasileira figuras notáveis que merecem respeito e reverência. São pessoas que unem talento e dedicação, dons naturais e disciplina, além de serem, na sua atuação profissional e pessoal, absolutamente íntegros, seres humanos de verdade. E, sendo seres humanos de verdade, têm seus eventuais defeitos, sem o que não seriam verdadeiros. 
Foi quando comecei a fazer uma lista – sujeita a contestações como qualquer lista do gênero, os leitores fiquem a vontade – destas figuras que contradizem o complexo de vira-lata que, segundo Nelson Rodrigues, assola a mente dos brasileiros. Dou, por falta de espaço, um resumo dessa lista.
Pensem na literatura. Além do onipresente Machado de Assis, temos Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Não é pouco. Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto. Que tal Guimarães Rosa? E Graciliano Ramos e Cecília Meireles?
Na música, Noel Rosa, Pixinguinha e Cartola. Villa Lobos, é claro. Tom Jobim, João Gilberto, João Donato, Moacir Santos, Vinicius, Baden. A Tropicália. Caetano e Chico e Gil e Aldir Blanc e João Bosco. O rock brasileiro. Pensem na quantidade de nomes que deixo de citar por falta de espaço.
Não só na criação artística temos figuras admiráveis. Há sociólogos como Florestan Fernandes, antropólogos como Darcy Ribeiro, historiadores como Sérgio Buarque de Holanda, além do multifacetado Gilberto Freyre. Diplomatas como o Barão do Rio Branco, empreendedores como o Barão de Mauá. Humoristas como Millôr Fernandes. De quebra, um José Bonifácio e um Oswaldo Cruz.
Chego a um exemplo máximo: o do açougueiro Luís Amorim, que criou uma biblioteca pública no seu estabelecimento, em Brasília, reunindo seus livros e outros que arrematou em doação. Sem tostão de dinheiro público, criou um espaço comunitário de leitura e debates, exemplo que gerou várias iniciativas semelhantes.
O leitor estará se perguntando onde quero chegar. Nem eu sei. Mas, ao pensar em tanta gente capaz de produzir conhecimento, arte, indústria, urbanismo e arquitetura, medicina e educação, me deixa furioso o seguinte: por qual maldição somos obrigados a perder tempo – na vida política e nos escândalos quase diários – com uns tipos de meia tigela, com essas ratazanas que se fartam com dinheiro público, com esses farsantes que engabelam a população, com esses anões morais e políticos que infelicitam o país?
Porque continuamos sendo governados por delinquentes?




segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O jornalismo segundo George Orwell

Georges Orwell e seu filho adotivo. (1946)




"Jornalismo é publicar algo que alguém
 não quer que seja publicado. 

Todo o resto é publicidade."


George Orwell







segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Laurinho e as mulheres





Laurinho Telefone é o especialista em mulheres aqui na Vila, o que é atestado pelo número de encrencas que contabiliza com o sexo feminino. Vários casamentos, namoricos de diversa ordem, tentativas vãs de convivência, encontros furtivos e clandestinos, de tudo ele coleciona – sendo que ao final, leva novos catiripapos em sua atribulada vida amorosa.
Mas ele não tem conserto. Agora, após novo e sonoro catiripapo que recebeu por esses dias, Laurinho anda resmungando pelos cantos, sofrido e melancólico feito um poeta romântico tuberculoso:
- As mulheres são assim mesmo. É da ordem universal!
Pouca gente ainda dá ouvidos a seus lamentos, mas o Cego Tião, dono do boteco e auditor por profissão e destino, pergunta, só para deslanchar o papo:
- Assim como, Laurinho?
- Assim, ora. Assim como elas são. Piscam, dão gingadas, se mostram, sorriem, insinuam, são deliciosas, passam pertinho da gente e... – as mãos da Laurinho, também conhecido pelas encenações mímicas, se perdem no ar.
Cego Tião, limpando o balcão com um pano sujo, resmunga:
- ...e o quê, Laurinho?
- E somem. Fogem. Desconversam.
Laurinho fez um silêncio soturno e olhou longamente pela janela. Cego Tião, que talvez não seja dado a essas sutilezas por não olhar através de janelas, cortou de bate pronto:
- Cê tá muito chorão.
Laurinho deu um salto da cadeira, ameaçou disparar porta afora, mas achou melhor voltar e liquidar com o resto de vodka em seu copo. Refeito com o gole da bebida, disparou na direção de Tião:
- Ô sujeito insensível!
Tião, paciente, cruzou os braços sobre o balcão e perguntou:
- Está bem, o que aconteceu?
- Põe mais uma.
Dessa vez tinha sido a Nildinha, começou Laurinho. Ficaram juntos, foram ao cinema, ao parque, ao bailão de sábado. Três meses de rodeios, dois de amores e, súbito, ela encrencou. Não queria mais saber dele.
- O que será que as mulheres querem, Tião?
Lá no fundo do bar ouviu-se a voz monótona e ébria do causídico da Vila, o dr. Pamphilo Assumpção Datavênia:
- Sabem que o Freud perguntou a mesma coisa? O que querem as mulheres? Was will das Weib? – e arrematou: Não encontrou resposta.
Os dois, ofendidos, desprezaram a intervenção erudita do bêbado e retomaram a conversa:
- Casar. Eu te disse quando você apareceu aqui com a Nildinha. É daquelas que casam. Te cuida.
Era verdade. O cego advertira. Laurinho baixou a cabeça, mas reagiu:
- Pois agora chega! Chega de mulher!
Foi dizer isso e entrou bar adentro uma jovem metida num vestido curto, vermelho, sapatinho branco. Laurinho levantou os olhos e conferiu o restante. Era esplendorosa.
- Que quer essa mulher? perguntou Laurinho, muito cavalheiro.
Ela sorriu. Queria um pacote de café e algumas balas.
- Deixa comigo, disse Laurinho, pulando para trás do balcão. Apanhou o café, colocou as balas num saquinho branco, entregou a ela com um sorriso: Uma nova moradora da Vila merece um atendimento de primeira, declarou.
A moça sorriu. Laurinho pensou: tá no papo.
- Mora aonde?
- Ao lado da farmácia.
- Pois eu estava indo pra lá. Posso acompanhá-la?
Despediu-se de Tião ordenando que colocasse a bebida e as compras da moça na sua conta.



quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Enfim, o Ali Babá entre os quarenta ladrões



Fernandel em Ali Babá e o quarenta ladrões

Está ficando completo o relato da farsa do Mensalão.
Há uma linha muito nítida que conduz, lá do assassinato ao prefeito de Santo André, Celso Daniel, até a ameaça que Paulo Okamotto teria feito a Marcos Valério, passando pela grana do escândalo dos Correios, o Mensalão, etc. etc., não vou repetir a enfiada de crimes que aconteceram pelo caminho.
Ao menos assim me parece, eu que já fui um leitor fanático de romances policiais. Nesse caso, não temos nenhuma demonstração lógico-matemática à maneira de Sherlock, nem uma soma de pistas materiais e empíricas das que abusava Agatha Christie, mas uma nuvem confusa que aos poucos vai se tornando nítida e óbvia, como nos romances de Simenon. Como sempre preferi Simenon, estou satisfeito.
Quando começou o julgamento do Mensalão, escrevi aqui que já tínhamos os quarenta ladrões, faltava o Ali Babá.
Agora não falta mais ninguém.




domingo, 2 de dezembro de 2012

1895, um ano de lascar

Rio de Janeiro em 1895 - Estação D. Pedro II


Rua de Lancaster em 1895












Em abril de 2003 publiquei uma crônica a respeito dos feitos notáveis realizados nesse fantástico ano de 1895, uma das minhas manias, que não são poucas. Acho, contra todos os calendários, que é nesse ano que começa o século XX. Escrevi então que nele surge o cinema, o voleibol, a ideia do descartável, a publicação de um marco da psicanálise, Estudos de Histeria, de Freud e Breuer, e, last but not least, é fundado o Clube de Regatas Flamengo, o que bastaria para justificar um ano cheio de graça.
Volto ao tema para dar vasão a uma pequena parte da montanha de anotações que acumulei sobre esse ano, esperando que os leitores se divirtam tanto quanto os baianos que, aproveitando ocasião tão benfazeja, deram expansão a seu espírito festeiro desfilando o primeiro afoxé em Salvador, chamado Pândegos da Folia. Sete anos após a abolição da escravatura, notem bem.
Falando em baianos, lembremos que um dos mais famosos, Rui Barbosa, volta do exílio em 1895, para onde o mandara Floriano Peixoto, por apoiar a Revolta da Armada. Rui desancava o governo através de artigos que escrevia no Jornal do Brasil e de pronunciamentos na tribuna do senado. Retorna de Buenos Aires já no governo de Prudente de Morais, retomando suas atividades no Senado e exigindo anistia aos revolucionários federalistas e a todos que foram punidos por Floriano. Como se vê, Rui tinha qualidades mais importantes do que conhecer regras gramaticais e escrever frases quilométricas em ordem inversa, o que deu origem ao estilo torturado com o qual nos brindam juízes e advogados, imaginando dar demonstrações de sabedoria e estilo refinado.
Pois é no ano de 1895, ainda no domínio das desavenças políticas, que o Presidente dos EUA, Grover Cleveland, chamado a decidir a Questão das Missões, deu ganho de causa ao Brasil. Daí resultou o nome da cidade de Clevelândia e, mais adiante, uma disputa entre Paraná e Santa Catarina que terminou em grossa pancadaria.
No outro extremo do Brasil, os bubalinos (ou, no popular, búfalos) da raça Mediterrâneo, chegam à Ilha de Marajó vindos da Itália, tendo sido recebidos cordialmente – já que búfalos adoram água – por chuvas intensas, tanto em impetuosidade quanto em duração, obrigando a transferência da procissão dos Passos por quatro vezes. A procissão acabou se realizando na primeira tarde em que houve uma estiada e os búfalos, como se sabe, ficaram por aí e cresceram e se multiplicaram.
Com ou sem chuvas, mas pensando nos tempos tempestuosos que corriam, Fontes, Sóter e Escobar fundariam, em Santos, um centro socialista, responsável pela publicação do jornal A Questão Social, ao mesmo tempo em que o alto preço do café nos mercados internacionais, que neste ano chegou a valer 13$475 a partida de 10 quilos, influenciava diretamente a quantidade de transações imobiliárias.
E, sendo igualmente um ano santo, em 1895 o pequeno grupo que se formara em torno de Amabile Vígolo – mais tarde conhecida como Irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus – que havia se transferido a Nova Trento, recebeu a aprovação do Bispo de Curitiba Dom José de Camargo Barros, com o nome de Filhas da Imaculada Conceição. Irmã Paulina se tornaria a primeira santa brasileira, um encargo dos mais pesados, convenhamos.
Mas esse foi um ano decisivo também para a ciência. Vejam o que escreveu, em 1972, J. Allen Hynek, a propósito da polêmica entre William James e seus colegas de Harvard: “O tempo vingou-o inteiramente. Ainda que ele não pudesse suspeitar nem de leve, o ano de 1895 viria a ser o primeiro dos ‘trinta anos que abalaram a Física’, que viu a ‘teoria da relatividade’, o ‘quantum mecânico’, e muitas novas teorias interligadas derrubarem o alicerce da Física clássica, que era aceita por todos os físicos como a pedra fundamental do universo”.
Não bastasse, em 1895 foi reconhecida a raça alemã de cães Dobermann, talvez para contrabalançar o Pincher, que surge na mesma data. Ignoro as razões, sejam astrológicas, econômicas ou metafísicas, mas o mundo estava em profundo processo revolucionário.
Que ano!

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O pouso do Cid Gomes, as algemas do Daniel Dantas e o estado das cadeias.





Isso vai dar um bode danado, pensei eu, o ingênuo.
Acontece que no dia 9 passado o governador do Ceará, Cid Gomes, desceu de jatinho no aeroporto Internacional de Salvador, e, ansioso em chegar ao encontro com a presidente Dilma, ordenou que o piloto parasse seu avião no meio da pista, atravessando 45 metros a pé, disparando pânico entre controladores de voo e nos aviões que aguardavam na fila para aterrissar.
O fato é singelo e mostra, em profundidade, como os poderosos consideram as leis e códigos que vigoram no país. Seja uma fila, uma pista de aeroporto, uma concorrência pública, eles atropelam leis e códigos e fazem o que lhes dá na telha, movidos por prepotência e ego inflado. Estão acima das leis.
O caso, que eu imaginava que fosse desencadear amplas discussões, não teve repercussão alguma, ainda que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) tenha declarado que iria “apurar as responsabilidades”. Como sempre.
Agora, juntemos a esse exemplo singelo outro fato já apagado da memória nacional. Quando o banqueiro Daniel Dantas foi algemado ao ser preso pela operação Sathiagara, levantou-se polêmica enorme. Discursos, entrevistas, debates no Congresso. O STF resolveu, com Gilmar Mendes na vanguarda, que algemas não podem ser usadas, pois o suspeito ainda não foi julgado etc. O fato de que desde sempre ladrões pobres são algemados nunca comoveu a deputados e senadores e juízes. Mas um dono de banco ser algemado, jamais!
Como se não bastasse, agora se agita novo burburinho entre os políticos. Trata-se do estado das cadeias no Brasil. São imundas. Sórdidas. Desumanas. O ministro da justiça, José Eduardo Cardoso, sob cuja jurisdição elas estão, disse, fazendo pose de homem muito espirituoso, que preferiria a morte do que ser trancafiado nelas. Comovente, não é?
Pois o ministro e outros só passaram a se preocupar com o estado lamentável das prisões após o STF condenar alguns de seus companheiros. Desde sempre as prisões brasileiras foram a calamidade que todos conhecemos, mas só agora suas excelências se preocuparam com o assunto. Tadinhos dos companheiros que forem trancafiados, não é mesmo? Como colocaremos Zé Dirceu numa cadeia? Seria cruel demais. Tese subjacente: melhor seria prisão domiciliar.
Assim as coisas giram no país. Todos os que amealham uma nesga de poder se sentem acima do bem e do mal e das normas aeronáuticas e terrestres. Acham que as leis são para os outros. Que seus punhos delicados não devem ser violados por algemas. E, se forem em cana, deveremos providenciar cadeias perfumadas com serviço de quarto de hotel cinco estrelas para os companheiros.
Eu fui ingênuo em achar que o caso de Cid Gomes iria desencadear grande polêmica. Mas uma coisa eu tenho escrito há muito tempo: somos governados por delinquentes. Os comportamentos dos políticos e das classes dirigentes brasileiras são transparentes e não deixam dúvidas. Quem manda está acima das leis e o populacho que se lixe.



segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O que valerá a pena guardar?






Algumas de minhas obsessões – e são muitas – incluem antigas capas de LPs, a máquina de escrever portátil no qual batuquei durante anos, um rádio de cabeceira que me acompanha há quatro décadas e, é claro, meus livros. Obsessões.
Isso me leva a pensar na natureza das coisas que costumamos guardar. Por exemplo: as capas de certos LPs – e tenho algumas na memória, além daquelas que guardo comigo – eram muitas vezes obras de arte. Valiosas não apenas por embalar os discos, não raro iam parar nas paredes como se fossem quadros. Lembro-me de algumas, que datam de 1963, quando Aloysio de Oliveira criou a gravadora Elenco, revolucionando, entre outras coisas, o visual das capas. Um dos criadores das capas era César Vilella e o fotógrafo chamava-se Chico Pereira. Os dois deram caras identificáveis e definitivas a discos de Tom Jobim, Maysa, Vinícius, Nara Leão, Baden, tantos outros. De longe se sabia que era um LP da Elenco. A cara da bossa nova. Reproduções dessas capas foram dependuradas em paredes de bares, de quartos de adolescentes, de diretórios estudantis, chegando, no final de 2008, às paredes do Instituto Tomie Ohtake. A glória de um museu. Criações refinadas, soberbas.
Tudo isso pode parecer nostalgia, mas não é. Hoje eu olho para as capas de CDs e DVDs e fico tentando descobrir por qual razão, mesmo quando são boas produções gráficas, nada convida a serem guardadas como obras de arte independentes do conteúdo musical que abrigam.
Há nelas algo de assumidamente passageiro, algo que convida ao descarte. O mesmo acontece com os equipamentos nos quais escrevemos, notebooks ou micros de mesa. Quem pensaria em guardar um micro num museu por ter sido usado por algum escritor? No entanto, os museus guardam máquinas de escrever e canetas que pertenceram a romancistas e poetas. Duvido que se guarde algum notebook. Eles são – por mais que facilitem a vida de quem escreve – algo programado para morrer. Descartáveis.
Um notebook é apenas um notebook igual a qualquer outro notebook, enquanto uma máquina de escrever é única, exclusiva, marcada para sempre pelos dedos que a batucaram durante uma vida. A máquina de escrever guarda segredos das obras literárias que ajudou a criar.
Assim, nada de nostalgia. Já defendi, mais de uma vez, o livro digital de bobagens que são ditas a seu respeito. É um equipamento notável porque pode conter uma biblioteca e permite diferentes acessos. É leve, prático, simples – quase um livro. Mas não é um livro. Quem pensará em guardar um e-book num museu? Num museu de informática, tudo bem. Mas guardaríamos um tablet no qual algum poeta lia seus autores preferidos? O tablet, ao contrário do livro, não consegue ser ele próprio uma obra de arte integrada a seu conteúdo: o texto é nele mera informação, não criação gráfica. Não tem autonomia alguma.
Até porque os arquivos digitais têm um limite de uso. Hoje podemos consultar livros impressos no século XVI. Um arquivo digital, com poucos anos, já não pode ser aberto, já não circula nos novos equipamentos, já não é entendido por programas recentes, se degrada, morre fácil. O impresso em papel – por mais que se fale na fragilidade do papel – tem uma vida muito mais longa do que os bytes de um arquivo.
Vejam o caso de meu rádio de cabeceira, companheiro de quatro décadas. Não me desfaço dele. Bem cuidado, funcionará por muitos anos. Já um walkman, nascido no início da década de 1980, é tido como imprestável. Seus sucessores aí estão, todos marcados pela mesma fragilidade: ninguém se atreverá a guardá-los. Não rodarão mais ou não poderão ler novos arquivos.
A razão é essa: o mundo digital – que facilita nossa vida enormemente – traz em sua própria concepção uma data fatal. Uma capa de CD ou DVD pode ser muito bem bolada, mas jamais será dependurada numa parede. Um tocador de MP3 é (ou já foi?) versátil, mas nada o transforma em objeto único – é apenas mais um. Um notebook jamais incorporará o jeito e as manias de quem o usou. Um tablet jamais será um livro, pois um livro pode ser uma obra de arte ele mesmo.
Note-se que equipamentos digitais não envelhecem pela ação do tempo, como se dá com tudo o mais. Envelhecem porque trazem embutido neles o que os consome: serem os últimos de uma fila, a mais nova versão. O que é fatal.
Por isso certos objetos guardam uma permanência intrínseca, indo além de seu tempo, enquanto outros têm vida breve.





terça-feira, 13 de novembro de 2012

Um fenômeno, aliás, dois – Cauby Peixoto e Ângela Maria



Cauby Peixoto e Ângela Maria

Fui ao show de Cauby e Ângela Maria, sábado, dia 10/11, na Boca Maldita. No meio da multidão – 18 mil, segundo dizem – lá estava eu, sabendo a letras de todas as músicas, assobiando e aplaudindo, cantando como se soubesse cantar.
Confesso que fui ao show com o coração apertado, desejando reviver grandes alegrias mas temendo levar um susto. Aqueles dois seriam os mesmos?
Bastou aquele homem alto, vestido de negro, frágil e de andar hesitante, de expressão tensa, pisar no palco para que a multidão explodisse. Às favas com a idade, com os problemas de saúde, às favas com o silêncio da mídia com relação aos grandes cantores brasileiros. Todos ali – e eram de todas as idades – queriam ouvir aquelas duas vozes.
E as duas não decepcionaram. A voz de Cauby (81 anos) continua com a mesma qualidade, uma potência incrível, um virtuosismo que só os cantores excepcionais conseguem atingir. De Ângela Maria (84 anos) vale o mesmo: a clareza de dicção, a voz que flutua sem esforço, a emoção exata.
É claro que chatos poderão dizer que já não são os mesmos. Ora, os chatos é que são sempre os mesmos. Os grandes cantores, como todos os seres humanos que amamos e que são capazes de nos fazer amar, envelhecem, mudam, já não são os mesmos. São outros, melhores, dominam sua arte apesar de todas as dificuldades que a vida colocou em seus ombros. Os gestos de Cauby são lerdos e breves, a movimentação é pouca e cuidadosa, a postura é rígida. Mas a voz segue belíssima.
Cauby e Ângela, para mim, que era menino quando eles já faziam sucesso, são criaturas míticas. Minha mãe cantava todas as músicas de Ângela Maria, com quem, num certo momento da vida, chegou a se parecer. Cauby era não apenas a voz, mas um novo tipo de cantor, um comportamento irreverente, um astro, um farsante encantador. Dois mitos.
Afinal, todos precisamos de mitos. É através deles que realizamos as proezas mais raras. Eles nos mostram o poder da arte como afirmação da vida. Contra tudo, seja a mediocridade, a inveja, a violência, a hipocrisia, o envelhecimento, a morte, o grande artista nos brinda com essa mágica que nos permite viver mais e melhor.
As vozes de Cauby e de Ângela Maria, de Elis Regina e Billie Holyday, um improviso de Miles Davis ou Chat Becker, nos fazem viver outras vidas, melhores. 
Foi uma farra notável. Se você estava entre os 18 mil, sabe disso.


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Acabou a temporada de caça ao eleitor - não ao voto obrigatório




Segunda feira passada acordei pensando: acabou. Confesso que em seguida me senti meio culpado, um tanto cruel. Esqueci o assunto e fui fazer meu café.
Mas, quando sai para comprar pão, encontrei um vizinho sorridente. Ele me cumprimentou, com ares de triunfo:
- Acabou!
Já não me senti tão cruel. Mas fiquei pensando na razão pela qual festejávamos o fim da campanha política. Pode ser óbvio: nossa paciência chegara ao limite. Mas não é tão simples. Por isso arrisco duas explicações, talvez três.
Uma é o voto obrigatório. Trata-se de uma distorção violentíssima. Obrigar a votar é típico de país autoritário, no qual tudo deve ser legislado de cima para baixo. Um país no qual não se acredita em liberdade nem em educação nem em cidadania. Fora os iluminados legisladores, considera-se a população um bando de tontos.
Por outro lado, voto obrigatório abriga uma contradição nos termos. Voto é um direito conquistado, nas democracias, depois de muitas lutas. Sendo um direito, cabe a cada cidadão decidir se o exerce ou não. Caso contrário, deixa de ser direito, torna-se dever.
Vejamos. Todos têm direito à vida, mas ninguém pode ser obrigado a viver. Ou deveríamos condenar os suicidas à prisão perpétua? Tenho direito de ir e vir, mas posso abrir mão dele e viver num cantinho com um violão. Tenho direito de casar, constituir família, ter filhos. Mas não posso ser obrigado a isso.
Assim, obrigar a votar é negar o direito de votar.
Não bastasse, a obrigação gera currais eleitorais, conduz às urnas quem teme levar multa ou ser chateado pela burocracia. A venda de votos é decorrência da obrigação de votar. Candidatos desonestos compram votos oferecendo dentaduras, cadeiras de rodas, óculos, dinheiro. Um cidadão consciente, que vai votar por convicção, não venderá jamais o seu voto.
Mas há outro motivo que me fez festejar o fim da campanha política. Trata-se do modo como são feitas. Tudo se resume a uma avalanche de promessas. Um fará o metrô, outro construirá hospitais, outro abrirá os cofres do governo para isso ou aquilo, asfaltará ruas, inaugurará novas escolas etc.
Tivemos eleições municipais, mas em nenhum candidato se percebe uma concepção do que seja a cidade. Como funciona uma cidade? O que a move? O que é nela essencial? Que carências, urgências, exigências, ela, a cidade, tem? Que cidade é hoje Curitiba, com seu tamanho e problemas? É viável que cresça? Como?
Na falta de uma concepção de cidade, tudo se resume a promessas que são jogadas no vídeo como palavras de ordem oportunistas. Fico imaginando: se um dia um editor do programa eleitoral tomar um pileque e misturar o áudio e o vídeo dos candidatos, ninguém notará diferença. São todos iguais. Quem não quer mais escolas, hospitais, asfalto, calçadas, creches, transporte coletivo eficiente? O problema é saber como estabelecer prioridades, por onde começar, com que recursos e caminhando em que direção.
Ao invés disso, temos a enxurrada de promessas e o jogo de imagens. As campanhas valorizam o bom mocismo de um, os bons propósitos de outro, os feitos passados desse, a sinceridade daquele. Nada se discute. Aliás, isso se deve ao fato de que políticos são esponjas que absorvem ideias e projetos aleatoriamente sem avaliar no que elas implicam. Avaliam apenas se aquilo fará bem a sua imagem, rendendo votos. De pensar eles se dispensam, já que se dirigem a pessoas que, ao ver deles, não pensam. E quando um político ameaça pensar, sempre aparece um marqueteiro que o demove dessa temeridade.
Mais uma razão: o voto facultativo é praticado em cerca de duzentos e cinco países, entre eles, França, Inglaterra, Estados Unidos, Japão, Índia, Alemanha, Rússia, Itália, Canada, Espanha, México. Dos vinte e quatro países que adotam o voto obrigatório, treze estão na América Latina, o que é mau sinal.
O voto facultativo poderia ter um alto valor político e educativo: ajudaria a dissolver o tradicional espírito servil brasileiro, gerando a verdadeira cidadania.
Mas o prezado leitor já viu algum político ou partido defender o voto facultativo?
Pois é. É isso que cansa. Felizmente acabou.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Cinquenta tons – sexo miúdo e literatura medíocre




Como todos sabem, no momento uma equipe numerosa de redatores está produzindo a toque de caixa novos “romances”  “Cinquenta tons de...”. Tentando colaborar com essa série, que é uma espécie de sadomasoquismo para dondocas mimadas e frequentadoras de shoppings com carência sexual, forneço aqui alguns títulos e argumentos que poderão ser explorados livremente. Os redatores podem usar e abusar. Abusar, entenderam?

Lá vai:


Título: Cinquenta e um tons de caninha da boa
Argumento: Um não-intelectual de meia idade seduz uma dondoca de família tradicional e faz com que ela abandone a champanhe francesa pelos prazeres da caninha da boa. Ela sofre pacas, mas, como o livro é de sadomasoquismo, sente imenso prazer.

Titulo: Cinquenta tons de manchas cinzas
Argumento: Jovenzinha de tradicional família é atraída para um motel por um lutador de jiu-jitsu. Após ser coberta de tapas e beijos desferidos pelo seu raptor, ela aparece no shopping coberta de manchas cinza, deixando as amigas atônitas. Daí resultou o look fashion da coleção “Cinza e feliz”. O máximo!

Título: Cinquenta tons de tintura cinza para cabelos rebeldes
Argumento: Orientada pelo seu namorado, o sub-intelectual milionário Revolt Bill, a dondoca boboca deixa de pintar os cabelos. O cinza tomou conta de sua cabeça em tons diversos. A dondoca sofreu muito. Mas, tratando-se de sadomasoquismo etc., também gozou muito.

Título: Cinquenta tons de uma vida sexual desinteressante
Argumento: Jovem senhora, voltando de férias em Cancun, é obrigada por assaltantes contratados pelo bilionário intelectual McGranna, a assistir dez horas de filmagens dos melhores momentos de sua vida sexual. Todos, exceto a jovem senhora, dormem depois de quinze minutos de projeção. Ela, acordada, sofre. Mas goza.

Título: Cinquenta tons de massa cinzenta sem uso
Argumento: Jovem moçoila se esforça, mas não consegue entender o que o multibilionário intelectual que encontrou por acaso lhe explica sobre Wittgenstein. É quando ela exclama: “Não entendo nada! Que sofrimento!” E ele: “Chegamos onde eu queria...”

Em tempo: quem quiser saborear literatura erótica de primeira, leia os livros de Hilda Hilst. Quem quiser safadeza da grossa e divertida, leia Adelaide Carraro. Sem falar no pai de todos, Marquês de Sade. O resto é cinza.