sábado, 23 de junho de 2012
Ninguém gosta do inverno. Nem os ursos.
O inverno é a pior das estações do ano, estou certo disso.
Uma amiga me disse que gostava do inverno para ficar ao lado de uma lareira. Expliquei que ela gostava de lareira, não do inverno. Um amigo argumentou que gosta do inverno para ficar trancado em casa, lendo. Bom, ele gosta da casa que tem e gosta de ler. Mas não gosta de inverno. Outro me disse que gosta do inverno porque nele as pessoas se vestem bem e com elegância. O certo é que ele gosta de boas roupas e de gente elegante.
Do inverno nenhum deles gosta.
Ninguém gosta de inverno.
A prova são os ursos que, apesar de toda a camada de gordura e pelagem de que dispõem, passam o inverno entocados e quietos, esperando que a estação acabe. Se os ursos gostassem de inverno, passariam essa estação saltitanto pela neve, felizes, tal como as banhistas de Matisse saltitam pelas praias ensolaradas.
Quanto a mim, nunca me interessou saber quando começa o inverno. Passo esses meses me perguntando: quando acaba?
domingo, 17 de junho de 2012
Violências nossas de cada dia
Um equívoco humano frequente
é privilegiar o indivíduo como culpado. Claro que é vasta a relação das ações
em que a culpa cabe aos indivíduos. Ocorre, como usava dizer o escritor João
Antônio, que há um porém.
Vejamos o caso da água,
da sua escassez e de seus gastos. Todos sabemos, e os ecologistas de plantão
nos alertam, que é justa a preocupação com as badernas que aprontamos no
planeta, entre elas o uso e abuso da água. Acontece que a ênfase nessa batalha
pela conscientização a respeito do problema se limita em grande parte a azucrinar
os indivíduos para que tomem banhos menos demorados, para que não deixem a
torneira aberta ao escovar os dentes, que não lavem o carro, a calçada etc.
Longe de mim dizer o
contrário. Devemos cuidar do consumo de água, está claro, seja no banho, ao
escovar os dentes ou lavar a calçada e o carro. O desperdício é grave e na
maior parte das vezes estúpido.
Mas tem um porém. Ainda
não se tornou uma convicção coletiva que o grande consumo e o grande
desperdício de água ocorrem em empresas, nas indústrias, em órgãos
governamentais que deveriam cuidar da água. São eles, por desleixo, ignorância
ou ganância, que desperdiçam em grande escala. Eis o porém.
O mesmo ocorre com o
trânsito. Hoje há no país uma campanha, justa e necessária, que busca diminuir,
nas ruas e estradas, uma mortandade que lembra catástrofes em tempos de guerra.
Campanha absolutamente necessária, é claro. No entanto, comete o mesmo
equívoco. Há uma ênfase quase única no motorista e seus descuidos, em especial
naquele que dirige bêbado. Ora, dirigir bêbado é um crime medonho que deve ser
punido com todo o rigor, está claro.
Mas há aqui um porém.
Não se destaca que a
indústria automobilística, as montadoras, as revendedoras, através da publicidade
maciça que veiculam na mídia – e mesmo o governo, incentivando essa mesma indústria
– continuam, no século XXI, a incensar a mitologia do automóvel nascida no
início do século XX. Ele é mostrado como símbolo de poder, força, possibilidade
de conquistas sexuais e domínio sobre os outros. Uma fonte de prestígio
ilimitado e de poder sem fronteiras, incentivando motoristas de miolos moles a
apossar-se de um volante com a convicção de que estão acima do bem e do mal.
Ainda circula pelas
televisões uma propaganda de um automóvel no qual o motorista se imagina um
privilegiado por ser o único a ter um carrão como aquele. Depois, pensa ser o
único que tem aquele carrão num planeta do qual outros homens e carros fora
banidos. Só sobraram ele e as mulheres, que o adoram, está claro. É o auge do delírio
narcisista e ególatra.
Está aí o porém. Esse
automóvel das propagandas, um bólido que rabeia, dá cavalos de pau, levanta
poeira, ultrapassa, atrai conquistas, é um incentivo ao crime nas ruas e
estradas. Penso que a indústria automobilística deveria ser levada a se
penitenciar dessa mitologia doentia. O endeusamento da velocidade e da força é pelo
menos tão criminoso quanto a estupidez do bêbado que sai dirigindo e matando.
Mas não se fala nisso. É
o porém.
Já os caminhões, pelo
tamanho, peso e velocidade, quando se envolvem em acidentes – frequentes, é bom
lembrar – causam tragédias enormes. Culpar o motorista? Certamente muitos deles
têm culpa. Mas há de novo um porém. A que condições eles são submetidos pelas
transportadoras e pelos distribuidores de fretes? Que tipo de estradas enfrentam?
Os estimulantes (rebites) que tomam são exigidos pelas regras perversas a que
são submetidos.
Mais um exemplo. A
violência nas escolas, agora apelidada de bulling.
Será que basta criminalizar o autor de abuso?
As escolas não são
organismos externos à sociedade. Elas são condicionadas pelas exigências sociais.
O porém é que tudo em volta dos jovens é oferecido como um espetáculo de força,
domínio e brutalidade. Os heróis de games e filmes raramente têm cérebro; são
equipados apenas de músculos, armas e pontapés. Serve-se aos jovens a luta e a
desforra. Seja em filmes, em games, nas novelas de televisão e no cotidiano incentivo
ao “sucesso” a qualquer preço. Vencer é o que importa. E é o porém.
Portanto, há que mudar o
hábito de jogar a culpa em indivíduos. É mais fácil, está claro, mas não
resolve nada. A doença é social.
sábado, 2 de junho de 2012
O Gordo, o Magro, o Alto, o Baixo
Em qualquer praia, sobretudo quando deserta ou em horas mortas, sempre surge
um Gordo. Não um Gordo qualquer, mas o Gordo. Materializa-se quando o movimento
é pouco e há certo cansaço no ar. Ele para em frente ao mar e exibe, poderoso, seu
perfil em arco: um logotipo que é uma linha reta que desce da nuca aos
calcanhares (ignorando a bunda), as mãos nas costas, a barriga avançando afoita
na direção das ondas. Ninguém sabe quem é o Gordo, o que faz, de onde vem. E
não se trata de uma comunidade de Gordos a se materializar em diversas praias
ao mesmo tempo, num sincronismo calculado. É um Gordo só. O Gordo. Ubíquo e solitário.
Nada se sabe sobre o que pensa e deseja. O Gordo é insondável, indecifrável,
enigmático. Olhos mortiços, aura zen. Único e múltiplo. Cria em torno de seu volume
uma área na qual não se pode penetrar. É o espaço do Gordo, que é maior do que
o próprio Gordo.
Tal espaço não o limita, pois o Gordo, com olhares penetrantes, apropria-se
da praia, do mar e das montanhas com uma insaciável vontade de domínio. O Gordo
sabe de tudo. Cria um centro em torno do qual o universo deve se reorganizar e indagar
dele, o Gordo, a explicação de todas as coisas.
Mas não representa qualquer ameaça. O Gordo não prejudica a ninguém, a
ninguém ofende, embora, por outro lado, não ajude a ninguém. O que não é uma
crítica. Aqui se fala apenas de suas aparições inexplicáveis e de seu
recolhimento meditativo. O Gordo é um enigma e os enigmas não podem ser
criticados. Só admirados.
O que faz na praia? Por que planta seus pés tão solidamente na areia?
Porque volta-se, em desafio, na direção de onde sopra o vento? O Gordo passeia
pela areia e jamais entra na água. Ocasionalmente molha os pés. No mais,
contempla. Ou seja, limita-se a ser apenas o Gordo. O que já é bastante.
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Já o Magro costuma se materializar nas esquinas ou nos corredores e
escadarias de repartições públicas. Atravessa a rua em saltos ornamentais,
antes que aquele homenzinho verde apareça no semáforo, vence os degraus em pernadas
ágeis que nos humilham. O Magro parece ser uma fonte infindável de energia. Está
em permanente estado de ebulição. Abre braços agitados, pede passagem, reclama
com o sujeito – sobretudo se for o Gordo – que vai quietamente a sua frente,
curtindo a paisagem.
O Magro não vê a paisagem. Tem ocupações excessivas para tanto. O Magro
articula planos a médio e longo prazos, sobretudo os de curtíssimo prazo. Imagina
que qualquer paisagem o deixaria imóvel feito palerma, o que faria com que
perdesse em poucos minutos um dos inúmeros empreendimentos que carrega em sua
cabeça. Cabeça grande, aliás. Os Magros – não pelo volume absoluto, mas pelo
volume relativo da cabeça comparada com o traçado esguio do corpo, têm cabeças
grandes, enormes. Os Magros pensam muito. Pensam demais. E se deslocam de forma
surpreendente. Não é possível prever o que fará um Magro – enquanto você tenta
prever, ele já está noutra.
O Magro não cabe em si.
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O Alto é um caso especial e raro. Hoje não tão raro, a população em geral
anda aumentando de tamanho. Mas é preciso notar que para ser Alto não basta
tamanho. É preciso ser Alto. O Alto espia das alturas, navega num oceano que
flutua acima dos demais mortais. O Alto nos olha de cima para baixo e dá giros
de 360 graus com seu pescoço privilegiado de periscópio: sabe de tudo que se
passa a sua volta muito antes que você possa subir num banquinho e olhar lá
longe. E costuma ter voz de trovoada, não a voz profunda e sinistra dos Gordos,
mas uma voz tonitroante, demolidora, daquelas que intimida microfone.
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O Baixo... bom, o Baixo, onde está o Baixo? O Baixo está em todos os
lugares, eis a verdade, pois manipula a arte de atrair todas as atenções, da
qual é exímio executante. O Baixo fala muito, fala rápido, dispara juízos em
todas as direções, domina todas as conversas, gira os braços feito hélices. E
corre muito, mais do que o Magro, pois precisa compensar o tamanho limitado de
suas pernadas. Enfim, o Baixo, quando você se dá conta, já foi e já voltou, já
subiu e já desceu, já entregou e já recebeu. É ágil e nervoso. Mas, exaurido
com tanta agitação, o Baixo súbito se enche de melancolia. Fica parado num
canto, murcho, sumido, ninguém o enxerga. Nada mais triste do que a tristeza de
um Baixo.
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