quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O pouso do Cid Gomes, as algemas do Daniel Dantas e o estado das cadeias.





Isso vai dar um bode danado, pensei eu, o ingênuo.
Acontece que no dia 9 passado o governador do Ceará, Cid Gomes, desceu de jatinho no aeroporto Internacional de Salvador, e, ansioso em chegar ao encontro com a presidente Dilma, ordenou que o piloto parasse seu avião no meio da pista, atravessando 45 metros a pé, disparando pânico entre controladores de voo e nos aviões que aguardavam na fila para aterrissar.
O fato é singelo e mostra, em profundidade, como os poderosos consideram as leis e códigos que vigoram no país. Seja uma fila, uma pista de aeroporto, uma concorrência pública, eles atropelam leis e códigos e fazem o que lhes dá na telha, movidos por prepotência e ego inflado. Estão acima das leis.
O caso, que eu imaginava que fosse desencadear amplas discussões, não teve repercussão alguma, ainda que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) tenha declarado que iria “apurar as responsabilidades”. Como sempre.
Agora, juntemos a esse exemplo singelo outro fato já apagado da memória nacional. Quando o banqueiro Daniel Dantas foi algemado ao ser preso pela operação Sathiagara, levantou-se polêmica enorme. Discursos, entrevistas, debates no Congresso. O STF resolveu, com Gilmar Mendes na vanguarda, que algemas não podem ser usadas, pois o suspeito ainda não foi julgado etc. O fato de que desde sempre ladrões pobres são algemados nunca comoveu a deputados e senadores e juízes. Mas um dono de banco ser algemado, jamais!
Como se não bastasse, agora se agita novo burburinho entre os políticos. Trata-se do estado das cadeias no Brasil. São imundas. Sórdidas. Desumanas. O ministro da justiça, José Eduardo Cardoso, sob cuja jurisdição elas estão, disse, fazendo pose de homem muito espirituoso, que preferiria a morte do que ser trancafiado nelas. Comovente, não é?
Pois o ministro e outros só passaram a se preocupar com o estado lamentável das prisões após o STF condenar alguns de seus companheiros. Desde sempre as prisões brasileiras foram a calamidade que todos conhecemos, mas só agora suas excelências se preocuparam com o assunto. Tadinhos dos companheiros que forem trancafiados, não é mesmo? Como colocaremos Zé Dirceu numa cadeia? Seria cruel demais. Tese subjacente: melhor seria prisão domiciliar.
Assim as coisas giram no país. Todos os que amealham uma nesga de poder se sentem acima do bem e do mal e das normas aeronáuticas e terrestres. Acham que as leis são para os outros. Que seus punhos delicados não devem ser violados por algemas. E, se forem em cana, deveremos providenciar cadeias perfumadas com serviço de quarto de hotel cinco estrelas para os companheiros.
Eu fui ingênuo em achar que o caso de Cid Gomes iria desencadear grande polêmica. Mas uma coisa eu tenho escrito há muito tempo: somos governados por delinquentes. Os comportamentos dos políticos e das classes dirigentes brasileiras são transparentes e não deixam dúvidas. Quem manda está acima das leis e o populacho que se lixe.



segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O que valerá a pena guardar?






Algumas de minhas obsessões – e são muitas – incluem antigas capas de LPs, a máquina de escrever portátil no qual batuquei durante anos, um rádio de cabeceira que me acompanha há quatro décadas e, é claro, meus livros. Obsessões.
Isso me leva a pensar na natureza das coisas que costumamos guardar. Por exemplo: as capas de certos LPs – e tenho algumas na memória, além daquelas que guardo comigo – eram muitas vezes obras de arte. Valiosas não apenas por embalar os discos, não raro iam parar nas paredes como se fossem quadros. Lembro-me de algumas, que datam de 1963, quando Aloysio de Oliveira criou a gravadora Elenco, revolucionando, entre outras coisas, o visual das capas. Um dos criadores das capas era César Vilella e o fotógrafo chamava-se Chico Pereira. Os dois deram caras identificáveis e definitivas a discos de Tom Jobim, Maysa, Vinícius, Nara Leão, Baden, tantos outros. De longe se sabia que era um LP da Elenco. A cara da bossa nova. Reproduções dessas capas foram dependuradas em paredes de bares, de quartos de adolescentes, de diretórios estudantis, chegando, no final de 2008, às paredes do Instituto Tomie Ohtake. A glória de um museu. Criações refinadas, soberbas.
Tudo isso pode parecer nostalgia, mas não é. Hoje eu olho para as capas de CDs e DVDs e fico tentando descobrir por qual razão, mesmo quando são boas produções gráficas, nada convida a serem guardadas como obras de arte independentes do conteúdo musical que abrigam.
Há nelas algo de assumidamente passageiro, algo que convida ao descarte. O mesmo acontece com os equipamentos nos quais escrevemos, notebooks ou micros de mesa. Quem pensaria em guardar um micro num museu por ter sido usado por algum escritor? No entanto, os museus guardam máquinas de escrever e canetas que pertenceram a romancistas e poetas. Duvido que se guarde algum notebook. Eles são – por mais que facilitem a vida de quem escreve – algo programado para morrer. Descartáveis.
Um notebook é apenas um notebook igual a qualquer outro notebook, enquanto uma máquina de escrever é única, exclusiva, marcada para sempre pelos dedos que a batucaram durante uma vida. A máquina de escrever guarda segredos das obras literárias que ajudou a criar.
Assim, nada de nostalgia. Já defendi, mais de uma vez, o livro digital de bobagens que são ditas a seu respeito. É um equipamento notável porque pode conter uma biblioteca e permite diferentes acessos. É leve, prático, simples – quase um livro. Mas não é um livro. Quem pensará em guardar um e-book num museu? Num museu de informática, tudo bem. Mas guardaríamos um tablet no qual algum poeta lia seus autores preferidos? O tablet, ao contrário do livro, não consegue ser ele próprio uma obra de arte integrada a seu conteúdo: o texto é nele mera informação, não criação gráfica. Não tem autonomia alguma.
Até porque os arquivos digitais têm um limite de uso. Hoje podemos consultar livros impressos no século XVI. Um arquivo digital, com poucos anos, já não pode ser aberto, já não circula nos novos equipamentos, já não é entendido por programas recentes, se degrada, morre fácil. O impresso em papel – por mais que se fale na fragilidade do papel – tem uma vida muito mais longa do que os bytes de um arquivo.
Vejam o caso de meu rádio de cabeceira, companheiro de quatro décadas. Não me desfaço dele. Bem cuidado, funcionará por muitos anos. Já um walkman, nascido no início da década de 1980, é tido como imprestável. Seus sucessores aí estão, todos marcados pela mesma fragilidade: ninguém se atreverá a guardá-los. Não rodarão mais ou não poderão ler novos arquivos.
A razão é essa: o mundo digital – que facilita nossa vida enormemente – traz em sua própria concepção uma data fatal. Uma capa de CD ou DVD pode ser muito bem bolada, mas jamais será dependurada numa parede. Um tocador de MP3 é (ou já foi?) versátil, mas nada o transforma em objeto único – é apenas mais um. Um notebook jamais incorporará o jeito e as manias de quem o usou. Um tablet jamais será um livro, pois um livro pode ser uma obra de arte ele mesmo.
Note-se que equipamentos digitais não envelhecem pela ação do tempo, como se dá com tudo o mais. Envelhecem porque trazem embutido neles o que os consome: serem os últimos de uma fila, a mais nova versão. O que é fatal.
Por isso certos objetos guardam uma permanência intrínseca, indo além de seu tempo, enquanto outros têm vida breve.





terça-feira, 13 de novembro de 2012

Um fenômeno, aliás, dois – Cauby Peixoto e Ângela Maria



Cauby Peixoto e Ângela Maria

Fui ao show de Cauby e Ângela Maria, sábado, dia 10/11, na Boca Maldita. No meio da multidão – 18 mil, segundo dizem – lá estava eu, sabendo a letras de todas as músicas, assobiando e aplaudindo, cantando como se soubesse cantar.
Confesso que fui ao show com o coração apertado, desejando reviver grandes alegrias mas temendo levar um susto. Aqueles dois seriam os mesmos?
Bastou aquele homem alto, vestido de negro, frágil e de andar hesitante, de expressão tensa, pisar no palco para que a multidão explodisse. Às favas com a idade, com os problemas de saúde, às favas com o silêncio da mídia com relação aos grandes cantores brasileiros. Todos ali – e eram de todas as idades – queriam ouvir aquelas duas vozes.
E as duas não decepcionaram. A voz de Cauby (81 anos) continua com a mesma qualidade, uma potência incrível, um virtuosismo que só os cantores excepcionais conseguem atingir. De Ângela Maria (84 anos) vale o mesmo: a clareza de dicção, a voz que flutua sem esforço, a emoção exata.
É claro que chatos poderão dizer que já não são os mesmos. Ora, os chatos é que são sempre os mesmos. Os grandes cantores, como todos os seres humanos que amamos e que são capazes de nos fazer amar, envelhecem, mudam, já não são os mesmos. São outros, melhores, dominam sua arte apesar de todas as dificuldades que a vida colocou em seus ombros. Os gestos de Cauby são lerdos e breves, a movimentação é pouca e cuidadosa, a postura é rígida. Mas a voz segue belíssima.
Cauby e Ângela, para mim, que era menino quando eles já faziam sucesso, são criaturas míticas. Minha mãe cantava todas as músicas de Ângela Maria, com quem, num certo momento da vida, chegou a se parecer. Cauby era não apenas a voz, mas um novo tipo de cantor, um comportamento irreverente, um astro, um farsante encantador. Dois mitos.
Afinal, todos precisamos de mitos. É através deles que realizamos as proezas mais raras. Eles nos mostram o poder da arte como afirmação da vida. Contra tudo, seja a mediocridade, a inveja, a violência, a hipocrisia, o envelhecimento, a morte, o grande artista nos brinda com essa mágica que nos permite viver mais e melhor.
As vozes de Cauby e de Ângela Maria, de Elis Regina e Billie Holyday, um improviso de Miles Davis ou Chat Becker, nos fazem viver outras vidas, melhores. 
Foi uma farra notável. Se você estava entre os 18 mil, sabe disso.


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Acabou a temporada de caça ao eleitor - não ao voto obrigatório




Segunda feira passada acordei pensando: acabou. Confesso que em seguida me senti meio culpado, um tanto cruel. Esqueci o assunto e fui fazer meu café.
Mas, quando sai para comprar pão, encontrei um vizinho sorridente. Ele me cumprimentou, com ares de triunfo:
- Acabou!
Já não me senti tão cruel. Mas fiquei pensando na razão pela qual festejávamos o fim da campanha política. Pode ser óbvio: nossa paciência chegara ao limite. Mas não é tão simples. Por isso arrisco duas explicações, talvez três.
Uma é o voto obrigatório. Trata-se de uma distorção violentíssima. Obrigar a votar é típico de país autoritário, no qual tudo deve ser legislado de cima para baixo. Um país no qual não se acredita em liberdade nem em educação nem em cidadania. Fora os iluminados legisladores, considera-se a população um bando de tontos.
Por outro lado, voto obrigatório abriga uma contradição nos termos. Voto é um direito conquistado, nas democracias, depois de muitas lutas. Sendo um direito, cabe a cada cidadão decidir se o exerce ou não. Caso contrário, deixa de ser direito, torna-se dever.
Vejamos. Todos têm direito à vida, mas ninguém pode ser obrigado a viver. Ou deveríamos condenar os suicidas à prisão perpétua? Tenho direito de ir e vir, mas posso abrir mão dele e viver num cantinho com um violão. Tenho direito de casar, constituir família, ter filhos. Mas não posso ser obrigado a isso.
Assim, obrigar a votar é negar o direito de votar.
Não bastasse, a obrigação gera currais eleitorais, conduz às urnas quem teme levar multa ou ser chateado pela burocracia. A venda de votos é decorrência da obrigação de votar. Candidatos desonestos compram votos oferecendo dentaduras, cadeiras de rodas, óculos, dinheiro. Um cidadão consciente, que vai votar por convicção, não venderá jamais o seu voto.
Mas há outro motivo que me fez festejar o fim da campanha política. Trata-se do modo como são feitas. Tudo se resume a uma avalanche de promessas. Um fará o metrô, outro construirá hospitais, outro abrirá os cofres do governo para isso ou aquilo, asfaltará ruas, inaugurará novas escolas etc.
Tivemos eleições municipais, mas em nenhum candidato se percebe uma concepção do que seja a cidade. Como funciona uma cidade? O que a move? O que é nela essencial? Que carências, urgências, exigências, ela, a cidade, tem? Que cidade é hoje Curitiba, com seu tamanho e problemas? É viável que cresça? Como?
Na falta de uma concepção de cidade, tudo se resume a promessas que são jogadas no vídeo como palavras de ordem oportunistas. Fico imaginando: se um dia um editor do programa eleitoral tomar um pileque e misturar o áudio e o vídeo dos candidatos, ninguém notará diferença. São todos iguais. Quem não quer mais escolas, hospitais, asfalto, calçadas, creches, transporte coletivo eficiente? O problema é saber como estabelecer prioridades, por onde começar, com que recursos e caminhando em que direção.
Ao invés disso, temos a enxurrada de promessas e o jogo de imagens. As campanhas valorizam o bom mocismo de um, os bons propósitos de outro, os feitos passados desse, a sinceridade daquele. Nada se discute. Aliás, isso se deve ao fato de que políticos são esponjas que absorvem ideias e projetos aleatoriamente sem avaliar no que elas implicam. Avaliam apenas se aquilo fará bem a sua imagem, rendendo votos. De pensar eles se dispensam, já que se dirigem a pessoas que, ao ver deles, não pensam. E quando um político ameaça pensar, sempre aparece um marqueteiro que o demove dessa temeridade.
Mais uma razão: o voto facultativo é praticado em cerca de duzentos e cinco países, entre eles, França, Inglaterra, Estados Unidos, Japão, Índia, Alemanha, Rússia, Itália, Canada, Espanha, México. Dos vinte e quatro países que adotam o voto obrigatório, treze estão na América Latina, o que é mau sinal.
O voto facultativo poderia ter um alto valor político e educativo: ajudaria a dissolver o tradicional espírito servil brasileiro, gerando a verdadeira cidadania.
Mas o prezado leitor já viu algum político ou partido defender o voto facultativo?
Pois é. É isso que cansa. Felizmente acabou.