domingo, 26 de fevereiro de 2012

Em busca de Steve Jobs




A biografia de Steve Jobs (Walter Isaacson, Cia das Letras), um calhamaço de 608 páginas, segue o padrão de biografias norte-americanas. O autor liga um gravador no primeiro parágrafo e o mantem acionado até à última página. Fatos em avalanche. O relevante e o irrelevante. O contrário do estilo minimalista que Jobs imprimiu à Apple. Mas tem um mérito: busca um ser humano real.
O tema de fundo é o menino abandonado. Doado pelos pais biológicos, foi criado por Paul e Clara Jobs, pelos quais foi protegido e amado. O pai, que fora mecânico na marinha, iniciou Steve em parafusos e porcas na oficina na qual reformava carros para revenda.
Surpreende que, tendo sido tão amado pelos pais adotivos, Steve jamais tenha superado esse trauma. Em tudo que fazia lá estava o abandono. Daí não ter reconhecido a filha Lisa, do namoro com Chrisann Brennan, que se referiu a ele como “um ser iluminado e cruel”.
Sua irmã, a romancista Mona Simpson, relevou um episódio que ilustra esse relacionamento com o pai. Ela também sofria por desconhecer o pai biológico e colocou detetives no seu encalço. Acabou encontrando Abdulfattah Jandali, o pai. Passou a encontrar-se com ele sem, no entanto, falar de Steve, que Jandali não imaginava ser seu filho. Certo dia, ele lhe contou que já dirigira um restaurante de algum sucesso e acrescentou, orgulhoso:
- Lá aparecia muita gente importante. Até o Steve Jobs foi lá um dia. Cheguei a pedir um autógrafo a ele.
Mona gelou, mas nada revelou ao pai ou a Steve. Quando, mais tarde, falou com Steve a respeito do pai, ele não quis conhecê-lo, ainda que guardasse lembrança do simpático proprietário de restaurante com quem conversara. Seu pai.
Quando estudantes, Steve e Wosniak, embora fossem o avesso um do outro, se encontraram e o resto é a história da Apple, desenrolada a partir da garagem que Paul Jobs cedeu ao filho. Steve era extrovertido, falador, impositivo, decidido, afoito e sonhava conquistar o mundo. Wosniak era introvertido, tímido, calado, solitário, mergulhado na eletrônica. Foi o casamento ideal. É equívoco pensar que Wosniak não passava de um bobão ou que Steve se aproveitou do talento do amigo. O próprio Wosniak se encarregou de esclarecer: “sem mim, Steve jamais teria feito o que fez e eu, sem Steve, jamais teria feito o que fiz”. Ponto final.
Steve não era um gênio da eletrônica – Wosniak, sim. Não era inteligente no sentido que essa palavra é aplicada a cientistas e filósofos – mas era intuitivo e brilhante. E não era um executivo. Não gostava de dinheiro e jamais pensava em lucros ao conceber seus projetos. Seu interesse eram os produtos em si. Desprezava dinheiro. Com sua capacidade de “distorcer a realidade”, era um visionário. Sabia exigir, imaginar, tirar sangue de sua equipe. Um tirano muitas vezes, não raro cruel, autoritário sempre.
Tinha outro traço, comum a muitos de sua geração: desejava ser fiel aos ideais da juventude. Admirador de Bob Dylan, usava um cabelão enorme, roupas sujas, pés no chão e, o pior, não tomava banho. Fedia à distância. Tinha uma teoria para a fedentina: era vegetariano e acreditava que vegetarianos não fedem. Só os carnívoros. Na Atari, tanto pela fedentina quanto pelo gênio intratável, trabalhava sozinho, à noite, isolado de todos. Só foi tomar banho, aparar a juba e usar roupas limpas quando precisou vender suas maquinetas.
As dietas malucas que inventava podem estar na origem de seus problemas de saúde, somadas ao ritmo maníaco de trabalho. Namorou Jean Baez e o zen budismo. Coisas da juventude. Tal como as drogas. Iniciava suas palestras perguntando quantos dos presentes já haviam experimentado LSD. Achava-se um contestador infiltrado no sistema. Todos passamos por isso.
Maníaco na busca da perfeição, sua estética era a da Bauhaus. “A simplicidade é a máxima sofisticação”, dizia. Entre a máquina e o sistema operacional deveria haver uma simbiose absoluta, o pacote integrado, o que o afastaria de Bill Gates, com quem brigaria vida afora. Não pensava em dinheiro, mas ficou bilionário aos vinte e poucos anos.
Complexo, contraditório, maníaco, talvez genial. Reflexo de seu tempo e reinventor de seu tempo. Seu último depoimento diante da morte foi também sofrido e contraditório. Ele, que odiava os botões de liga/desliga, se resignava. Talvez tudo se resumisse a isso: “Clique! E a gente já era”.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Monumental silêncio da bateria da Mangueira



Como repito todos os anos - exercendo meus dotes de anti-profeta e agora apoiado pelo silêncio eloquente  da bateria - quero deixar claro que a Estação Primeira de Mangueira é campeã do Carnaval 2012. E revogo as disposições e animosidades em contrário.



domingo, 12 de fevereiro de 2012

Variações em torno de um Opala




Eu já saia do posto de gasolina quando o sujeito se aproximou. Tinha o rosto enrugado e mãos calejadas. Abriu um sorriso meio moleque e me perguntou:
- Quer vender o Opala?
Respondi com um sorriso equivalente:
- Não. Esse eu não vendo de jeito nenhum.
- Tenho um também, disse ele.
- Que ano?
- 72.
- O meu é 73.
- Tô vendo, disse ele, esperto. Pois sabe que já me ofereceram 30 mil pelo meu e não vendi?
- Nem deve vender.
- Acho que não, mas... É que a gente vende e depois fica sem ele. Não vejo vantagem. Dinheiro é coisa que some num instante. É uma troca, não é? A gente recebe o dinheiro, dá o carro. E fica sem o carro.
- É verdade.
- Coisa do comércio. Dá lá toma cá. Mas de que me adianta o dinheiro se não tenho o carro?
- Não adianta de nada, concordo, cedendo a essas divagações profundas sobre a teoria econômica.
- Depois – ele aponta a calça suja de graxa – eu sou mecânico. Chega no domingo, não tenho o que fazer. Vou cuidar do Opala. Se fico dentro de casa, dá briga com a mulher. Quero ver futebol, ela quer ver o Faustão. E eu fumo. Ela reclama do cigarro. Então, vou pro quintal, fico fumando, ando de um lado para outro, fumo mais um pouco. Mas fumar muito dá tosse, não é mesmo? Então, só tenho o Opala para me distrair. Se vendo, como fica meu domingo?
Não respondi. O momento era denso e dramático, fiquei quieto, balançando a cabeça. Ele me olhou sério e arrematou:
- O melhor do domingo é cuidar do carro – suspirou e pensei que ia se despedir, mas continuou: O diabo é que a mulher agora anda implicando com o Opala.
- Não me diga! Por quê?
- Coisa de mulher. Diz que passo mais tempo com ele do que com ela. Acho que tem ciúmes. E reclama das despesas com peças, com óleo e gasolina, reclama de tudo. Quando mando lavar e encerar o carro, é briga pra semana inteira.
- Mulher é assim mesmo, disse eu, bestamente.
- Não é não, ele me corrigiu. Quer dizer, não era. Nunca ligou pro carro, preferia esses programas de televisão. Mas agora que nossa filha casou, quer dar tudo pra ela. Só pensa nisso. E, quando não tem grana, a culpa é de quem? – me olhou firme nos olhos e tornou a perguntar: De quem?
- Do Opala, respondi.
- Isso mesmo, do Opala. Coitado do Opala – concluiu, desolado.
Foi quando disse a ele que não entedia como, tendo um Opala que já lhe causava tanto transtorno, queria comprar mais um.
- Não quero comprar, não.
- Mas o senhor perguntou se eu queria... – tentei dizer.
- Calma, amigo. Nem tenho grana. Perguntei só pra puxar conversa. Eu tenho um 72, o amigo tem um 73. O meu é câmbio no volante...
- As marchas acavalam às vezes – comentei.
- Vez que outra.
- Banco da frente inteiro. Quatro portas.
- Isso mesmo. Grade com fundo preto. Então, dá vontade de conversar. Já notou como a gente sempre encontra com quem conversar quando tem um carro como o Opala?
- É verdade.
- Pois então, foi só por isso.
Ficou com meu número de celular. Prometeu me passar o endereço de um sujeito que é um artista no conserto de radiadores. Nos despedimos como velhos amigos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O caso Pinheirinho. Que ordens eles cumprem?




O caso Pinheirinho já saiu dos noticiários, mas acho necessário ir contra a lógica do jornalismo – que beneficia os governantes incompetentes ou corruptos, pois os fatos de hoje apagam tudo que aconteceu ontem - e insistir naquilo que esse episódio tem de infelizmente perene.

Todos nós já ouvimos “autoridades” declararem, face a atrocidades que cometeram, que estavam cumprindo ordem judicial, ocasião em que enchem o peito – como se fossem grandes paladinos da justiça – para arrematar: “ordem judicial não se discute, cumpre-se”.

As “autoridades” são cínicas por natureza, ou não chegariam a tais postos. No caso Pinheirinho, em que se colocou para correr centenas de pessoas abaixo de pancadaria braba, novamente assistimos a mesma encenação, agora protagonizada pelo governador de São Paulo, o semsaboroso Geraldo Alckmin, sujeito dado a missas dominicais e discursos tatibitates.

Há dois lados interessantes nesse caso. Primeiro, o tempo decorrido desde a tal “ordem judicial” e seu cumprimento. O caso Pinheirinho rola desde 2004, no mínimo. Como, pelo que dizem, deveriam cumprir a tal ordem, era tarefa das autoridades providenciar condições para tanto. Por exemplo: como seria feita a remoção, quando seria efetuada, para onde seriam deslocadas essas pessoas, em que condições minimamente dignas etc. etc. Um trabalho que não deveria, é claro, ser executado pela polícia, que não prima pela delicadeza, mas por órgãos do Estado dedicados à assistência aos mais necessitados.

O outro lado é tão cruel quanto. Quando se trata de precatórios, por exemplo, também existe “ordem judicial”. No entanto, basta darmos uma olhada nos casos correntes para encontrarmos pessoas que morreram esperando pela reparação de seus direitos – são aposentados, ex-funcionários públicos, pessoas que foram presas injustamente, que tiveram seus bens confiscados, que sofreram prejuízos morais ou financeiros causados pelo Estado etc. Passaram a vida inteira batalhando kafkianamente contra o cinismo do Estado.

Convivemos, portanto, com um imenso calote nacional em andamento sem que nenhuma dessas “autoridades” levante seu dedinho sapiente para dizer que “ordem judicial não se discute, cumpre-se”.

Por outro lado, o Judiciário e o Executivo – um autorizando e o outro pondo em prática a distribuição de bangornadas na população pobre – são os mesmos que, ao sentirem ameaçados seus pares por investigações da CNJ ou ao verem sujeitos engravatados ornados com algemas, estufam o peito e bradam contra injustiças feitas “ao arrepio da lei”.

Quando, no entanto, cinco policiais – para ficar só numa das imagem do Pinheirinho – escorraçam com pancadas um pobre coitado indefeso que queria apenas cair fora, as “autoridades” não sentem qualquer arrepio. Vão à missa ou trocam brindes de champanhe com o mesmo cinismo na cara.


NOTA: uma análise muito boa sobre o tema Pinheirinho e as decisões judiciais, pode ser encontrada no site do Instituto Humanitas Unisinos. Basta clicar aqui.