quinta-feira, 29 de março de 2012

Millôr do princípio ao fim




Millôr foi (é) um gênio. A mais viva das inteligências. O estilo – ele que dizia ser um escritor sem estilo – mais límpido, direto, puro. O humor mais demolidor e, ao mesmo tempo, mais refinado. Um ilustrador de rara originalidade. O frasista mais que perfeito. Um homem que lutou sempre, assumindo riscos diversos, pela autonomia e a liberdade num país de gregários oportunistas.

O que dizer dessa morte, prematura mesmo aos 88 anos? Ele merecia o dobro. Nós merecíamos que ele vivesse o dobro.

Perdemos e perde esse triste país no qual tantas antas antológicas e múmias marqueteiras fazem carreira, ocupam lugares, ditam regras idiotas, escrevem livros cretinos e deformam a consciência política, ética e ideológica nacional.

Ler Millôr é um bálsamo, uma alegria. A descoberta de que a retidão de caráter e o cultivo dos valores espirituais e intelectuais sempre vale a pena.

Hoje todos nós morremos um pouco com essa morte.

terça-feira, 27 de março de 2012

Chico Anysio, o contador de causos

Maranguape vai colocar uma estátua de Chico Anysio caracterizado como Pantaleão

É admirável que Chico Anysio tenha atravessado as mais de seis décadas de sua carreira percorrendo todas as mídias. Começou no rádio e nele fez de tudo – foi imitador, apresentador, comentarista de futebol, criador de programas e redator. Em tudo se saiu acima do pedido. Chama a atenção o fato de que adquiriu do rádio uma voracidade onívora. Tudo passava pelo seu filtro humorístico. Notícias do dia a dia, grandes trapalhadas nacionais, personagens da política, do futebol, da chamada alta sociedade e das classes populares. Nada escapava. E tudo, fosse um bordão, uma piada, um chiste, um cacoete, uma canalhice, ele transformava em texto, em personagem, em quadro, em narrativa cheia de humor e inteligência.

Outra coisa: Chico assumiu inteiramente um personagem do folclore e dos costumes brasileiros, o contador de causos. Acho que essa é a grande fonte de inúmeras narrativas brasileiras, sejam elas eruditas ou populares. Se pensarmos bem, Riobaldo Tatarana (o narrador de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa), é um contador de causos extremamente brilhante, assim como o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado (do delicioso O Coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho). O mesmo se diga de vários narradores de obras de João Ubaldo Ribeiro, Lima Barreto, João Antônio e tantos outros. No âmbito propriamente popular o contador de casos é onipresente. Foi nesse personagem que Chico se inspirou, o que permitiu que se tornasse uma espécie de romancista popular, desses que contam histórias para o prazer do povo, na linguagem do povo e usando o povo como personagem central. Hoje, quando os humoristas de uma nova geração vão buscar no standup norte-americano um modo de fazer humor, me parece que perdem o rumo. O standup tem algo de mecânico e cerebral, uma auto-esculhambação artificial do narrador e uma escatologia próprias do humor americano e longe da tradição dos contadores de causos brasileiros. O contador de causos jamais deprecia a si mesmo. Pode, no entanto, ser irônico consigo mesmo e até não se levar a sério. É sobretudo um observador refinado e um crítico mordaz das fraquezas e aventuras humanas.

E é nessa capacidade de criar personagens saídos dos tipos populares – sejam eles ricos metidos a besta ou pobres delirantes – que Chico construiu uma galeria que, dizem, chega a 209 personagens. É muito. Eis aí mais um talento de romancista popular. São tipos únicos, em seus gestos, vozes, cacoetes, pensamentos e pequenos desastres ou modos de superar as agruras da vida. Pode ser um jogador de futebol sem talento e cachaceiro ou um velho professor que tem caspas e as atribui ao “suor do cérebro”. São personagens de fato, não fantoches. Funcionam e vivem por si só. Ficarão por aí, sem o Chico, como novos Quixotes.

Finalmente, Chico criou, à sua maneira, um retrato panorâmico do Brasil. Um retrato cheio de humor, de malandragem, de malícia, recuperando e preservando os ditos e a linguagem do povo, a sabedoria popular e os equívocos de todos nós. Realizou assim um sonho que muitos ficcionistas de nariz empinado fracassaram em realizar. Nesse gênero mediático e popular Chico Anysio foi definitivamente imbatível.

domingo, 25 de março de 2012

O tamanho de cada um e de cada outro


Os dois se conheceram muito jovens. Gustavo tinha dezenove anos e Flora quatorze. Ele era magrinho, miúdo e tocava guitarra. Ela era frágil e magra. E adorava cantar rock. Sendo ambos apaixonados por Jimi Hendrix e Janis Joplin, chegaram à conclusão e estavam fadados a viver juntos para sempre.

Contra tudo e contra todos – quer dizer, contra a opinião de pais, parentes, amigos, irmãos, alguns vizinhos enxeridos e sem levar em conta o fato de que não tinham profissão nem trabalho fixo – resolveram casar. Afinal, o sonho ainda não acabara. Jimi Hendrix e Janis Joplin lhes dariam suas benções, onde quer que estivessem. Tinham os corações cheios de esperanças. O futuro estava logo ali.

Mas, ao chegarem logo ali, no futuro, descobriram que Gustavo, pequenino e magro, parou nos seus um metro e cinquenta e quatro, enquanto que Flora crescia com a determinação de um bambu em tempo de chuva. Tornou-se uma mulher alta, atlética. Forte, não gorda. Gostava de esportes, o que só descobriu lá pelo quinto ano de casamento. Ele, miudinho, seguiu pequeno e jamais correu atrás de bola, nunca pedalou bicicleta e se tornou um curtidor de filmes vistos na televisão – ir ao cinema lhe parecia uma maratona.

Por isso, a partir de certo momento – e nem eles saberiam determinar quando – começaram a discutir.

- Você cresceu demais, resmungava Gustavo.

- Não me culpe pelo fato de você ser baixinho.

- Baixinho, vírgula! Só não me transformei, como esses seus amigos de academia, num... num rinoceronte.

- E eu sou um rinoceronte, por acaso?

- Eu não disse isso.

- Não disse, mas quis dizer exatamente isso. Você é que parou, tá me entendendo? Parou.

A discussão era repetitiva e empacava por aí mesmo. Cada um se virava para um lado. Gustavo de olhos fixos na televisão, vendo filmes. Flora fazendo exercícios com dois alteres.

Alguns dias depois – ou horas, dependia – ele dizia:

- Não acha que seus ombros parecem de halterofilista?

- Tenho um corpo perfeito e perfeitamente feminino. Não chateie.

- Perfeito, é verdade, ele concordava. Mas você cresceu demais.

- Já vai começar de novo?

- Será que você não poderia diminuir um pouco?

Ela largou os alteres no chão com algum estrondo e perguntou:

- E pode me dizer como vou diminuir?

- Evitando essas vitaminas que toma, por exemplo.

- Isso não engorda nem faz crescer. Isso cria massa muscular.

- Mas, quando nos conhecemos, você não era...

Nem esperou ele responder. Tinha uma explicação na ponta da língua:

- Meu pai era um homem grande. Alemão. Um metro e oitenta e nove. E minha mãe tinha um metro e setenta e oito. Polaca. Para a geração deles, eram muito grandes. Já os seus pais, lá do litoral...

- Não meta meus pais nessa história! Além disso, você tem um metro e noventa!

Ela ergueu um dedo em fúria:

- Um metro e oitenta e sete! Nem um centímetro a mais. Você é que tem centímetros a menos.

- Olha lá o que está insinuando!

- Não estou insinuando nada. Você é que poderia crescer um pouco. Fazer exercícios, tomar vitaminas, sei lá! No fundo você tem vergonha de ser baixinho. E tem vergonha da minha altura. Simples assim.

Apesar desses profundos debates, nem ele cresceu e nem ela diminuiu, Separaram-se. Gustavo ficou no apartamento, pois tudo ali fora adaptado à sua altura – os armários, as pias, até mesmo a cama, ao pé da qual Flora colocava um pufe para poder esticar as pernas. Ela mudou-se para um apartamento maior, comprou uma cama enorme, estantes altas, dispensou banquinhos para abrir os armários.

Quando se encontravam, Gustavo reclamava que era uma provocação ela usar saltos plataforma. Ficariam bem em você, ironizava ela, pedindo que ele segurasse seus alteres, o que deixava os braços dele espichados até os joelhos.

domingo, 11 de março de 2012

Quem é você?





Ela surgiu do meio da multidão que se atropelava pelos corredores do shopping. Era uma senhora idosa, magrinha e meio curvada, cabelos de cor indefinível, sorriso grande. Abriu os braços diante de Laurinho Telefone, eufórica:
- Lauro! Há quanto tempo!
Laurinho Telefone, boêmio e galã em todas as horas disponíveis, já não se reconhece ao ser chamado de Lauro, coisa de outros tempos. Mas a senhora idosa balançava os braços diante dele, aguardando o abraço.
- O que?! Vai dizer que não se lembra de mim!
Laurinho é um homem gentil, mesmo quando sóbrio. Sussurrou com um cuidadoso fiapo de voz:
- Acho que... não sei...
- Não lembra?
- Infelizmente, não.
Ela insistiu:
- Não lembra? Não acredito.
Laurinho encheu o peito e foi enfático:
- Não. Sinto muito. Não lembro.
- Diva, disse ela. Divina, lembra?
- Divina?
- Era assim que você me chamava. Divina.
Pensou em confessar que anos de cerveja e uísque no boteco do Cego Tião estragam a memória de qualquer um, mas preferiu não arriscar. Confessou:
- Não sou muito bom nisso de memória...
- Do Centro Acadêmico, Lauro. A Diva do Centro Acadêmico, onde nos conhecemos.
- Ah, já sei. O Centro Acadêmico Hugo Simas.
- Não – a senhora idosa manifestou alguma irritação. Arquitetura.
- Ah, claro, fez ele. Arquitetura.
- Lembrou?
- Não.
- Não acredito.
- Nem eu, me desculpe.
Ela abaixou os braços, já sem esperanças de receber um abraço, coberta de dor:
- Estou morrendo de vergonha.
- Por favor, não fique assim. Eu sou um desastrado.
- Nós quase ficamos noivos, Lauro. Não lembra?
As noivas de Laurinho. Ele passou um scanner mental em suas lembranças de namoradas e noivas, que foram muitas naquelas épocas tumultuadas de centros acadêmicos, passeatas, comícios, protestos, acampamentos, mas não achou nenhuma Divina.
A senhora afastou-se em busca de um banco no corredor. Sentou-se e começou a chorar.
- Minha senhora...
- Diva! Divina! – o dedo no nariz de Laurinho.
- Minha... Divina... não chore. Me desculpe.
- Eu envelheci, é isso. Nem me reconhece. Você continua o mesmo, não mudou. Mas fique sabendo que eu era linda! Divina! Agora nem me reconhece. Virei um trapo.
Foi quando Laurinho teve um lampejo:
- Acabei de lembrar! Um dia fomos a Antonina, na Kombi do diretório. Você tinha um namorado chamado Clóvis. Nós fugimos dele e ficamos namorando no trapiche.
A senhora deu um salto do banco, esbravejando:
- Seu safado! Essa era minha irmã! Clóvis era o namorado dela!
Diante da pequena multidão que se juntara em torno deles e temendo ser linchado, Laurinho, que guarda a agilidade de um bailarino, sumiu de fininho corredor afora nas suas habituais passadas sincopadas que, sabemos agora, foram cultivadas nos saraus de remotos centros acadêmicos.


quarta-feira, 7 de março de 2012

Brasil & China - o bricabraque de cada um




Dia desses, tiroteando com o controle remoto de canal em canal esbarrei numa entrevista com um chinês simpático e bem articulado. Falava uma versão do português bastante razoável. Pelo que entendi, é um empresário que representa uma associação de empresas exportadoras da China. Mais um sinal de esperteza: é casado com uma brasileira.
Pois o chinês – não anotei o seu nome – fez uma exposição interessante das razões, segundo ele, pelas quais a China apresentou esse crescimento que assombra o mundo. É claro que driblou com habilidade todas as perguntas que questionavam as condições de trabalho dos operários na China ou o problema das liberdades civis e dos direitos humanos. Bom de drible, o chinês.
Disse ele, ao criticar o modelo brasileiro – ao ver dele, demasiado fechado ao capital estrangeiro, preocupado em controlar a inflação, com juros altos atraindo capital especulativo – que os chineses formaram uma grande quantidade de engenheiros, enquanto que o Brasil continuou insistindo em formar advogados. E arrematou: “Os engenheiros querem fazer coisas. Os advogados querem discutir”.
Eis como o simpático chinês fez um instantâneo preciso de um dos traços da cultura brasileira. Somos um país sufocado pela rala e pernóstica sapiência jurídica, pela atrofia das legislações e, sobretudo, pela crença esdrúxula de que é com leis que se governa e constrói um país. Insisto, como sempre: um país não é governado por leis; um país governa suas leis. As leis resultam de um consenso do país e não o contrário. Além disso, nem tudo está previsto em leis e, em particular, o principal da coesão e das relações sociais não está em leis, mas em convicções e crenças que movem seus habitantes e fixam seus valores. Hoje, o que falta ao Brasil, não são leis – temos uma constituição gigantesca e uma quantidade não sabida de leis, sendo que umas pegam e outras não – mas a criação de valores básicos segundo os quais agir. Quando um governante (Lula, para os esquecidos) diz que coisas como o caixa dois “todo mundo faz”, ele está não apenas invalidando leis, mas destruindo o que deveria ser uma convicção fundamental: é preciso agir com ética, é preciso respeitar o que ordena a sociedade. O contrário é a instituição do cada um por si e salve-se quem puder.
Trata-se de uma típica sociedade de advogados, para os quais, mesmo a maior atrocidade, se não for prevista em leis, é perfeitamente aceitável.
Pois a partir da observação do empresário chinês, lembrei-me de uma observação de Steve Jobs que, com sua compulsão obsessiva, repetiu muitas vezes que os EUA precisavam formar levas e mais levas de engenheiros e dar um basta no predomínio dos advogados.
Cada um a sua maneira, Brasil e EUA são nisso semelhantes. Uma sociedade pensada por advogados, na qual muito se discute e nada se faz. Vejam, por exemplo, o PAC. Anunciado como a redenção final da pátria, ninguém sabe aonde chegou, o que foi feito, sempre que se mexe no assunto se encontra obras pela metade, obras que não saíram do papel. Vejam, por outro lado, a imagem que governantes vendem de um Brasil como a potência emergente enquanto nas escolas se vê o predomínio da carência e da ignorância, nos hospitais faltam algodão e cuidados, nas estradas sobram buracos e acidentes etc. etc. Veja-se também o modo como o Brasil está conduzindo a preparação para essa (lamento dizer) malfadada Copa de 2014. O improviso, as discussões infindáveis, o faz de conta. Dinheiro do país para alimentar os delírios de grandeza da FIFA e seus velhinhos corruptos e para encher de empolgação os patrioteiros de sempre, que tomam carona nos feitos do futebol. Bom, ou muito me engano ou dessa vez quebrarão a cara, pois o Brasil não deve ganhar essa Copa, não tem nem técnico nem jogadores à altura. Posso quebrar a cara, mas é isso que me ocorre.
Enfim, a farra com o dinheiro público, os planos mirabolantes, tudo isso casa com a ausência de trabalho efetivo e tem a ver com a criação de fantasias como o PAC, a Copa, o julgamento adiado do mensalão, o pré-sal que não rendeu ainda uma só gota de petróleo mas que agita as discussões de juristas e políticos, cada um querendo puxar uma brasa para a sua sardinha, numa briga entre estados como não se via há muito tempo.
De tudo isso, fica uma lição sobre as distorções brasileiras, ainda que o nosso simpático empresário chinês que me deu o mote para esse texto, precisasse explicar melhor como, onde, em que condições, com quais direitos e limitações, trabalha a mão de obra barata da China. O “socialismo” à moda chinesa conseguiu esse milagre: um Estado ditatorial, um povo domesticado e um capitalismo socialista. Não há concorrência que dê conta.
Dia desses, surpreendido por uma chuva violenta no centro da cidade, parei numa barraquinha e resolvi comprar um guarda-chuva. Chinês, é claro. Paguei dez pilas e perguntei à senhora que me atendeu se era mais um daqueles guarda-chuvas que se desmanchavam no segundo temporal. Ela sorriu, embolsou previamente meus dez pilas e disse, com sabedoria: “Se a primeira chuva não for com ventania...”
Eis aí um belo retrato da indústria chinesa feito por essa senhora que atua como camelô, tão pertinente quanto o retrato do Brasil feito pelo simpático empresário chinês.