domingo, 22 de abril de 2012

Paris em movimento


Costumamos ver as cidades como se fossem um mapa. Uma extensão disposta no espaço. Ruas, casas, prédios, praças, monumentos. Sob o predomínio do olhar. É compreensível. Para nossa orientação talvez precisemos ver as cidades como algo acabado e estático. É claro que o tempo pode aparecer aqui e ali como efeito de contraste: uma construção mais antiga, outra mais nova, aquela outra caindo aos pedaços.

Tudo, no entanto, no espaço. Sem o tempo.

Pois andei lendo um livro que consegue, de um modo curioso e divertido, introduzir o tempo nessa equação. Trata-se de Próxima estação, Paris, (Paz e Terra, 2011), escrito por Lorànt Deutsch, tendo o seguinte subtítulo: uma viagem histórica pelas estações do metrô parisiense. Ator e filósofo, Lorànt une o grande amor que dedica a Paris a outra de suas paixões, a história. O resultado é um livro instigante. Vira pelo avesso a visão espacializada e atemporal de cidade que por razões pragmáticas somos levados a adotar.

Trata-se de um passeio – com suporte em grande conhecimento histórico – ao longo de vinte séculos. Cada uma das estações de metrô – por onde multidões passam indiferentes – conta inúmeras histórias e guarda os seus vestígios. Mas não se trata de livro descritivo ou de um guia para turistas. O mote é investigar cada rua, viela ou palácio, como o faria um historiador ou um arqueólogo.

A primeira estação, o marco zero, é a da Île de la Cité. A mais de vinte metros abaixo do nível do Sena, somos levados a um recuo no tempo. É de lá que o autor emerge, seguindo uma velhinha parisiense e acompanhado pelo leitor, na superfície onde se encontra o mundo que ali havia no século I a.C.

Somos apresentados a um lugar onde não há nada. Ou quase nada. São ilhotas, seis ou sete, com meia dúzia de cabanas e alguns pescadores. A Lutécia que os parisienses imaginam ter existido ali se encontra em outro lugar, soterrada no subsolo de Nanterre.

A partir desse cenário, o autor coloca Paris em movimento e conta suas histórias. Devo dizer que não são histórias tranquilas e, na maioria, nada edificantes. Os romanos a destruíram algumas vezes, os visigodos desceram em avalanche para saqueá-la, os germanos, cumprindo velha obsessão, tentaram subjugá-la. E mesmo quando os inimigos externos se vão, os franceses se encarregam de produzir encrencas, conflitos, guerras, rebeliões, revoluções. Uma mortandade sem fim. Frio e fome e ratos servidos nas refeições, temperados com pestes e epidemias várias.

Por ali desfilam tribos, reis e príncipes que lutam entre si – e para os quais matar um pretendente ao trono, mesmo que seja um menino de quatro anos, é mero detalhe tático. Em sua loucura, derrubam palhoças, incendeiam casas e igrejas, demolem fortalezas, derrubam abadias, torres, catedrais. Mas a cidade renasce. De seus destroços surge outra muralha, novos palácios, igrejas. Um rei remodela o palácio do antecessor, derruba paredes, acrescenta à construção alas num estilo diverso.

Paris é um terremoto interminável. Um sobe e desce de edificações, um redesenhar de ruas e praças, movido pelos ódios, doideiras e vaidades humanas. Uma torre se ergue, uma igreja desaba, uma rua se fecha, uma praça se expande. Até ser entregue a seu urbanista mais celebrado, o barão Huissmann, a cidade nos oferece o espetáculo de um movimento incontrolável. Que não cessará depois dele.

Aquela praça era um pântano. O Louvre não era o mesmo nem era para ser assim. Da Bastilha restou uma pedra encalhada numa calçada. É verdade que todas as cidades sofrem mudanças, mas aqui o tempo é muito extenso, os acontecimentos são incontáveis, as alterações são radicais, a história se deposita em cada pedra do caminho e repercute mundo afora. Eis como uma geografia pacificada se revela uma avalanche. O ser humano, imitando a natureza, cria e recria em ciclos de destruição e reconstrução, eis tudo.

Mas, como nossa aflição exige chão firme para pisar, desejamos, exaustos, que Paris seja e continue sendo Paris, aquela que ali está.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Cachoeira abaixo, lá vai o Brasil descendo a ladeira


Escândalos já não causam espanto a ninguém. Eclodem a cada dois ou três dias, alguns com nomes engraçados, com a Polícia Federal investigando e denúncias na imprensa. As denúncias da imprensa costumam receber severos desmentidos do governo e as ações da PF são colocadas em questão por políticos e burocratas. Dias depois, um ministro ou chefete de alguma repartição cai – quer dizer, a coisa fazia sentido. O que não impede que se passe a mão na cabeça do derrubado. Vejam a coleção de agrados de Lula e Dilma dirigidos a alguns dos que caíram em desgraça.

A Polícia Federal passou meses investigando, juntando papelada, apreendendo computadores, acumulando centenas de horas de gravações. Nada que impeça declarações de advogados declarando que aquilo que está gravado não é o que está gravado, motivo pelo qual não se deve ouvir o que se ouve, pois não havia autorização para quebrar sigilo. Na verdade, havia, sim, mas advogados são assim mesmo e servem para isso mesmo. Já aconteceu de advogados e políticos pretenderem transformar o que foi apurado em arma contra quem fez a denúncia. O mesmo de sempre.

Até o momento em que escrevo, o escândalo da hora é o do Cachoeira, que, além do nome engraçado, tem algumas coisas que o tornam diferente.

Ao que tudo indica, nasceu do desejo de vingança de Lula contra o episódio do mensalão (há nome mais engraçado do que esse?), pois o ex-presidente jurou que ia mostrar que o “mensalão era uma farsa” e que “todos os partidos fazem a mesma coisa”. A lógica de Lula é mais ou menos a seguinte: se conseguirmos provar que os que nos acusam são sujos, isso significa que todos são sujos, tanto nós quanto eles, portanto ninguém é limpo, ou melhor, todos são limpíssimos, pois se trata de procedimento próprio da política etc., coisa normal, só os ingênuos não querem aceitar.

Ocorre que, uma vez disparado o míssil que Lula imaginou, começaram a se espalhar estilhaços para todos os lados, inclusive na direção da cabeça de alguns companheiros. E agora? Tentou-se voltar atrás, mas era tarde. Tentou-se segurar o congresso, mas a chamada opinião pública e certo pudor residual em alguns setores passaram a exigir que a investigação continuasse, pouco importando os alvos que fossem atingidos.

Temos então a figura central, o Cachoeira em pessoa. Trata-se de uma figura característica dos tempos que a República vive. É meio jeca, é bronco, é debochado, é bicheiro, é empresário de jogos de azar, teria uma rede de empresas, é influente em nomeações, em patrocínios de campanhas, em propinas, em subornos etc.

Revendo imagens do Cacheira dando depoimento no Congresso, me chama a atenção que ele tem um ar de sorridente desafio nos lábios. Não sei se ele mantém a mesma empáfia após esses meses de cana, quando, dizem, emagreceu 16 quilos. Suspeito que sim.

Tipos como o senhor Cachoeira, sabem demais, têm uma lista com a relação dos subornados, com os favores que patrocinaram, com as licitações que compraram, os cargos que disputaram, as propinas distribuídas. Ou seja, ele sorri para mostrar a todos que sabe de tudo isso e que, assumidamente, é uma bomba relógio. Se explodir, leva uma multidão com ele. Que o defendam, portanto.

Outros personagens, em outros escândalos, já estiveram em lugar equivalente ao que hoje ocupa o Cachoeira. O marqueteiro Marcos Valério, por exemplo. Mas esse jamais posou com cara de desafio. Aguentou o tranco, deu uns pontapés para garantir que fosse protegido, aquietou-se. Continua solto e, quem sabe, bolando campanhas para futuros candidatos. É do ramo.

Agora, ou eu muito me engano ou esse Cachoeira está fazendo tremer as bases de políticos, burocratas e empresários – a entrada na roda de Cavendish, da Delta, completa o triângulo sem o qual não há corrupção. E se ele, para safar-se das safadezas que promoveu ou das quais participou, resolve indicar seus asseclas (ô palavrinha adequada!)?

Em postagem anterior, resumi minha perplexidade dizendo que no Brasil não existem políticos honestos, existem políticos que ainda não foram investigados.

Sabe disso a maioria dos políticos e partidos e empresários nacionais. Pelo que estarão todos com as calças nas mãos, expressão que meu pai usava com uma malícia que só ele era capaz de sugerir.

Quanto a mim, desejo que o Cachoeira os carregue.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Que língua é essa?


A primeira vez que ouvi falar em “voucher” foi numa conversa com uma dessas telefonistas de hotel com voz de robô assexuado. Fiz uma reserva, mandei comprovante de depósito e ela me disse que me mandaria o voucher.

Distraído, levei um susto. Eu não havia encomendado nada, muito menos uma coisa que se chamasse voucher. Perguntei do que se tratava, mas ela apenas repetiu:

- O voucher, Senhor. Estaremos enviando o voucher.

Considerando o gerundismo da moça, me ocorreu que deveria ser palavra inglesa. Como minha lembrança era vaga, fui ao dicionário e encontrei:

Voucher – sentido (1) responsável, fiador. (2) comprovante, prova. (3) recibo, certificado, certidão. (4) vale, ticket. Comprovar, dar recibo, certificado ou comprovante. Comprovar com documento.

Tratava-se, portanto, do antigo e conhecidíssimo comprovante, o simpático recibo desde lusitanas eras. Acontece que a palavrinha virou outra das pragas de linguagem que correm pelo Brasil corporativo. Hoje mesmo, numa ligação a um banco, me pareceu reencontrar a mesma telefonista-robô com voz assexuada.

- O senhor vai estar recebendo um voucher – me disse ela.

Fico pensando por qual razão trocar o liso, claro e direto recibo ou comprovante por um trambolho como voucher? Não entendo. Não houvesse palavra correspondente em português, tudo bem. Mas, recibo, comprovante, nada mais corriqueiro, prático e simples. Voucher?

Esclareço aos leitores que não faço parte dos puristas que querem impedir a incorporação de palavras estrangeiras ao vocabulário nacional. Nada a ver com o senador Aldo Rebelo, esse triste dom Quixote da pureza do português castiço, nem com um certo ex-governador do Paraná que pretendia decretar o fim de estrangeirismos em anúncios e placas. Sei, por pensar com meus próprios neurônios, que todas as línguas fazem incorporações, aquisições, canibalismo saudável e promíscuo, e que, analisadas com o passar do tempo, todas roubam umas das outras. Nenhum purismo patrioteiro, portanto.

Mas sei também que existem as bobagens, os cacoetes marcados por mera ignorância ou simples pedantismo. No caso, algum executivo gerente de hotel dos EUA deve ter vindo fazer palestras corporativas no Brasil e, no meio do falatório, largou um voucher – que é o comprovante lá deles, não mais que isso – e os deslumbrados daqui descobriram o voucher. A tribo tupiniquim tem dessas coisas.

Certa ocasião, um amigo me provocou defendendo o uso do verbo deletar em português sob a alegação de que não tínhamos palavra correspondente. Era um rapaz inteligente e simpático, mas iludido pela informática. Tive que explicar a ele que havia – além do óbvio apagar – o verbo delir, que significa exatamente apagar, ou seja, exatamente o mesmo que deletar. E mais: deletar tem origem latina. Nunca ouvira falar em “delenda Cartago”? E deleatur? Enfim, pelo que me dizem, deletar vem do latim deletus, particípio passado do verbo deleo. Onde a língua inglesa foi buscá-lo.

Nada contra. Como temos os verbos apagar e delir, deletar só entrou em circulação por conta de uma tecla de computador. Tudo bem. Soa como latim.

Enfim, se é preciso entender que as trocas entre línguas diferentes são justíssimas, é preciso também entender que a língua é um campo de batalha. Tanto é legítimo fazer aquisições, como é legítimo lutar contra aquisições tolas.

O mesmo acontece com palavras portuguesas que, por automatismo, passam a ser uma espécie de cacoete, como no modismo chatíssimo do uso de “diferenciado”. Ora, diferenciado quer dizer apenas diferente, não mais. No entanto, o uso atual força a palavra a significar que se trata de uma qualidade superior. Comentaristas de futebol adoram dizer que um craque é diferenciado. Ora, um perna-de-pau também é diferenciado por ser diferente dos demais em sua ruindade com a bola.

No mínimo, esses tipos que usam demasiado a palavra diferenciado me parecem muito pouco diferenciados. Os que usam voucher, idem.

Não passo recibo.