domingo, 30 de dezembro de 2012

Os brasileiros que nos orgulham



Niemeyer - desenho Roberto Gomes (2005)


Estávamos tão acostumados com a presença de Oscar Niemeyer que chegamos a nos convencer de que era imortal. Não no sentido figurado, daquela imortalidade postiça de que pensam gozar os acadêmicos, mas duma imortalidade de fato e de direito, em carne e osso. Ele seria imorrível, digamos. Mas, cumprindo a premissa do silogismo que postula ser todo homem mortal, Niemeyer morreu.
E lá ficamos nós numa orfandade avassaladora.
Mas de que orfandade se trata? Não da perda de um homem e de seus feitos, mas de toda uma época e das realizações que ela tornou possíveis. Por exemplo: um tempo em que ainda éramos adolescentes e havia um presidente inteligente, de humor refinado, além de bom dançarino de valsas, em contraste com as carrancas ferozes dos militares da época da ditadura. Ou em contraste com outras carrancas posteriores, ora boçais, ora vociferantes, ora de boca dura.
Um amigo arquiteto anda desde então inconsolável, suspirando saudoso a lembrar de fatos relacionados ao período em que entrou para a faculdade. O motivo é simples: foi fazer arquitetura inspirado em Niemeyer.
Da arquitetura à bossa nova, quantas vocações nasceram naquele momento? Confesso que também imaginei um dia fazer arquitetura, mas descobri que, além de ter outros interesses, meu único ponto a favor era o gosto pelo desenho. Para chegar ao curso de arquitetura deveria enfrentar provas de física e matemática. Fui cantar em outra freguesia.
Mas a morte de Niemeyer não pode ser lamentada como fato em si, já que ele viveu gloriosos 105 anos e sua vida foi completa. E não se pense que não lamento equívocos seus, o mais grave sendo a ortodoxia marxista, o que o coloca fora de foco em certos momentos. O que me veio à mente não foi nenhuma frustração pessoal ou profissional, mas uma frustração mais profunda, que não deve ser só minha. Fiquei pensando em coisa mais incômoda.
Temos na história brasileira figuras notáveis que merecem respeito e reverência. São pessoas que unem talento e dedicação, dons naturais e disciplina, além de serem, na sua atuação profissional e pessoal, absolutamente íntegros, seres humanos de verdade. E, sendo seres humanos de verdade, têm seus eventuais defeitos, sem o que não seriam verdadeiros. 
Foi quando comecei a fazer uma lista – sujeita a contestações como qualquer lista do gênero, os leitores fiquem a vontade – destas figuras que contradizem o complexo de vira-lata que, segundo Nelson Rodrigues, assola a mente dos brasileiros. Dou, por falta de espaço, um resumo dessa lista.
Pensem na literatura. Além do onipresente Machado de Assis, temos Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Não é pouco. Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto. Que tal Guimarães Rosa? E Graciliano Ramos e Cecília Meireles?
Na música, Noel Rosa, Pixinguinha e Cartola. Villa Lobos, é claro. Tom Jobim, João Gilberto, João Donato, Moacir Santos, Vinicius, Baden. A Tropicália. Caetano e Chico e Gil e Aldir Blanc e João Bosco. O rock brasileiro. Pensem na quantidade de nomes que deixo de citar por falta de espaço.
Não só na criação artística temos figuras admiráveis. Há sociólogos como Florestan Fernandes, antropólogos como Darcy Ribeiro, historiadores como Sérgio Buarque de Holanda, além do multifacetado Gilberto Freyre. Diplomatas como o Barão do Rio Branco, empreendedores como o Barão de Mauá. Humoristas como Millôr Fernandes. De quebra, um José Bonifácio e um Oswaldo Cruz.
Chego a um exemplo máximo: o do açougueiro Luís Amorim, que criou uma biblioteca pública no seu estabelecimento, em Brasília, reunindo seus livros e outros que arrematou em doação. Sem tostão de dinheiro público, criou um espaço comunitário de leitura e debates, exemplo que gerou várias iniciativas semelhantes.
O leitor estará se perguntando onde quero chegar. Nem eu sei. Mas, ao pensar em tanta gente capaz de produzir conhecimento, arte, indústria, urbanismo e arquitetura, medicina e educação, me deixa furioso o seguinte: por qual maldição somos obrigados a perder tempo – na vida política e nos escândalos quase diários – com uns tipos de meia tigela, com essas ratazanas que se fartam com dinheiro público, com esses farsantes que engabelam a população, com esses anões morais e políticos que infelicitam o país?
Porque continuamos sendo governados por delinquentes?




segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O jornalismo segundo George Orwell

Georges Orwell e seu filho adotivo. (1946)




"Jornalismo é publicar algo que alguém
 não quer que seja publicado. 

Todo o resto é publicidade."


George Orwell







segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Laurinho e as mulheres





Laurinho Telefone é o especialista em mulheres aqui na Vila, o que é atestado pelo número de encrencas que contabiliza com o sexo feminino. Vários casamentos, namoricos de diversa ordem, tentativas vãs de convivência, encontros furtivos e clandestinos, de tudo ele coleciona – sendo que ao final, leva novos catiripapos em sua atribulada vida amorosa.
Mas ele não tem conserto. Agora, após novo e sonoro catiripapo que recebeu por esses dias, Laurinho anda resmungando pelos cantos, sofrido e melancólico feito um poeta romântico tuberculoso:
- As mulheres são assim mesmo. É da ordem universal!
Pouca gente ainda dá ouvidos a seus lamentos, mas o Cego Tião, dono do boteco e auditor por profissão e destino, pergunta, só para deslanchar o papo:
- Assim como, Laurinho?
- Assim, ora. Assim como elas são. Piscam, dão gingadas, se mostram, sorriem, insinuam, são deliciosas, passam pertinho da gente e... – as mãos da Laurinho, também conhecido pelas encenações mímicas, se perdem no ar.
Cego Tião, limpando o balcão com um pano sujo, resmunga:
- ...e o quê, Laurinho?
- E somem. Fogem. Desconversam.
Laurinho fez um silêncio soturno e olhou longamente pela janela. Cego Tião, que talvez não seja dado a essas sutilezas por não olhar através de janelas, cortou de bate pronto:
- Cê tá muito chorão.
Laurinho deu um salto da cadeira, ameaçou disparar porta afora, mas achou melhor voltar e liquidar com o resto de vodka em seu copo. Refeito com o gole da bebida, disparou na direção de Tião:
- Ô sujeito insensível!
Tião, paciente, cruzou os braços sobre o balcão e perguntou:
- Está bem, o que aconteceu?
- Põe mais uma.
Dessa vez tinha sido a Nildinha, começou Laurinho. Ficaram juntos, foram ao cinema, ao parque, ao bailão de sábado. Três meses de rodeios, dois de amores e, súbito, ela encrencou. Não queria mais saber dele.
- O que será que as mulheres querem, Tião?
Lá no fundo do bar ouviu-se a voz monótona e ébria do causídico da Vila, o dr. Pamphilo Assumpção Datavênia:
- Sabem que o Freud perguntou a mesma coisa? O que querem as mulheres? Was will das Weib? – e arrematou: Não encontrou resposta.
Os dois, ofendidos, desprezaram a intervenção erudita do bêbado e retomaram a conversa:
- Casar. Eu te disse quando você apareceu aqui com a Nildinha. É daquelas que casam. Te cuida.
Era verdade. O cego advertira. Laurinho baixou a cabeça, mas reagiu:
- Pois agora chega! Chega de mulher!
Foi dizer isso e entrou bar adentro uma jovem metida num vestido curto, vermelho, sapatinho branco. Laurinho levantou os olhos e conferiu o restante. Era esplendorosa.
- Que quer essa mulher? perguntou Laurinho, muito cavalheiro.
Ela sorriu. Queria um pacote de café e algumas balas.
- Deixa comigo, disse Laurinho, pulando para trás do balcão. Apanhou o café, colocou as balas num saquinho branco, entregou a ela com um sorriso: Uma nova moradora da Vila merece um atendimento de primeira, declarou.
A moça sorriu. Laurinho pensou: tá no papo.
- Mora aonde?
- Ao lado da farmácia.
- Pois eu estava indo pra lá. Posso acompanhá-la?
Despediu-se de Tião ordenando que colocasse a bebida e as compras da moça na sua conta.



quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Enfim, o Ali Babá entre os quarenta ladrões



Fernandel em Ali Babá e o quarenta ladrões

Está ficando completo o relato da farsa do Mensalão.
Há uma linha muito nítida que conduz, lá do assassinato ao prefeito de Santo André, Celso Daniel, até a ameaça que Paulo Okamotto teria feito a Marcos Valério, passando pela grana do escândalo dos Correios, o Mensalão, etc. etc., não vou repetir a enfiada de crimes que aconteceram pelo caminho.
Ao menos assim me parece, eu que já fui um leitor fanático de romances policiais. Nesse caso, não temos nenhuma demonstração lógico-matemática à maneira de Sherlock, nem uma soma de pistas materiais e empíricas das que abusava Agatha Christie, mas uma nuvem confusa que aos poucos vai se tornando nítida e óbvia, como nos romances de Simenon. Como sempre preferi Simenon, estou satisfeito.
Quando começou o julgamento do Mensalão, escrevi aqui que já tínhamos os quarenta ladrões, faltava o Ali Babá.
Agora não falta mais ninguém.




domingo, 2 de dezembro de 2012

1895, um ano de lascar

Rio de Janeiro em 1895 - Estação D. Pedro II


Rua de Lancaster em 1895












Em abril de 2003 publiquei uma crônica a respeito dos feitos notáveis realizados nesse fantástico ano de 1895, uma das minhas manias, que não são poucas. Acho, contra todos os calendários, que é nesse ano que começa o século XX. Escrevi então que nele surge o cinema, o voleibol, a ideia do descartável, a publicação de um marco da psicanálise, Estudos de Histeria, de Freud e Breuer, e, last but not least, é fundado o Clube de Regatas Flamengo, o que bastaria para justificar um ano cheio de graça.
Volto ao tema para dar vasão a uma pequena parte da montanha de anotações que acumulei sobre esse ano, esperando que os leitores se divirtam tanto quanto os baianos que, aproveitando ocasião tão benfazeja, deram expansão a seu espírito festeiro desfilando o primeiro afoxé em Salvador, chamado Pândegos da Folia. Sete anos após a abolição da escravatura, notem bem.
Falando em baianos, lembremos que um dos mais famosos, Rui Barbosa, volta do exílio em 1895, para onde o mandara Floriano Peixoto, por apoiar a Revolta da Armada. Rui desancava o governo através de artigos que escrevia no Jornal do Brasil e de pronunciamentos na tribuna do senado. Retorna de Buenos Aires já no governo de Prudente de Morais, retomando suas atividades no Senado e exigindo anistia aos revolucionários federalistas e a todos que foram punidos por Floriano. Como se vê, Rui tinha qualidades mais importantes do que conhecer regras gramaticais e escrever frases quilométricas em ordem inversa, o que deu origem ao estilo torturado com o qual nos brindam juízes e advogados, imaginando dar demonstrações de sabedoria e estilo refinado.
Pois é no ano de 1895, ainda no domínio das desavenças políticas, que o Presidente dos EUA, Grover Cleveland, chamado a decidir a Questão das Missões, deu ganho de causa ao Brasil. Daí resultou o nome da cidade de Clevelândia e, mais adiante, uma disputa entre Paraná e Santa Catarina que terminou em grossa pancadaria.
No outro extremo do Brasil, os bubalinos (ou, no popular, búfalos) da raça Mediterrâneo, chegam à Ilha de Marajó vindos da Itália, tendo sido recebidos cordialmente – já que búfalos adoram água – por chuvas intensas, tanto em impetuosidade quanto em duração, obrigando a transferência da procissão dos Passos por quatro vezes. A procissão acabou se realizando na primeira tarde em que houve uma estiada e os búfalos, como se sabe, ficaram por aí e cresceram e se multiplicaram.
Com ou sem chuvas, mas pensando nos tempos tempestuosos que corriam, Fontes, Sóter e Escobar fundariam, em Santos, um centro socialista, responsável pela publicação do jornal A Questão Social, ao mesmo tempo em que o alto preço do café nos mercados internacionais, que neste ano chegou a valer 13$475 a partida de 10 quilos, influenciava diretamente a quantidade de transações imobiliárias.
E, sendo igualmente um ano santo, em 1895 o pequeno grupo que se formara em torno de Amabile Vígolo – mais tarde conhecida como Irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus – que havia se transferido a Nova Trento, recebeu a aprovação do Bispo de Curitiba Dom José de Camargo Barros, com o nome de Filhas da Imaculada Conceição. Irmã Paulina se tornaria a primeira santa brasileira, um encargo dos mais pesados, convenhamos.
Mas esse foi um ano decisivo também para a ciência. Vejam o que escreveu, em 1972, J. Allen Hynek, a propósito da polêmica entre William James e seus colegas de Harvard: “O tempo vingou-o inteiramente. Ainda que ele não pudesse suspeitar nem de leve, o ano de 1895 viria a ser o primeiro dos ‘trinta anos que abalaram a Física’, que viu a ‘teoria da relatividade’, o ‘quantum mecânico’, e muitas novas teorias interligadas derrubarem o alicerce da Física clássica, que era aceita por todos os físicos como a pedra fundamental do universo”.
Não bastasse, em 1895 foi reconhecida a raça alemã de cães Dobermann, talvez para contrabalançar o Pincher, que surge na mesma data. Ignoro as razões, sejam astrológicas, econômicas ou metafísicas, mas o mundo estava em profundo processo revolucionário.
Que ano!