domingo, 24 de março de 2013

O moleque que viu Zizinho jogar




Eu era um menino. Uns nove anos.
Meu tio Odílio Cruz, que foi jogador de futebol e andou treinando no Botafogo do Rio – foi dispensado ao romper os meniscos, o que na época significava fim de carreira – me levou ao campo do Grêmio Esportivo Olímpico de Blumenau para assistir a uma partida imperdível, segundo me disse, sério, abotoando minha camisa.
- Imperdível! – repetiu, empolgado.
- Imperdível?
- Você vai ver.
E lá estávamos nós naquela tarde de festa, sentados nuns bancos de madeira que foram colocados enfileirados ao redor do campo. Havia, é claro, uma arquibancada. Mas era pequena e nela ficavam os sócios do clube. O nosso banco estava atrás de um dos gols e eu abria olhos bestificados, pois nunca havia visto, de tão perto, um campo, uma trave e tanta gente aglomerada em volta. Parecia mesmo imperdível.
Sentei ao lado de meu tio e, ao lado dele, sentou seu Joanin Longo, sogro de meu tio. Um grupo engraçado, pois eu era muito pequeno, os pés balançando no ar sem tocar no chão, e seu Joanin era um italiano baixinho, redondo e gordo como uma pipa, que ameaçava despencar do banco. Só meu tio guardava aparências de ex-atleta.
Não sei qual foi o resultado do jogo. O Olímpico de Blumenau perdeu, está claro, o que me deixou feliz, pois em Blumenau eu torcia para o outro time da cidade, o Palmeiras.
Eu seguia olhando para todos os lados quando estouraram os fogos. Imperdível: por detrás da arquibancada, abarrotada com torcedores do Olímpico vestidos com camisas grená (a camisa do time era grená e era bonita), subiram rojões, estrelas, explosões. E, ao lado do time da casa, entrou em campo o time convidado, o Bangu Atlético Clube, do Rio de Janeiro, que era um time notável na época. Por ele passaram grandes craques, mas isso não importava naquele momento. Nossos olhos – os meus sendo guiados pelos dedos de meu tio, que não queria que eu perdesse nada do espetáculo – estavam grudados na estrela da companhia: Zizinho.
Achei baixinho. Achei até mesmo meio esquisito, com cara bexiguenta. Achei também que o cabelo estava meio enrolado e despenteado demais. Será que jogava aquilo tudo que diziam? Mesmo assim, aplaudi como todo mundo, aos berros de Zizinho, Zizinho, o que, no sotaque italiano de seu Joanin, ficava cômico.
A nossa frente, os jogadores do Bangu começaram um aquecimento. Lançaram uma bola na área, Zizinho emendou uma bomba. A sorte de seu Joanin, foi ter se abaixado para pegar um graveto que se enroscara em suas calças. A bola passou a milímetros de sua cabeça.
- Sacramenha! exclamou Joanin.
Estádio pequeno, clima interiorano, a cena disparou uma gargalhada geral na torcida. Zizinho veio recolher a bola e afagou a cabeça de seu Joanin, pedindo desculpas.
Depois que a partida começou não consegui tirar os olhos de Zizinho. Era baixinho. Era bichiguento. E eu estava hipnotizado. Meu Deus, como jogava! O que era aquilo? Ele não conduzia a bola, ele não a tocava, ele não pisava no gramado. Ele flutuava feito um bailarino ilusionista e a bola o perseguia por todos os lugares do campo. Quando se encontravam, Zizinho fazia um movimento, e a bola, obediente, se enfiava pelo meio de pernas adversárias, encobria o zagueiro, era levada de um lado para outro conduzida por alguma mágica criada pelos seus pés ou talvez por seus olhos.
- Sacramenha! Dio mio! exclamava Joanin a cada jogada.
- Viu só?! – era meu tio, me estapeando a cabeça – Não disse que era imperdível? Você nunca mais vai esquecer, moleque!
O moleque era eu. Não esqueci. Bestificado, aplaudindo, ali estava a uns poucos metros aquele que meu tio dizia ser o maior jogador de futebol do Brasil.
E, num momento em que Zizinho parecia perdido lá no meio do campo, vi quando ele pediu a um companheiro a bola – que veio por vontade própria, eis do que desconfio – e avançou com ela na direção do gol, costurando a defesa desarrumada e perplexa. Levantamos do banco. Driblou um, dois, enfiou a bola pelo meio das pernas do zagueiro central do Olímpico, um gigante germânico, e, ao quique da bola, deu nela uma chicotada seca, precisa, infalível, imperdível, inesquecível.
Gol de Zizinho.


terça-feira, 12 de março de 2013

O futuro papa e o ufanismo babaca da mídia brasileira




O jornalismo brasileiro sofre de vários males. Um deles: imaginar que tudo no mundo – PIB, índices econômicos, jogos olímpicos, prêmios Nobel – seja algo equivalente a um Fla x Flu, ou, melhor ainda, a um clássico disputado pela seleção canarinho. Talvez alguns dos desmemoriados brasileiros ainda se lembrem da declaração irresponsável e infeliz de Lula diante de problemas econômicos enfrentados pelos EUA quando explodiu a bolha. Como se aquilo nada tivesse com o nosso país. Como se tudo se resumisse a um placar de futebol.
Me parece outra face da doença que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”.
Agora, em tempo de conclave, a coisa está ficando ainda mais ridícula. Imaginam os jornalões (tanto os impressos, os das televisões e das rádios) que tudo se resume em fazer torcida para um Papa brasileiro. Ridículo, pois há questões muito mais importantes a serem tratadas nesse momento da história da igreja católica do que a nacionalidade de um papa. E ignora-se que a Igreja Católica é uma instituição com dois milênios de história, uma monumental estrutura hierárquica, um sólido conjunto de dogmas e crenças, uma produção imensa de textos teológicos e filosóficos, uma criação de costumes e rituais religiosos que estão espalhados pelo mundo inteiro, uma variedade enorme de feitos grandiosos e, também, uma série de fatos comprometedores e mesmo infames que atingem as finanças do Vaticano e o comportamento dos seus sacerdotes.
Enfim, me deixa antecipadamente estarrecido a possibilidade de Dom Odilo Scherer vir a ser escolhido Papa. Teremos que aguentar, em variações as mais babacas, gritos entusiasmados de alguns galvões buenos exaltando a “vitória” brasileira no conclave. Aquilo de Brazil-zil-zil!
Nada contra a possibilidade de ser escolhido um papa nascido no Brasil, desde que se saiba que a nacionalidade de um papa é assunto absolutamente secundário numa estrutura monumental, transnacional e milenar como a da Igreja Católica, que teria direito a uma abordagem menos ufanista e mais competente por parte da mídia.
Enfim, ridículo. Deus que nos livre desse vexame, já que dom Odilo Scherer, venha ou não a ser escolhido Papa, não tem nada a ver com isso.



domingo, 10 de março de 2013

Novilingua para que se desentendam


 

Ela entrou porta adentro dando passadas firmes contra o assoalho de tábuas largas.
- Bom dia!
Todos responderam com continências, exceto um rapazola que acabara de ser incorporado. Pretendendo ser gentil e desejando subir na carreira, ele a cumprimentou:
- Bom dia, senhora gerente.
Ela fulminou o rapazola e disse:
- Gerente, não. Gerenta. Com a, não com o. Entendido, rapaz? Gerenta!
A partir desse dia o rapaz, que aspirava chegar à alguma diretoria, começou a ser apresentado a outras mudanças ainda mais substanciais geradas pelo princípio segundo o qual todos os tratamentos mudariam de final o para a. Questão de gênero. É bem verdade que as mudanças só conseguiram atingir aqueles que eram funcionários da empresa ou que trabalhavam em organismos dependentes dela – quem era de outras empresas, nacionais ou estrangeiras, ou quem não dependia de seus favores, nem dava bola.
Seja como for, as coisas evoluíram. Certo dia, o rapaz, aplicado e obediente como sempre, entrou na sala da gerenta e a encontrou eufórica com as grandes transformações literárias e linguísticas que vinha implantando. Ele pediu licença e disse:
- Eles chegaram, senhora gerente.
Ela se levantou da cadeira, furiosa:
- Eles?!
- Eles, disse o rapaz, percebendo pelo tom da gerenta que cometera alguma besteira; emendou: Os novos funcionários.
- Elas não chegaram, então?
- Não... quer dizer, sim, senhora gerente. Elas também chegaram.
- Então não são “eles”, que é masculino.
- Mas... – o rapaz engasgou.
Ela se aproximou dele e disse:
- Aprenda mais essa, meu rapaz. A dominação é tamanha que elas ficam escondidas atrás do eles. Eles acabam predominando. Ao chamar o conjunto de funcionários de eles você está dando maior peso ao masculino. E o feminino, onde fica?
O rapaz, talvez pela pouca idade, não soube dizer onde o feminino ficava.
- Pois fica eclipsado, declarou a gerenta.
- Eclipsada, corrigiu de imediato o rapaz, que era muito hábil em adulações e arriscando levar mais uma bronca.
Ela o olhou irritada, mas concordou:
- Boa observação. O elas fica eclipsada.
- Não seria “a elas fica eclipsada”, senhora gerenta?
O rapaz lhe pareceu demasiado afoito. Mas estava certo, o patife. Ou não? O elas? A elas?
Ergueu um dedo no ar e declarou:
- Elus.
- O que é isso, senhora?
- O novo plural. Elas, eles, elus. Elas para designar agrupamentos femininos. Eles para agrupamentos masculinos. E elus para designar reunião de masculino e feminino. Portanto, fica decidido: “Elus chegaram”. Correto?
- Ou correta, senhora. Afinal, a correção tem sido mais feminina do que masculina, não lhe parece? – o rapazola era insaciável em seu empenho de agradar.
- Não me confunda, rapaz. Correção pode ser também uma coisa masculina, ainda que raramente.
- Ou coisas masculinos, senhora? Quer dizer... acho que... Bom, se decidirmos que será coisas masculinos, devemos dizer coisos. Coisos masculinos.
E ali estavam os dois à beira de inventar uma nova língua. Seria um evento notável diante do qual todo o mundo civilizado se curvaria.
Empolgada, a gerente mandou o rapaz apanhar o notebook e ditou o primeiro texto daquela língua recém-inventada:
“Elus chegaram. U grupu (já que inclui mulheres e homens) era formadu por três homens e três mulheres...
- Não seria o caso de colocar as mulheres antes, senhora?
A gerenta deu mostras de se irritar com a interrupção, mas corrigiu-se:
“...formado por três mulheres e três homens. Elus traziam algumus coisus. Umas femininas: duas malas, uma pasta, uma bandeira. E coisos masculinos: três chapéus, dois camisos e um caneto. No entanto, por uma dessos coisos masculinos, os homens haviam esquecido o principal, os relatórios. (Relatório é coiso masculino, riu a gerenta pela primeira vez naquele dia.) Elus ficaram muito atrapalhados, mas por culpa – ela se perguntou: por que culpa deve ser feminina? – e emendou: mas por culpo deles.”
Terminado esse ensaio de clara e definitiva (clara e definitiva são coisas femininas, como se sabe) separação e determinação de gênero, elus – a gerente e o esforçado rapaz – perceberam que não havia como continuar. Melhor seria fazer uso de duas línguas, não de uma só que tentasse superar as ambiguidades da língua tradicional. Uma língua para mulheres e outra para homens. Seria melhor. Trabalhariam nisso. Duas línguas.
- Mas perguntou o rapaz, temeroso e perplexo (que são, diga-se, algumos característicos masculinos), isso não causaria uma grande confusão entre homens e mulheres?
A gerenta deu com a mão no ar:
- Ninguém vai notar. Elus nunca se entenderam mesmo.

sábado, 9 de março de 2013

Manuel Bandeira e Orestes Barbosa: o verso mais bonito da nossa língua



Manuel Bandeira
Orestes Barbosa no traço de Nássara


Porque hoje é sábado, destaco uma preciosidade da música popular brasileira, enquanto chove lá fora e a tristeza não vai embora.
São os versos de Orestes Barbosa em Chão de estrelas. A respeito deles escreveu Manoel Bandeira, em 1956, no Jornal do Brasil:
“Se se fizesse um concurso para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes em que ele diz: ‘Tu pisavas nos astros distraída...’”
Os leitores do blog, mesmo os desafinados, pois eles também tem um coração, podem cantar baixinho:

“a porta do barraco era sem trinco
mas a lua furando nosso zinco
salpicava de estrelas nosso chão
e tu pisavas nos astros distraída
sem saber que a ventura desta vida
é a cabrocha, o luar e o violão.”


Esse Bandeira, sempre muito Manuel. E nada mais Barbosa do que o Orestes.



quarta-feira, 6 de março de 2013

João Cabral de Melo Neto e A educação pela pedra



João Cabral de Melo Neto

Em entrevista dada em maio de 1994, João Cabral mostrou lucidez a respeito de seu modo de pensar/fazer poesia, e estabeleceu ao mesmo tempo uma distinção finíssima entre suas ideias e sua sensibilidade de leitor – distinção que valeria para todos nós. Resumindo: uma coisa era a poesia que ele fazia, outra era o encontro com a poesia de outros poetas. Os outros poetas poderiam ser muito diferentes dele, como Mário Quintana ou Cecília Meireles, mas ele dizia que a “minha sensibilidade não se fecha a essa gente. Quer dizer, quando eu faço, eu tento fazer uma coisa, mas isso não quer dizer que eu só goste daquilo”.
Portanto, um leitor ou crítico que só aceita o poema que se afina com suas ideias está dando uma demonstração de estreiteza de sensibilidade. De pobreza de sensibilidade. Fazer essa separação me parece essencial para se entender a multiplicidade da experiência estética e evitar os sectarismos das escolas e correntes e seitas estéticas, os detestáveis grupelhos.
Agora, ao escrever, é isso que João Cabral buscava sempre:
“Procuro uma linguagem em que o leitor tropece, não uma linguagem em que ele deslize”.
Abaixo, um poema exemplar, A educação pela pedra, onde tudo isso fica claro. Convido os leitores do blog a tropeçarem à vontade.

A educação pela pedra 

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la. 


* 
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra, 
uma pedra de nascença, entranha a alma.