segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Fantasias e grandes feitos de seu Liberato




Liberato Ambrósio Albuquerque não tem apenas um nome que soa antigo. Ele é todo antigo. E elegante. Usa roupas confeccionadas sob medida e jamais foi visto envelopado em calças jeans. Coleciona camisas refinadas e sapatos de verniz. Sobre os cabelos brancos, uma variedade divertida de chapéus.
A filha, Matilde, e o genro, André, o mantém sob vigilância, dado sua fama de extravagante. Quando enviuvou – e isso fazia muito tempo – chamou-os para dividir a casa com ele. Indicou as partes da residência onde eles poderiam fazer o que bem entendessem e aquelas em que ele era soberano.
Não dava trabalho, dizia a filha aos que se surpreendiam com o velhinho faceiro, contador de casos, a simpatia do bairro. No início da tarde, saia para se encontrar com amigos – e tinha muitos amigos – na associação de ex-funcionários do banco no qual trabalhara a vida inteira. Eram oito sobreviventes. Reuniam-se para lembrar, contar causos – normalmente já contados dezenas de vezes – jogar víspora, pif-paf, damas e dominó. Ou passavam tardes inteiras esticados em poltronas antigas, fumando em silêncio. Nada de lei antifumo naquele espaço.
- Aqui reina a liberdade, disse Liberato ao gerente novato que veio advertir quanto ao fumo. Argumentou que o mais jovem deles já passara dos 75 anos e gozava de boa saúde. O cigarro não incomodava a ninguém. E arrematou:
- Só cederemos à morte, essa ingrata que não negocia com ninguém.
E assim, sob a liderança anarquista de Liberato, seguiram ocupando a sala.
Ocorre que certo dia Matilde estranhou que ele chegasse em casa mais tarde do que o habitual. Não trazia o chapéu na cabeça, mas nas mãos, como um pandeiro, o que jamais acontecera. Os cabelos em desalinhos. Não pediu o copo de leite, como era seu hábito antes de deitar.
- Tem coisa, disse Matilde para o marido.
Só no dia seguinte tiveram coragem de perguntar por onde andara.
- Estive com o Adroaldo, disse ele, saindo porta afora.
- Que Adroaldo é esse? perguntou André.
- Um amigo dele... – Matilde não conteve o choro – Funcionário do banco. Morreu há uns dez anos.
Os cuidados foram redobrados. André chegou a segui-lo. Não descobriu nada demais, ele foi direto à sede do banco. Dias depois, Liberato chegou às duas da madrugada e deu com uma viatura na frente da casa, a filha e o genro passando aos policiais as características do velhinho desaparecido.
- Vocês não têm mais nada para fazer?! Parem de bobagens!
Liberato rumou furioso para a parte do casarão que lhe cabia. Matilde foi lhe pedir desculpas e perguntou com quem encontrara.
- Com o Anacleto.
Anacleto havia morrido há três anos.
- É a morte – Matilde disse a André – Minha mãe dizia que quem vai morrer começa a ver gente falecida.
Dois dias depois, Liberato voltou cedo para casa, o que também era raro. Mas desta vez veio acompanhado por uma senhora pequenina, muito branca, de cabelos um tanto revirados e roupas coloridas. Matilde reconheceu. Era dona Eulália, mãe de Anita, sua amiga de caminhadas no bairro. André se encantou com os olhos miúdos da velhinha, que pareciam não enxergar um palmo a frente do nariz. Liberato a ciceroneou pela casa, inclusive pela área onde era soberano, e voltou à sala com o anúncio:
- Vamos nos casar.
Matilde correu para a cozinha, pálida. André foi atrás:
- Essa Eulália existe mesmo? Não será uma falecida que está aí?
Matilde fez um café, que serviu ao casal de noivos. André não se conteve:
- E aqueles seus amigos, o Adroaldo e o Anacleto? Tem encontrado com eles?
Liberato cutucou Eulália, que sorria encabulada, os olhinhos míopes perdidos no ar.
- Estão mortos, meu rapaz. Inventei aquilo para ver se vocês se mancavam.
Casaram-se há um ano. E continuam felizes até hoje, o que, nessa idade, é quase para sempre.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

BBB - Bobos, Boçais e Bestas. E Mulheres Podres de Ricas, sobretudo podres




Houve um tempo em que se discutia Marshall McLuhan em todos os cantos da cidade, inclusive naquela fila de cinema, num filme de Woody Allen, quando o próprio McLuhan surge para calar a boca de um sujeito metido a conhecedor de sua obra. É hilariante a cena.
Hoje McLuhan já saiu de moda – pois existem modas na área do pensamento, como em tudo o mais – mas a televisão continua aí para cumprir o destino que lhe preconizou o insuperável Stanislaw Ponte Preta, o de ser “uma máquina de fazer doidos”.
Dia desses ligo a televisão e dou com uma coisa no ar chamada Mulheres Ricas. Confesso que não entendi. Imaginei um novo programa de humor – que costumam ser pavorosos, salvo o C.Q.C. Mas não era. Mulheres Ricas coloca no ar algumas mulheres – nem sei quantas – que estão entre aquelas que são chamadas de “celebridades”.  Como sou de um tempo em que celebridades eram Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, Anita Malfatti, Simone de Beauvoir, Rosa de Luxemburgo, Tomie Ohtake, Madame Curie, continuei sem entender.
As tais mulheres – que não vi ainda despertar nas feministas nenhuma reação crítica – fazem um tipo que lembra aquelas madames do Nelson Rodrigues, as que têm narinas de cadáver. Todas mostram visíveis remendos de botox, beiçolas paralisadas, riso de cachorro louco, maças de rosto que parecem furúnculos, além de peitões – não uso a palavra “seios”, por ser belíssima – injetados com silicone, que aqui em casa o encanador usou para vedar uma pia. Além disso, falam aos esguichos, produzem asneiras a cada frase e, como é padrão entre as “celebridades” do tipo, todas parecem imitar travestis, na voz e nos trejeitos.
Não bastasse, fui saber hoje (dia 17/janeiro) que houve um caso de polícia no BBB, com o que tomei conhecimento de que há mais uma edição dessa boçalidade no ar. Foi um caso de estupro, pelo que se registrou na polícia. Eis novamente algo que não entendo. Reúnem brucutus numa casa postiça, todos vestidos como se estivessem numa exposição de carnes, estrias e bundas, todos escolhidos pelo QI abaixo do nível do mar, elevados à condição de celebridades por um apresentador cínico e delirante, e esperavam o quê? Declamações de poemas de Rilke? Trechos de Shakespeare? Citações de Platão? Tinha que dar em estupro.
Tudo isso dá nojo e revira o estômago. Apesar do vaticínio de Stanislaw Ponte Preta, sou daqueles que não são contra o aparelho de televisão. Todos nós já assistimos coisas inteligentes, deliciosas e desafiadoras em televisão.  Enfim, nada contra o aparelho. Agora, essa programação de televisão feita para endoidecer, emburrecer, entorpecer, produzir brucutus, fabricar crentes em milagres ou crentes em governantes, essa precisa urgentemente de corretivos. Não em forma de censura, longe disso. Mas em protestos e análises críticas contra essa verdadeira política de imbecilização do ser humano.
Como diz um bêbado que frequenta um boteco aqui do bairro, “a gente merecemos melhor que disso”. Ele se refere a café frio ou cerveja quente, mas vale para o ser humano em geral.

domingo, 15 de janeiro de 2012

É o fim do mundo.



As comemorações do ano novo no bar do cego Tião duram dias ou semanas. Neste ano, por fatos que serão narrados a seguir, ainda não terminaram. É verdade que no dia três de janeiro ninguém mais aguentava em pé, exceto o próprio cego Tião, como sempre perfilado atrás do balcão, preparando bebidas e servindo pratos variados, acompanhado de seu porrete disciplinador – com o qual coloca ordem no ambiente.
Mas, depois de terem bebido todas e devorado todos os vidros de rollmops, as empadinhas de camarão e de palmito, os pastéis de carne e de vento, o boteco amanheceu lúgubre no dia três. Alguns dormiam jogados sobre as mesas, outros sentados na escadinha de madeira que dá para a casinha que fica nos fundos do terreno. Foi diante desse cenário que o cego Tião, resolveu acabar com os festejos. Deu uma pancada violenta com o porrete sobre o balcão e soltou a voz de trovão;
- Vagabundagem, acabou a farra!
Logo o boteco estava deserto, sob protestos furiosos. As moças convidadas sumiram porta afora. Laurinho Telefone, abraçado à última garrafa de pinga, esbravejou que aquilo não era democracia. Carlão Borracheiro arrastou-se até a porta e caiu duro no meio da rua. Nelsinho Quero-quero, o consertador de bicicletas e meia esquerda do time da Vila, levantou-se do canto onde dormia jurando que jamais voltaria àquela espelunca. Mas errou a porta, saindo pelos fundos. Não se deu por achado e se trancou na casinha, de onde só foi tirado por Ritinha Neves, que surgiu esbaforida, muito necessitada do lugar.
Quando tudo se acalmou, cego Tião acendeu uma cigarrilha e, ao soltar a fumaceira, percebeu que algo estava errado. Deu um giro pelo boteco, farejando.
- Tem alguém aí! Acho o disgramado e lhe dou um porretaço!
Na última mesa, o cego sentiu que havia um vagabundo dormitando. O ressonar do indivíduo inundava o ar.
- Fidélio! gritou o cego, que conhece a vagabundagem pelo bafo.
Fidélio, é preciso explicar, vem a ser um ex-sacristão, um ex-pugilista, um ex-marinheiro e atual ex-sorveteiro, constando essa como sua última profissão conhecida. Enrodilhado sobre a mesa, roncava desassossegado. Acordou com um olho só, o esquerdo, examinou o cego e seu porrete prestes a cumprir o prometido, e declarou:
- Seguinte, Tião. Daqui não saio.
- Como não? E o porrete?
- Pode dar a porretada. Tá autorizado. Assino por escrito.
O cego duvidou:
- Tás no teu juízo certo? Pensas que não sou capaz de te dar uma porretada? Eu já avisei. A festa acabou, vagabundagem.
Fidélio abriu o olho direito, não sem antes fechar o esquerdo, e disse:
- Por isso mesmo, Tião. Acabou a festa. A gente bebeu todas, comeu de tudo e acabamos onde? Onde? – no que emendou, apocalíptico, braços abertos: Onde?!
Tião desentendeu:
- Que história de onde?
- E você pergunta? 2012, Tião! O ano do fim do mundo. Calendário Maia.
O cego respirou fundo:
- E daí?
- Pois se o mundo vai acabar, até lá não faço nada. Vou esperar pra ver. Se acabar, acabou. Se não acabar, vou pensar no assunto.
Uma voz gritou da janela:
- Apoiado, caro colega!
Era o doutor Asclépio Data Vênia, o causídico da Vila, que liderou a invasão do boteco com ímpetos de revolução francesa.
- Vamos continuar, decretou Laurinho Telefone. Chama as moças, acorda o Carlão  lá na sarjeta, coloca mais bebida pra vagabundagem.
Feito um Luís XVI qualquer, apesar do porrete em punho, cego Tião voltou ao balcão na tarefa de servir cachaça e cerveja, além de salgadinhos e pastéis, sobras do dia 31.
Eis porque os festejos no boteco não terminaram. E devem continuar até o entardecer do dia anunciado pelos Maias, 21 de dezembro de 2012. Se o mundo bater as botas, danou-se. Caso contrário, mais um motivo para continuar comemorando.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Na cadeira do dentista ou do barbeiro



Barbeiros e dentistas são assemelhados. Roupas brancas, muito friso na camisa, limpinhos e formais. E são dados a teorias e grandes discursos.
Como entender que dentistas queiram bater papo conosco enquanto duelamos com aquele caninho que suga nossa saliva? Ou, quanto aos barbeiros, se tememos aquela tesoura afiadíssima tirando finos de nossas orelhas? E a navalha? E a broca? Como mexer um só músculo diante de tanta ameaça?
- Hum, hum – a gente rosna para o dentista, sem ter ouvido o que ele disse.
- Nada disso! – corrige ele – Nada disso!
- É verdade – concordamos, sendo essa a melhor tática.
Ele retoma suas teorias. Ficamos de boca aberta, o caninho sugando nossa saliva. Abre umas gavetinhas, cata novos instrumentos de tortura, uns pinos ameaçadores, e volta:
- O que você disse? – pergunta ele.
Não dissemos nada. Estávamos lutando com o caninho sugador.
Já os barbeiros são tidos como bons de papo. Tive um amigo que era um tímido profissional, avesso a todo contato humano. Só curtia música erudita e literatura clássica. Tinha horror de ajuntamentos, não gostava de futebol, jamais colocara os pés num estádio. Sempre de terno e gravata. Sapatos impecáveis e um guarda-chuva. Nenhum esporte. Preferia traduzir discursos de Cícero.
Pois um dia o encontrei empunhando um jornal de esportes.
- Que é isso? – perguntei.
- Vou ao barbeiro, disse ele.
- E daí?
Explicou, muito formal:
- Preciso bater papo com o barbeiro. Dia desses se ofendeu porque eu não sabia que o time dele ganhara o campeonato. Como tem o apelido de Gaúcho, achei que torcia pelo Inter, mas lá no sul existe outro time, o Grêmio. Eu não sabia. E ele é gremista. Também não sabia. Quase me mata com uma tesourada. Doutra feita – era dos poucos que ainda usavam “doutra feita” – me censurou por desconhecer o goleador do seu time. Desde então leio o jornal, decoro a classificação, memorizo o artilheiro. Como quem vai para um exame da OAB.
E, diante do meu espanto, completou:
- Já viu a tesoura que ele usa? Um perigo.
Foi quando me lembrei do meu barbeiro. Depois de várias tentativas inúteis de conversar comigo, ele mergulhou em devaneios:
- Sabe o que eu queria mesmo?
Parei de folhear uma dessas revistas que folheamos em barbearia. Ele me olhou através do espelho:
- Ganhar na loteria. Já pensou?
- Já pensei. Mas não adiantou.
Ele me olhou com reprovação, o assunto era sério, nada de gracejos. E resolveu podar minha sobrancelha, o que é perigosíssimo. Uma piscadela e... Ele continuou:
- Ganhar uns vinte milhões, certo? Melhor, vinte e cinco. Faço uma lista de parentes, dou um milhão para cada um. Mas – a tesoura estalou no ar – não vai ser assim na moleza. Empresto. Juros baixos, claro. Mas vou cobrar, pois eles têm que valorizar o dinheiro, fazer render, trabalhar. Nada de moleza. Dinheiro se ganha trabalhando. Não é certo?
- Certíssimo, concordei, de olho na navalha que ele empunhou.
- Depois, viajaria pelo mundo. Eu, as crianças e a patroa.
Antes de terminar o corte, ele já havia comprado um barco, feito uma excursão ao Betto Carrero, passado o Natal em Nova York. Na volta, participou do programa do Ratinho, adquiriu um camarote no Couto Pereira e deu uma volta olímpica no campo para comemorar a conquista da Libertadores.
- Seria o máximo, não seria? – e, sem esperar resposta, mandou que eu abaixasse a cabeça; ia passar a navalha no meu cangote.
Obedeci. Como diria o meu amigo dado aos clássicos:
- Discordar? Quem há de?