domingo, 21 de abril de 2013

A monástica paz dos chinelos







Millôr Fernandes certo dia escreveu naquela página dupla chamada Pif-Paf, que publicava na revista O Cruzeiro: “Se o hábito não faz o monge, fá-lo parecer de longe.”
Impossível síntese melhor. Jamais esqueci. Se é verdade que um monge não se reduz ao hábito e nem é determinado por ele, o fato é que, vestido de monge, parece exatamente isso: um monge.
Pois amanheci pensando nisso, a falta de coisa melhor para pensar. Ainda dormindo em pé, enfiei os pés num par de chinelos – muito macio e confortável – e fui pelo apartamento em busca de um copo de água. Tomei a água e comecei a preparar meu café da manhã, uma das coisas mais deliciosas que se pode fazer na vida. Ferver água. Separar o filtro de papel. Retirar o café da geladeira. Colocar o pó no filtro com cuidado, na medida certa. Dispor a mesa, o queijo, o peito de peru, a manteiga. E assim fui, cabeceando de sono, compenetrado nessas tarefas matutinas como um monge que rezasse o breviário.
Sempre me lembro dos frades do internato do colégio Santo Antônio, em Blumenau, onde estudei até que me expulsassem por justa causa. Saíamos do dormitório ainda na madrugada, sonolentos, esbarrando uns nos outros, e íamos em direção ao refeitório. Mas era preciso esperar que as portas fossem abertas. Ficávamos no pátio. Uns se divertiam em dar cascudos nos outros, sendo que eu, pela sonolência talvez, olhava para um corredor externo que corria ao longo do segundo andar, onde ficava o convento.
Lá estavam os frades, indo e vindo, o nariz enfiado no breviário, o capuz marrom cobrindo suas cabeças. Era um espetáculo notável. Andavam lentamente, em passos regulares, e rezavam, embora não fosse possível ouvir suas vozes. Rezavam pelos pecados do mundo, pensava eu, ou pelos próprios pecados, pois já naquela época tinha comigo que monges e frades também acumulam um vasto repertório de pecados.
Hoje não sei se monges e frades rezam daquela maneira quando o dia ainda não se colocou de pé e o sol teima em ficar escondido. Mas aquele desfile piedoso era um autêntico espetáculo de fé; afinal, quem duvidaria da fé de um frade enfatiotado numa batina marrom e tendo sobre a cabeça um capuz solene?
Só interrompia a contemplação daquela andança mística dos frades quando as portas do refeitório se abriam com estrondo, manejadas por duas freirinhas pequeninas que eu veria nos filmes de Fellini anos depois. A trilha sonora era o barulho de xícaras e talheres. A fome vencia o estado de torpor e lá íamos tomar de assalto às mesas onde estavam os bules, as xícaras, as fatias de pão, a manteiga e algum doce, que lá em Blumenau chamam de chimia (do alemão schmier, graxa).
Confesso, para manter o clima religioso, que não era nada disso que eu queria escrever, mas vamos em frente. Queria falar dos chinelos. Esses que estou usando. Enquanto circulo de um lado para outro, arrumando a mesa e fazendo café, percebo que meu passo é curto, lerdo, cuidadoso, um tanto arrastado. Tudo bem, estou ainda sob os efeitos do sono. Mas os chinelos é que determinam o ritmo dos meus passos. Determinam também o modo como me preparo para tomar café. Criam um clima. Estou no meio de um ritual sagrado.
Vou ser mais explícito, pois os leitores, sobretudo se acabaram de abrir o jornal e ainda estão dormitando, terão dificuldade de me entender. Proponho o seguinte: imaginem um general, desses que usam coturnos e vão à guerra. Invadindo o Iraque, por exemplo. Imaginem se retirássemos os seus coturnos e, nos seus pés, colocássemos um confortável par de chinelos.
Fácil de entender. A fúria arrefeceria, os passos de ganso com que marcham desapareceriam junto com qualquer desejo de disparar um tiro. Quem vai disparar canhões com os pés enfiados em chinelos? Eis como, contrariando meu santo predileto, Millôr, podemos demonstrar que o hábito faz o monge.
Com chinelos, os exércitos desfilariam serenos como frades. É verdade que os frades não usavam chinelos, usavam sandálias franciscanas, mas dá no mesmo.
Por isso penso, nessa manhã preguiçosa, que deveríamos distribuir chinelos para uso diário e profissional de militares, executivos, políticos, urbanistas, engenheiros, professores, motoristas, jornalistas, escritores, policiais e cronistas. O mundo seria mais pacífico, menos sanguinário. Por conta dos chinelos.





sexta-feira, 19 de abril de 2013

QUINTANA, POETA MÁRIO, POEMÁRIO





Para dar um refresco no final de semana, lembremos de Mário Quintana, que, segundo consta, até hoje, em madrugadas perdidas, anda pelas ruas de Porto Alegre a procura de mais um verso, um poema, um sapato florido.



Sempre

Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.
Só o que está perdido é nosso para sempre.
Nós só amamos os amigos mortos.
E só as amadas mortas amam eternamente.


PÁSSAROS

As mãos que dizem adeus são pássaros
Que vão morrendo lentamente...


TRISTE MASTIGAÇÃO

As reflexões dos velhos são amargas como azeitonas.


TRISTEZA DE ESCREVER

Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página.
Por isso a palavra escrita é sempre triste...


DOGMA E RITUAL

Os dogmas assustam como trovões
E que medo de errar a sequência dos ritos!
Em compensação,
Deus é mais simples do que as religiões.


OUTRO RETRATO

Ela era branca branca branca
Dessa brancura que não se usa mais...
Mas tinha a alma furta-cor.





sexta-feira, 12 de abril de 2013

Bocage, o poeta



 

Bocage, o poeta maldito. Bocage, o pornográfico. Bocage, o boca suja. Bocage, o piadista grosseiro. Tudo isso já foi dito a respeito de Bocage. Algumas dessas avaliações foram feitas pela Santa Inquisição, que o perseguiu ao longo da vida, curta, só quarenta anos.
Infelizmente, a fama que o nome Bocage alcançou fez dele um ícone: o imoral. A partir disso, todos se sentem dispensados de ler sua obra, pois imaginam que já sabem muito bem o que poderão encontrar lá.
Enganam-se. Olavo Bilac, por exemplo, o considerava “o melhor metrificador da poesia portuguesa” – diz ele, e acrescenta: “Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois dele decaiu”.
A fama de boca suja se deve a seus assim chamados “poemas marginais”. Nunca entendi porque seriam marginais, mas ocorre que neles encontramos o “baixo calão” que apavora puritanos.
Mas vamos a dois sonetos de Bocage em que ele se autorretrata. É um bom começo:

RETRATO PRÓPRIO

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão de altura,
Triste de face, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.


SEGUNDO RETRATO

De cerúleo gabão, não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto:

Dos esburgados peitos quase aberto,
Versos impinge por miúdo e grosso;
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto:

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes:

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto; – é o Bocage!



domingo, 7 de abril de 2013

Desacertos de coração





Numa dessas horas tardias, quando se imagina que tudo está completo, o homem fez uns cálculos estranhos e concluiu que progredia. Não resolvera problemas de ordem internacional, não colocara o ponto final na polêmica entre a teoria quântica e a da relatividade, nem conseguira fazer com que o cachorro da casa vizinha latisse menos nas noites de lua. Mas conseguira alguns feitos: consertara o armário da cozinha, colocara a correspondência em ordem e dormia melhor.
E aprendera a assobiar, o que jamais fizera ao longo da vida.
Quando se deu conta de que estava assobiando – numa manhã fria, a caminho da padaria – sentiu uma emoção enorme. Por alguns momentos nem percebeu que estava assobiando. Era uma canção modesta, simples e repetitiva – mas era música, pensou em sua defesa. Em inúmeras ocasiões tentara aprender a assobiar. Inútil. Perdia-se num sopro desconexo, fragmentado. Era atroz, pensava ele. E desistia. Mas não para sempre. Tempos depois, voltava às tentativas. Ficava muito longe de um desempenho sequer razoável, mas não se dava por derrotado. Um dia, quem sabe.
Pois nesse dia conseguiu. Foi há uma semana. A caminho da padaria, o assobio, meio desajeitado, inventou uma melodia e fluiu por conta própria. Ele comprou pão, escolheu manteiga e queijo assobiando sem parar, pouco se importando se escandalizava os circunspectos fregueses a sua volta. Escandalizava? Alguns, talvez. De certo pensavam que ele era um maluco ou um exibicionista. Pois que se danassem. Assobiava e estava resolvido. Havia vencido uma grande batalha em sua vida e não é todos os dias que se pode comemorar uma vitória desse porte.
Colocou o assobio numa lista na qual anotava suas grandes e pequenas vitórias.
Com tantos feitos a seu favor e um sorriso nos lábios, ele se debruçou na janela do apartamento e, assobiando o que poderia ser uma modinha antiga, pensou que lhe faltava outra conquista, talvez tão importante quando a questão do assobio. Tratava-se de seu coração. Nada a ver com sístoles e diástoles, pressão sanguínea ou níveis de hemácias e outras dessas coisas que fazem a alegria dos médicos. Não pensava no coração, órgão descontrolado e aflito, massa pulsante e agoniada que bombeava a vida.
Como conquistara, com o assobio, o direito de pensar coisas banais, estava atento a esse coração imaginário e volátil, do qual os poetas tanto falam e que ele pensava já não ter mais em seu peito. Os órgãos imaginários têm esse parentesco com aqueles que a vã fisiologia examina empiricamente. Deixados de lado, se fragilizam, atrofiam, viram fumaça.
Além disso, quando se trata de coração, lá pelas tantas a gente, distraidamente, deixa que ele se exponha ao ar livre e, ao invés de afagos, recebe um golpe de punhal de prata.
Assim imaginava seu coração quando, em horas tardias, dessas que parecem anunciar a morte ou o renascimento, tentava entender como aprendera a assobiar. Olhou para a rua deserta, escutou o latido do cachorro na casa vizinha, e se perguntou:
- Y ahora?
Outra de suas manias. Quando metido em algum impasse, sacava seus poucos conhecimentos de outras línguas e lascava uma expressão salvadora. Pulava do inglês para o francês, desse para o espanhol, sendo que raramente se aventurava no alemão.
Foi quando descobriu um gato tardio exercitando suas habilidades em cima do muro. Agora o cachorro enlouquece, pensou. O gato avançou pelo muro, atravessou a lateral do terreno, mirando com desprezo o cachorro que se jogava de um lado para outro, esgoelando-se na tentativa inútil de alcançá-lo.
Quando o gato já ia longe e o cachorro, exausto, parou de latir, ele fechou a janela e decidiu que suas tarefas naquele dia estavam cumpridas. Melhor dormir. Mas dormiu pouco. Acordou duas horas depois, com o coração aos pulos, como um cão que latisse para a lua, em meio a um sonho no qual um gato atrevido, ronronando a melodia que ele assobiara a caminho da padaria, repetia, galhofeiro:
- What do you want… want… want?
O problema é que conhecia pouco a língua inglesa, enquanto seu coração, esse, ignorava até mesmo as línguas nas quais ele era capaz de assobiar.




quinta-feira, 4 de abril de 2013

Feliciano, o infeliz





Infelizmente, a figura nacional de destaque no momento é esse infeliz Feliciano, o assim dito pastor Marco Feliciano, deputado federal.
É curioso como certas pessoas conseguem se tornar em determinadas situações uma síntese dos equívocos do país. No caso desse deputado juntam-se várias coisas: em primeiro lugar, é um desses tipos toscos que estufam o peito, orgulhosos das vitórias que imaginam ter conquistado na vida. É aquilo que o escritor Jamil Snege sintetizou numa fórmula de admirável ironia: “como eu se fiz por si mesmo”.
Outra coisa: ele ostenta, sem subterfúgios, a carga de ignorância autocomplacente, ao assumir preconceitos arcaicos: a arrogância religiosa, o preconceito racial e o preconceito contra homossexuais.
Começou emitindo juízos sobre os negros, colocando em evidência a velha crença que viceja entre adeptos de seitas evangélicas: os negros seriam filhos de Caim, condenados a sofrer vida afora sem remissão, inferiores por culpa de seus próprios pecados. Depois, avançou contra os homossexuais cujas práticas de relacionamento – e, segundo ele, desvios de caráter – causam no deputado verdadeiros delírios e fantasias que Freud poderia explicar. Já ouvimos essa cantilena anteriormente. Finalmente, ao declarar que a comissão que está presidindo no momento era anteriormente presidida pelo próprio Satanás, dá um nó entre seus preconceitos e suas crendices. É um pobre homem que divide a terra entre os eleitos e os perversos – assim como divide os céus entre Deus e o Diabo.
Mas não é só. Ao se apegar com unhas e dentes a seu cargo de presidente de uma comissão criada para defender direitos humanos de minorias perseguidas, o infeliz Feliciano atingiu o ápice como síntese das mazelas nacionais.
Como se sabe – ou se deveria saber – o Brasil se caracteriza entre outras coisas pelo fato de ser um país no qual ninguém renuncia a nada. O sujeito pode ser pego com a boca na botija, com a mão na cumbuca, e mesmo assim não se dá por achado. Pode ter recebido propinas, comissões, caixa dois, desvio de dinheiro público, se apropriado do que não é seu, que mesmo assim mantém a cabeça alta, a voz tonitruante com a qual vociferar contra quantos o acusam de corrupto. Repilo as acusações, dirá ele. Estou indignado com essa perseguição política, mandará dizer aos jornais. Eu não sabia de nada, repetirá contra todas as evidências.
Aliás, prova de que no Brasil ninguém renuncia a nada é o fato de que a renúncia mais célebre e comentada de nossa história não foi renúncia coisa alguma. Foi uma fraude, uma tentativa de golpe. Quando Jânio Quadros “renunciou” estava na verdade montando uma cena dramática que, imaginava ele, depois de umas doses mais avantajadas de uísque, faria com que a população se colocasse ao lado dele e o trouxesse de volta ao Palácio do Planalto.
Pois o golpe de Jânio falhou. A população mandou que fosse chatear em outras plagas e seu gesto conseguiu apenas – e ele imaginava que isso jogaria a seu favor – que os militares, temendo o fantasma de Jango Goulart, disparassem desde aquele momento a conspiração que culminou em 1º. de abril de 1964, com o golpe militar.
Pois o infeliz Feliciano faz parte dessa tropa. Truculento e tosco, fazendo da Bíblia uma leitura rasteira e digna de um analfabeto visceral, alimenta preconceitos raciais (em especial contra os negros, já que estamos no Brasil), preconceitos sexuais (isso que se chama de homofobia) e imagina se perpetuar nos seus pequenos poderes contra tudo e contra todos.
Aliás, tive, no curso de Filosofia, muitos professores que eram também padres, com o que fiz um curso paralelo de Teologia, do que não reclamo. E por isso eu me pergunto o que pensariam meus professores de Filosofia – padre João Zelesny, frei Raimundo Vier, Padre Edmundo Dreher e padre Diniz Mikosz – dessas leituras da Bíblia como uma espécie de manual (Deus copidescado por Dale Carnegie) para vencer na vida e acumular riqueza, desse fundamentalismo insano que é um perigo político que está hoje colocando o mundo inteiro em alerta.
Chegamos, então, à última das infelicidades desse infeliz Feliciano. Com sua robusta ignorância, ele alimenta um fundamentalismo cujo limite é fazer do Estado um instrumento da Religião. Ou seja: Feliciano e outros tantos de sua laia são profetas do atraso: amariam voltar a um mundo anterior à Revolução Francesa, anterior a Voltaire e aos Enciclopedistas, anterior à Revolução Industrial, reunificando enfim a Igreja e o Estado.
Já se viu esse filme na Idade Média. Estamos vendo o mesmo filme no Oriente Médio. As consequências são nefastas. Por isso, o espetáculo oferecido por Feliciano e seguidores é grave e perigoso, ainda que ridículo.