terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Natal e Ano Novo por Bandeira e Drummond






Versos de Natal
-Manuel Bandeira
-
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo  exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
-
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em por seus chinelinhos atrás da porta.
-


Receita de Ano Novo
Carlos Drummond de Andrade


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.





domingo, 22 de dezembro de 2013

André Schiffrin, o último editor?






Diz-se que Napoleão não pode ser considerado um notável general porque, ao invés de executar, resolveu livrar da forca um editor.
Editores sempre gozaram de má fama. Vivem entre a necessidade de fazer dinheiro e a vaidade desmedida de escritores; entre a volatilidade dos leitores e as oscilações do mercado. Entre edições picaretas e a publicação de livros de qualidade.
André Schiffrin, franco-americano, foi editor notável, alcançando o respeito de escritores, revelando e difundindo autores. Navegou na contra-corrente das tendências fáceis da indústria editorial.
Faleceu no dia primeiro de dezembro passado, em Paris, aos 78 anos.
Seu pai, de quem herdou a veia editorial e a formação humanística, foi Jacques Schiffrin, judeu nascido em Baku, Azerbaijão, em 1892. Na década de 1920, em Paris, funda as Éditions de la Plèiade.  Em 1933, transfere-se para a Gallimard, que incorpora sua editora na Bibliothèque de la Plèiade. Foi amigo de uma geração de intelectuais, entre eles Gide, que o ajuda, em 1940, a fugir para os EUA, quando os nazistas impõem a arianização das editoras. Foi demitido através de um bilhete de três linhas assinado pelo senhor Gaston Gallimard.
Jacques refugia-se em Nova York. Publica Aragon, Saint-Exupéry. Une-se à Pantheon Books. Enquanto isso, o menino André cresce e estuda filosofia com Hannah Arendt, frequenta Yale, Cambridge e Columbia. Com a morte do pai, em 1950, assumirá a Pantheon Book a partir de 1963. Seus autores: Hobsbawm, Chomsky, Sartre, Foucault.
Mas a roda da vida gira. Em 1990 a Randon House, que incorporara a Pantheon Book, decreta que essa tem baixa rentabilidade, devendo ser extinta. André resiste. Quando a Pantheon é adquirida pela gigantesca Newhouse, ele e sua equipe pedem demissão.
Assim, em 1992, aos 57 anos, André Schiffrin recomeça. Funda The New Press, independente e sem fins lucrativos. Segundo ele, havia que lutar contra a onda do entretenimento e publicar livros de verdade. Em vinte anos, eis alguns autores: Hobsbawm, Chomsky, Sartre, Bourdieu. A máxima de Schiffrin era ir contra a onda dominante, pois “quando todo mundo concorda, é preciso discordar”.
Em 2004, retorna a Paris e dali dirige sua editora em Nova York. Organiza, publica e escreve livros. Edição sem editores seguido de O controle da palavra, nos quais narra como sua editora foi engolida por um conglomerado. Referindo-se à França, assusta-se com a atonia da mídia, o conformismo dos intelectuais, a ausência de debates. Vale para o Brasil. Aqui, escritores batem palmas e pedem bis em vários festivais, viagens e feiras. Cada um que se salve como puder.
No horizonte, ele vê um futuro trágico: dentro de uns dez anos existirão no mundo três ou quatro editoras. Mas, em O dinheiro e as palavras Schiffrin afirma que não somos impotentes nem estamos condenados a consumir best-sellers, ou jornais miseravelmente subservientes, ou séries televisivas ineptas. E oferece várias alternativas.
Era otimista, ou melhor, era um lutador. Tudo depende do que fizermos.
Eis um editor que mereceria o perdão de Napoleão.



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Mandela, Madiba, Tata, um homem sábio.






Nem sempre serve de consolo, mas tem sido assim ao longo da história.
Só especialistas lembram o nome dos acusadores de Sócrates, que foi condenado à morte. Cristo continua vivo para grande parte da humanidade e é exemplo para muitos, mesmo quando não cristãos. Thomas Morus foi decapitado, mas não sabemos o nome de seu carrasco e ignoramos que rei ordenou sua morte.  Guardamos os nomes de inúmeros mártires, mas não o nome de seus torturadores.
O caso de Mandela é excepcional. Preso por 27 anos, submetido a trabalhos forçados, o advogado que defendia negros e que se tornou guerrilheiro, sobreviveu a tudo e a todos. Morreu aos 95 anos, deixando uma imagem raríssima entre homens públicos. Ele próprio riria se dissessem que não tinha defeitos, mas é certo que suas qualidades - suas tentativas, como talvez dissesse – de acertar foram superiores a seus equívocos eventuais.
Esse homem de sorriso generoso soube representar a população negra e subjugada de seu país, mas, ao chegar à presidência, não se fartou com o poder, não assumiu ares de líder dos povos, não deu as costas às ideias que sempre defendeu, recusou-se a se perpetuar no poder. E também não se tornou um anjo vingador.
Ele alertava que não era santo, mas era sem dúvidas um homem sábio.
Soube conduzir seu país a um reencontro com seu destino. Como é óbvio, a África do Sul não se converteu depois dele num paraíso, mas é agora um país capaz de respeitar a todos sem distinção de raça ou cor da pele. As conquistas continuam, sobretudo o orgulho, partilhado por negros e brancos, de serem sul-africanos.
E, para além de tudo que fez, resta para sempre o exemplo de seus atos e de suas palavras. Nós brasileiros, que somos agredidos, entre outras coisas, pelo caráter tatibitate dos pronunciamentos de nossos dirigentes, temos que reverenciar Mandela e aprender com ele. Por isso selecionei algumas frases que mostram seu caráter, suas convicções e mesmo seu humor. Afinal, ele sorria sempre.


Frases de Nelson Mandela

Uma boa cabeça e um bom coração
formam sempre uma combinação formidável.


Você não é amado porque você é bom,
você é bom porque é amado
.


Não se esqueça de que os santos são pecadores que continuam tentando.


Fofocar sobre os outros é certamente um defeito,
mas é uma virtude quando aplicado a si mesmo
.”


Aprendi que a coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele. O homem corajoso não é aquele que não sente medo, mas o que conquista esse medo.


Nascemos para manifestar 
a glória do Universo que está dentro de nós. 
Não está apenas em um de nós: está em todos nós. 
E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, 
inconscientemente damos às outras pessoas 
permissão para fazer o mesmo. 
E conforme nos libertamos do nosso medo, 
nossa presença, automaticamente, libera os outros.


Sonho com o dia em que todos levantar-se-ão
e compreenderão que foram feitos para viverem como irmãos.


Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.


A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo.


Nenhum poder na Terra é capaz de deter um povo oprimido, determinado a conquistar sua liberdade.


Lutei contra a dominação branca, e lutei contra a dominação negra. Cultivei ideal de uma sociedade democrática e livre,
na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia
e com oportunidades iguais.
É um ideal que espero viver para alcançar.


Deveríamos levar a sério nossas próprias
experiências e desempenho. Em um mundo cínico,
nós nos tornamos inspiração para muitos.



Uma questão que me preocupava profundamente na prisão
 era a falsa imagem que eu projetei involuntariamente
para o mundo exterior; de ser visto como um santo.




segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Janelas de não ver o mundo






Mudei de apartamento e, súbito, o mundo mudou. Embora tenha apenas atravessado a rua, a vista é outra. Daqui é possível bisbilhotar uma paisagem mais distante, tanto na frente como nos fundos. Sendo face norte, produz a impressão de que mudei de cidade.
Mas não foi isso que me chamou a atenção.
As janelas me surpreenderam. Daqui posso ver uma quantidade enorme de janelas nos prédios em volta. Não cheguei a contá-las, nem farei isso, mas passam das centenas.
Umas após as outras, umas acima ou ao lado das outras. Janelas de frente e pequenas janelas ao fundo. Um grande festival de janelas
Mas não foi pelo número que elas chamaram minha atenção.
Chamaram minha atenção pela falta de imaginação. Retângulos de alumínio. Vidros grandes, sem divisões. Duas abas que correm uma sobre a outra, pelo que se dispõe apenas de meia janela. Deve ser mais barato, fico imaginando eu, que nunca havia pensado nas leis econômicas das janelas.
De dia são escuras. À noite deixam pouco à mostra. Um armário, uma geladeira, um canto de mesa.
Mas também não foi isso que me surpreendeu.
Fiquei pasmo com a ausência de gente nas janelas. No máximo vejo um vulto que surge e apaga uma luz ou fecha a cortina. Dia desses vi um gordinho chegar numa das janelas e vasculhar rapidamente de um lado e outro, fechando desinteressado a cortina. Sumiu o gordinho.
Fiquei pensando que algo mudou no mundo. As janelas já foram mais valorizadas. Tinham beirais, saliências, enfeites no alto ou nas laterais, cortinas que se estufavam em gomos, presas a um canto com cordões.
E havia o costume – sobretudo das mulheres, sempre mais curiosas – de se debruçarem nas janelas. Sobre uma almofada, as senhoras repousavam os braços cruzados, permitindo que seus seios também participassem da paisagem.
É claro que não se espera que alguém, no décimo andar, converse com alguém que passe na rua, mas é admirável que ninguém se habilite a bisbilhotar o que está lá fora.
O romancista gaúcho, Josué Guimarães, infelizmente esquecido na atual onda de burrice que assola a literatura nacional, chegou a escrever um romance, Os tambores silenciosos, a partir da janela de onde, munidas de binóculos, sete curiosas solteironas vasculham a vidinha de sua cidade interiorana.
Hoje se perdeu a curiosidade de espiar o mundo pelas janelas. Foram substituídas pela televisão entronizada no centro da sala. É nela que todos espiam o que lhes oferecem como sendo o “mundo”.
Quando perguntaram a Umberto Eco, que foi professor de Filosofia Medieval, por que ambientou O Nome da Rosa na Idade Média ao invés de no século XX, sendo o enredo policial, ele respondeu de forma exemplar. Disse: “É que da Idade Média eu tenho um conhecimento direto, enquanto que o século XX só conheço pela televisão”.
Prevejo um dia em que casas e apartamentos não terão janelas. Haverá um sistema de ventilação informatizado, sugando o ar por pequenos canais, e os moradores se fartarão com as telas de televisão, de celulares, de computadores, de tablets e do que mais for inventado.
Para que janelas?



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Prisão domiciliar só para os nobres? E a plebe rude?


QUANDO AINDA COMEMORAVAM



A cena política brasileira é transparente. Não é necessário muito talento, nem mesmo muito conhecimento, para se perceber qual o sentido político do que se passa. Pode parecer óbvio o que digo, mas é precisamente por ser óbvio que se aplica ao Brasil. Este é um país em que tudo é visível. Vamos diretamente da aparência à essência, sem recurso a dialéticas mais sofisticadas.
Um dos casos que ocupam a mídia nesses dias são as condições de saúde do ex-deputado Genuíno. Ele fez uma operação no coração, recuperou-se, mas apresenta pressão alta. Será um caso grave? Exigirá cuidados especiais? Poderá ser encarcerado ou deverá ficar em prisão domiciliar?
Tudo isso foi debatido e noticiado. O presidente do STF, Joaquim Barbosa, indicou especialistas para darem um laudo médico a respeito.
O outro caso é o de Roberto Jefferson, a respeito do qual também uma junta de médicos se pronunciará. Está convalescendo de uma operação do pâncreas. Tem câncer. Emagreceu muito. É um homem que está visivelmente doente. Também ele deseja permanecer em prisão domiciliar dado seu estado de saúde.
Esses são os fatos que dão margem a noticiário e entrevistas.
Mas do que se trata?
Duas observações, igualmente óbvias e despidas de partidarismo.
Uma: sabemos que nas prisões brasileiras, insalubres, existem inúmeros presos com doenças graves. Alguns têm câncer, outros têm AIDS. A tuberculose anda por toda parte. Doenças respiratórias, da pele, psiquiátricas. São essas as condições de saúde de milhares de presos. Muitos casos são gravíssimos. Isso é sabido. Há muito.
Dois: só agora, quando se está na iminência de ver na cadeia figuras que não fazem parte da plebe ignara, mas que são membros da classe política dominante e poderosa é que se levanta essa questão: deve um preso com doença grave ficar na cadeia comum a todos?
Eis então a evidência. Parece que nunca se pensou no assunto das condições carcerárias. E agora também não se pensa, mas procura-se encontrar um jeito de amenizar a vida de figurões que o STF mandou prender após processo.
É uma repetição, em escala maior, do episódio das algemas acontecido há alguns anos. Só quando engravatados foram algemados é que se ergueram vozes de empetecados advogados vociferando que era injusto, uma injúria, uma forma desrespeitosa de tratar o próximo, sendo que vemos diariamente a plebe rude ser levada a ferros para a cadeia.
Agora, a prisão dos mensaleiros foi estigmatizada de espetáculo midiático. Joaquim Barbosa foi criticado por um mandado de prisão legítimo.
Portanto, esse episódio evidencia que não debatemos a sério as condições carcerárias existentes no país. E mostra igualmente que queremos tratamento diferenciado para nobres e plebeus. O Dirceu quer ser gerente de um hotel. O Genuíno quer ir para casa.
Ora, se de fato as condições de saúde deles, Jefferson e Genuíno, exigir tratamento especial, é razoável o pedido. Mas por que ninguém está pensando em exigir – e nunca se exigiu até hoje – o mesmo tratamento para os plebeus que estão trancafiados com AIDS, tuberculose, câncer de pele, esquizofrenia e tantas outras doenças igualmente graves? Só os nobres comovem os legisladores, os políticos, os partidos?
A desigualdade visceral de condições e de tratamento dada a pobres e ricos, a nobres e plebeus, a engravatados e pés-de-chinelo, é uma marca indelével da sub-democracia brasileira.
Vale a máxima que está no livro A revolução dos bichos, de George Orwell: todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.



sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Aos corruptos, a porta da rua. Lição que vem do Paraguai.



No dia 21 /11, jovens paraguaios protestam contra proteção a corruptos.


Um dos personagens é um senador do Paraguai, do Partido Colorado. Chama-se Óscar Gonzales Daher. Ele entrou no restaurante Bolsi acompanhado de uma mulher. Os dois ocuparam uma das mesas do restaurante, mas não foram atendidos. Um garçom se aproximou e comunicou que eles não eram bem vindos, pois naquele ambiente não eram bem vindos políticos que estivessem pretendendo acobertar corruptos.
E o garçom pediu que se retirassem.
Diante disso, e abaixo de vaias dos frequentadores e gritos de “fuera de acá, ladrón”, os dois tiveram que se retirar.
Vejam que bela lição nos vem do Paraguai e como a onda (mundial) de intolerância com corruptos e corruptores, vem crescendo em todos os lugares. Nas ruas, os jovens paraguaios estão desfilando com cartazes que dizem:
“Si no hay justicia para el pueblo que no haya paz para el gobierno.”
Que maravilha de lema. Perfeito. Que os manifestantes brasileiros usem mais essa arma. Seja nos aeroportos, nas ruas, nas lojas, nos restaurantes, nos shoppings, em prédio públicos, deixem claro – sem quebrar uma só vidraça – que esses tipos não são bem vindos. Que saiam. Já estouraram com os limites da paciência da população.
Por outro lado, uma paraguaia que quase foi miss e é conhecida como a “babá de ouro” de Bogado, recebe, por serviços ignorados e não sabidos, o equivalente a R$ 2,5 ou R$ 4 mil reais. Os senadores manobram e esbravejam que são inocentes e vítimas de perseguição política. Já vimos esse filme antes. Aliás, continuamos vendo.
Hoje, 29 de novembro de 2013, o jornal ABC Color, deu como manchete: “El momento de desafuero de Víctor Bogado” seguido do texto: “La Cámara de Senadores desaforó ayer jueves a uno de sus integrantes, el colorado Victor Bogado, para que sea investigado por la millonaria doble remuneración de Gabriela Quintana, la niñera de oro.”  Ou seja, está aberto o caminho para que sejam feitas investigações sobre a corrupção havida e para o possível impeachment.
Há duas semanas, no entanto, os senadores haviam votado pela não aceitação da licença para a investigação de Bogado. O que fez com que a ira popular subisse o tom e gerasse essa situação inusitada e eficaz: bares, restaurantes, cinemas, proibiram a entrada de senadores que protegem casos de nepotismo. O mesmo acontece em postos de gasolina e de comércio.
"Não se trata só do repúdio a um caso concreto de corrupção, mas à percepção que os políticos podem delinquir com total impunidade", declarou María Cristina Dulce, gerente do restaurante Lido, que tem 60 anos de história e fica a poucos metros do Congresso.
Num país - tal como o Brasil, aliás – onde as hordas políticas sempre levaram a população em cabresto curto, eis uma boa forma de lutar contra os descalabros com a tal “coisa pública”, que deveria receber desses tipos todos os cuidados e não a cobiça de aves de rapina. E o segredo é apenas esse: deixar claro que chega. Expor essa gente à execração pública.
“Fuera de acá, ladrón!”





domingo, 24 de novembro de 2013

Um revólver e um punhal na jugular


Jorge Luis Borges e um punhal.
JORGE LUÍS BORGES SEGURANDO O PUNHAL



Ela ligou apavorada, dizendo que estava chegando. Márcio mal desligou o celular, ouviu a freada do velho Karman-Ghia de Isabela. Se ele não abrisse a porta a tempo, ela teria derrubado a parede.
- Que aconteceu, Isabela?!
- Ele sabe de tudo!
- Ele?
- Antenor. Sabe de tudo.
- Tudo, o quê?
- Sobre nós dois, ora! Tudo.
- Mas o que há entre nós dois?
- Tudo.
- Mas tudo o quê, criatura?
- Que nós nos encontramos, que conversamos. Que temos um caso.
- Mas... por favor, Isabela! Nós não temos caso nenhum.
- Não é o que ele pensa. E eu assinei uma confissão.
- Assinou dizendo o quê?
- Tudo.
Márcio se desesperou:
- Pare com isso de tudo, tudo! Não há nada entre nós... A gente... só... a gente...
- Tá vendo? Só... Isso é tudo. Um caso.
- Mas como assinou uma confissão dessas?
- Você já teve um revólver apontado para o seu peito e um punhal na jugular?
Márcio levou a mão ao pescoço:
- Claro que não!
- Pois é. Um revólver e um punhal. Tinha que assinar.
Márcio jogou-se na poltrona e, quando olhou na direção de Isabela, ela já havia sumido porta afora. O Karman-Ghia roncou furioso e partiu. Antes, ela gritou:
- Ele está vindo! Cuidado!
Márcio procurou um cigarro, um isqueiro, não achou nenhum dos dois. Quando se levantou para ir ao quarto, lá estava ele, Antenor, na porta. Um punhal na mão esquerda, um revólver na mão direita.
- Que é isso?!  - perguntou Márcio, achando que exagerava na retórica.
Antenor avançou, apontando a arma para ele, e ordenou:
- Assina aqui.
- Posso ler?
- Primeiro assina. - Antenor encostou o punhal na sua jugular.
- Mas eu quero...
- Sem perguntas.
As mãos de Márcio tremiam, mas conseguiu ler parte da confissão de encontros, noitadas e farras com Isabela. Antenor lhe estendeu uma esferográfica.
- Você sabe que nada disso é verdade, Antenor.
- Assina.
Assinou e devolveu o papel a Antenor, que guardou o punhal, mas manteve o revólver apontado em sua direção. Antes de sumir porta afora, se desculpou:
- Desculpe-me o mau jeito. E agradeço pelo... favor.
O divórcio saiu rápido. Isabela foi morar com a mãe. Márcio volta e meia passa a mão no pescoço. Antenor casou com Margarida, que acabara de entrar na história.



terça-feira, 19 de novembro de 2013

Língua e Literatura só com prazer




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Um menino de ginásio, lá pelos anos 1950, podia ser assombrado de diversas formas. Para mim, a assombração assumia a forma muito concreta de um nordestino baixote e forte, rabugento e exigente, tido como um sábio da língua portuguesa nos limites municipais de Blumenau. Era o professor Salles, que se obstinava em nos desasnar com doses potentes de análise sintática – sem esquecer as “funções do pronome que”, sobre as quais ele havia produzido um alentado volume de noventa e tantas páginas que éramos obrigados a decifrar e ter na ponta da língua. Com o tempo, graças aos céus, esqueci tudo.
Lembro-me dele diante do quadro-negro – na época os quadros eram realmente negros como era negra minha angústia diante das questões gramaticais. Vejo-o a caminhar de um lado para outro, munido de giz e voz de baixo profundo. Escreve uma longa frase retirada de Camões, Vieira ou Euclides. Depois, tomado de súbita fúria, ele a secciona em pedaços, separando substantivos, verbos, complementos e os temíveis objetos diretos e indiretos. E segue nos massacrando com sua sabedoria enquanto eu desenho.
Apenas desenho. Lembro que eu me perguntava: por que fico desenhando, por que não presto atenção, por que não tento entender? Eu não entendia, eis tudo. Ou melhor: eu não queria entender. Aquilo me parecia um tormento. Só dedico atenção aos desenhos que faço. Vou traçando caricaturas de meus colegas de classe nas folhas de um pequeno bloco e as distribuo para a carteira ao lado – e elas passam de mão em mão. Agora rabisco o professor Salles numa pose característica, a mão esquerda apoiada na mesa e o giz, fisgado pelo indicado e o polegar em pinça, explicando como distinguir orações coordenadas e subordinadas. Não estou entendendo nada. O desenho fica ótimo e me sinto feliz. Meus colegas acabam provocando um tumulto na sala por conta da caricatura que fiz. Todos se atiram sobre o desenho, que vai de mão em mão, e riem muito.
- Gomes! – a voz de baixo profundo enregelou a todos.
Na germânica Blumenau daqueles anos, éramos um sobrenome. Como se fôssemos sargentos. Fui pego.
Fico de pé, catapultado pelo dedo indicador do professor Salles, que me fulmina:
- Venha ao quadro!
Fui ao quadro e o desastre foi absoluto. Depois de não encontrar objeto algum, direto ou indireto, e de trocar uma coordenação por uma subordinação, levei um sermão demolidor diante dos colegas. Além de bagunceiro, fui chamado de displicente, irreverente, causador de badernas e, por ignorar a análise sintática, fui estigmatizado como uma ameaça ao futuro da língua portuguesa.
Nessa época eu começara a ler muito. Revistas que meu pai assinava, jornais que meu pai dirigia como jornalista, livros que ganhei de presente de meu irmão, livros da biblioteca de meu pai – além dos contos que eram publicados nas revistas de moda que minha mãe, costureira, colecionava. Esses contos me encantavam de modo especial, pois vinham acompanhados de ilustrações magníficas, que eu analisava em detalhes, como se as estivesse redesenhando. Desde os 11 anos, se ninguém me chateava o juízo, eu me enroscava numa poltrona e lia. E admirava desenhos. Degustava textos, saboreava desenhos. Como era feita aquela perspectiva, a montanha ao fundo, a árvore, a casinha distante? Como era aquele diálogo que fechava o conto e que me surpreendia? Como era traçado o nariz do personagem malvado do conto, carregando óculos redondos? E como era bela a moça do conto, descrita em quatro ou cinco palavras apenas! Passava horas lendo.
Minha mãe não entendia. Como aquele menino que lia tanto, volta e meia aparecia em casa com um termo na caderneta escolar? Termo, explico, era como se chamava uma bronca escrita pelo professor ou pelo diretor do colégio, espinafrando minhas desatenções, bagunças, preguiça, brigas no recreio, notas baixas em português.
Com o tempo, encontrei um jeito de me livrar das notas baixas. Descobri que, nas provas, a redação valia 60 pontos, enquanto que as questões gramaticais valiam 40. Ora, 50 era nota suficiente para passar de ano. Então, caprichava nas redações. Lembrava a moça do conto, das cinco palavras mágicas, do livro que estava lendo, lascava uma redação cheia de truques e, golpe final, alguma surpresa desconcertante na última linha. O fecho. O fecho era tudo.
A nota da redação, somada a uns trocados obtidos nas questões gramaticais, me salvavam. Pensei que esse arranjo fosse agradar ao professor Salles, afinal ele vivia elogiando, como se fossem deuses do Olimpo, os escritores que eram capazes de contar histórias, comover, expor, dissertar, descrever, narrar. Qual o que!
Ele me devolvia a prova com a nota 60 no topo e me olhava feroz, enquanto seus lábios grossos balançavam ameaçadoramente o charuto exclamativo:
- Gomes, já é hora de tomar juízo!
Nunca tomei juízo. Era o meu fecho, acho.
Mudei de colégio, mas não de tormento. É bem verdade que o novo professor de português era mais simpático. Mas fumava os mesmos charutos fedidos e era implacável com gafes gramaticais. Tratava-se de um franciscano pequenino, alegre, de cabecinha redonda e cuja careca era rodeada por uma coroa de cabelos brancos que ele repuxava com ódio a cada crime gramatical que cometíamos. Chamava-se frei Odorico Durieux. Não escrevera livro algum, mas desenvolvera uma história fantasiosa, que envolvia dois boizinhos e uma carroça. Conforme se colocava uma corda de um chifre a outro chifre dos boizinhos, ou do boizinho à carroça, tínhamos uma oração coordenada ou subordinada, ou algo assim, não me peçam para explicar, jamais entendi.
Anos depois frei Odorico, que era sem dúvidas um tipo admirável, se tornou meu amigo e eu o coloquei como personagem de um romance, Terceiro tempo de jogo. Ele adorou, comprou vários exemplares, distribuiu aos amigos. Quando entregava os exemplares, dizia, mastigando o charuto:
- Veja só, quem escreveu este belo romance foi o...
E então ele declinava um apelido cruel que me aplicara em aula, quando não consegui conjugar algo como o imperfeito do subjuntivo de um verbo qualquer. O apelido eu não revelo, é claro. Quem quiser saber que leia o livro. Frei Odorico recomendaria.
Já mais crescido, nos anos 1960, voltei ao antigo colégio. O Professor Salles se aposentara ou fora para Portugal, onde, segundo dizia sempre, se falava um português escorreito. Agora eu dividia meu tempo entre o trabalho, as aulas noturnas e as bebedeiras com amigos pelas madrugadas. Era onde aprendia literatura, pois nas aulas a que fui submetido até então tudo começava em Vieira e acabava em Olavo Bilac.
A grande dúvida que me percorria a pobre cabeça era se todos os escritores já haviam morrido, tal como os dinossauros, seres só existentes em passados distantes.
Enquanto isso, nós, da turma do chope, íamos lendo o que aparecia pela frente, numa bagunça deliciosa. A novidade absoluta: versos modernistas. Mário e Oswald. Um amigo me trouxe um romance de Knut Hansun, A Fome. Outro me emprestou Érico Veríssimo. Como o Érico traduzira Aldous Huxley, li Contraponto. Graham Greene, Tolstoi, Dostoievski. Mas li também Morris West, o best-seller do momento. E pilhas de romances policiais comprados em bancas de jornal ao custo de um cruzeiro, como anunciava uma mãozinha desenhada com o indicador para o alto. Além disso, não perdíamos oportunidade de sacanear o Paulo Coelho da época, o poeta J. G. de Araújo Jorge, que líamos debochando, nos bares e boates, em jograis malucos, depois que o chope blumenauense havia cumprido sua tarefa embriagadora.
Foi quando aprofundei a exploração da biblioteca de meu pai e encontrei todos os Machados de Assis de que precisava, em edições da Garnier. Já não havia retorno possível.
No colégio, o tédio. A última flor do Lácio, inculta e bela. O professor de língua portuguesa estava ali com a missão sagrada de nos convencer a todos que não sabíamos nada da língua que falávamos desde pequeninos. Não havia verbo no qual ele não descobrisse uma exceção atormentadora com a qual jamais atinávamos. Não havia colocação pronominal para a qual ele não descobrisse exceção. E os professores de literatura seguiam na batida: nos entupiam de sonetos cheios de menções a heróis ou lugares gregos e romanos.
Até que um dia – este era um dos truques que eu cultivava nas redações: toda boa história deve ter, num certo momento, a advertência: até que um dia... – cheguei para a primeira aula de literatura no segundo ano daquilo que então se chamava de científico.
O professor anunciado era um sujeito esquisito, recém-chegado à provinciana Blumenau, vindo de altos estudos não se sabia onde. Era magro, feio, alto, desengonçado, vestia-se com o chamado desalinho, falava alto e, coisa notável, chegava ao colégio pilotando uma lambreta! Tinha fama de poeta e de revolucionário. Nós, da turma dos botecos, ficamos na maior expectativa.
Quando ele entrou na sala, no entanto, levamos um choque.
Lá vinha ele empunhando o mesmo manual de história da literatura que fora usado para nos atormentar durante anos, aquele que terminava em Olavo Bilac e começava com poetas que viviam em bosques idílicos. Ficamos pasmos, já imaginando como abandonar aquela sala rumo a um copo de chope.
Ele se plantou diante da classe, olhando-nos como se fosse um ator de teatro, canastrão e desafiador, e depois de anunciar que era o novo professor de Literatura, ergueu o fatídico manual na mão direita e perguntou:
- Os senhores sabem o que é isso?
Pensamos as piores coisas, mas só um aluno, um chato que tirava 100 em gramática, disse com seriedade:
- É o manual de literatura.
O professor, subindo um grau na sua interpretação, o interrompeu:
- Nada disso! Isso aqui... – o livro se esfarelava em suas mãos agitadas – Isso aqui é uma porcaria! Uma droga!
E arremessou o livro pela janela.
Chamava-se José Curi. Virou nosso herói. O herói da turma dos bares e boates. O herói da literatura. O erudito da lambreta. O campeão mundial de arremesso de manuais pela janela. Para ele, a literatura brasileira a ser ensinada começava em 1922, com Mário e Oswald. Mas escolhera um caminho melhor para nos levar ao paraíso. Para a próxima aula, pediu que trouxéssemos exemplares dos jornais Última Hora e Correio da Manhã, além da revista Manchete. Começaríamos lendo e analisando os contistas e cronistas que aí publicavam. Nelson Rodrigues, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria.
E enquanto nós enchíamos a sala de aula com festivas gargalhadas e aplausos, ele declamou Bacanal, de Manoel Bandeira:

Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro assomo…
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
além de versos e mulheres?
- Vinhos!… o vinho que é o meu fraco!…
Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que não domo!…
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!…
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!


Era tudo que queríamos.
Era o fecho. Além dos botecos, estudar literatura no colégio virara uma tremenda farra.