domingo, 30 de junho de 2013

O Tahiti será aqui?




 A surpresa dessa Copa das Confederações – realizada em um Brasil em chamas – não foram as passeatas nos arredores dos estádios nem os cartazes que a torcida exibiu. Muitos dos cartazes mostravam críticas contundentes, algumas com fino humor, mas deixavam claro uma coisa: futebol é futebol, ou seja, uma brincadeira. Política é outra coisa. Sem mistura. Embora possam acontecer ao mesmo tempo, o que é bom.
Lembro-me disso porque em 1970, quando o Brasil vivia sob os tacões da ditadura militar, o futebol foi alvo de disputas políticas. De um lado, o ditador de plantão, Médici, queria faturar o prestígio de Pelé no comando de um time fantástico. De outro lado, parte da esquerda tentou impor como dever revolucionário torcer contra a seleção. Debates, artigos e até livros foram gastos nessa polêmica.
Não deu certo.
A seleção – que saiu do Brasil desacreditada e abaixo de vaias, é bom lembrar – entrou nos eixos lá no México e conquistou “90 milhões em ação”, conforme se cantava na época. Ficou uma lição: os ditadores tiraram sua casquinha no prestígio da seleção, mas nada que mudasse os rumos do regime ou da oposição. Mesmo a esquerda mais ardida se rendeu ao melhor time que o Brasil já formou.
Agora, na Copa das Confederações, em meio a protestos que encurralam os governantes de plantão, torcedores se vestem de amarelo e empunham cartazes criticando os rumos do país. É bom que seja assim. Futebol é apenas um brinquedo. Não é bandeira revolucionária nem alienação.
Mas, retornemos à surpresa que mencionei acima.
O grande prazer foi o Tahiti. Time de um pequeno país, formado por amadores, de futebol simples e ingênuo. Levaram uma sacola de gols (vinte e quatro, se não erro nas contas), mas receberam aplausos e carinho da torcida. Num mundo competitivo, pode parecer estranho ou cruel ironia aplaudir um time que perde todas.
Mas não foi nem estranho nem crueldade.
O Tahiti colocou em campo uma das coisas mais deliciosas de qualquer esporte: o prazer de jogar, de brincar, de competir. Ao contrário do que pensam os competitivos, o cerne da dedicação ao esporte não é derrotar o adversário. Alguém será derrotado, é claro. Haverá competição e um só vencedor. Mas o móvel é o prazer lúdico do jogo, a grande farra da brincadeira, a ingênua prática que nos faz retornar à infância.
Foi a materialização da infância do futebol esse time do Tahiti. Jogam como todos nós jogamos um dia quando crianças. Correndo atrás da bola, em gritaria, sorriso no rosto.
Com isso conquistaram a torcida, que não os adotou por serem os mais fracos, como pode parecer. Fossem apenas inábeis, acabariam vaiados. Conquistaram a todos porque, sendo amadores em confronto com profissionais de primeira linha, estavam ali para se divertir. E fizeram isso de cabeça erguida.
Jonathan Tehau, que fez o único gol do Tahiti no certame, terá assunto para se exibir diante de netos e bisnetos. Todos poderão contar que um dia jogaram contra Iniesta, Xavi, David Villa, Valdez, Forlan, Lugano, Suárez. Não é pouco.

O leitor conhece prazer melhor do que ter histórias para contar a seus netos?



quinta-feira, 27 de junho de 2013

Cadê o Lula? Cadê o cara?



Por uma dessas coincidências raras, ontem eu havia conversado com um amigo sobre o sumiço do Lula. Sempre tão falante, mesmo quando não tinha nada a dizer, sempre disposto a gargantear bravatas diante de câmeras, o Lula sumiu do mapa nesses dias em que o Brasil está em chamas, com o povo na rua reivindicando mudanças políticas, econômicas e de costumes.
Seu comportamento confirma o que penso dele: é o avesso de um estadista. Os estadistas são aqueles políticos que, nas crises, se agigantam e têm uma palavra a dizer à nação, não lhe faltando coragem e lucidez, mesmo com ventos desfavoráveis. Basta lembrarmos os exemplos de Abraham Lincoln, Charles De Gaulle, Winston Churchill, Nelson Mandela, Mijaíl Gorbachov. Não se trata de concordar com todos eles – trata-se de reconhecer que são de fato estadistas.
Mas, quando fui escrever sobre o sumiço do Lula, recebi naquele momento um link de um artigo da jornalista Eliane Castanhêde exatamente sobre esse assunto. Fico dispensado de escrever. Eliane é uma jornalista notável, com um texto preciso e precioso, além de ser uma mulher de rara coragem.
Portanto, a palavra é dela. Vai abaixo:



Eliane Cantanhêde (Folha de S. Paulo, 27/06/2013)

Cadê o Lula?
BRASÍLIA - Acossados pela pressão popular, Executivo, Legislativo e Judiciário sacodem e despertam num estalar de dedos, ou em votações simbólicas, uma lista quilométrica de reivindicações adormecidas. Além do tomate, há um outro grande ausente: o ex-presidente Lula.
O Brasil está de pernas para o ar e os Poderes estão atônitos diante da maior manifestação em décadas, mas o personagem mais popular do país, famoso no mundo inteiro, praticamente não disse nada até ontem.
Confirma assim uma sábia ironia do senador e ex-petista Cristovam Buarque: "Tudo o que é bom foi Lula quem fez; o que dá errado a culpa é dos outros". Hoje, a "outra" é Dilma Rousseff, herdeira do que houve de bom e de ruim na era Lula.
Na estreia de Haddad, Lula roubou a cena e a foto, refestelado no centro da mesa, dando ordens e assumindo a vitória como sua. Nos melhores momentos de Dilma, lá está Lula exibindo a própria genialidade até na escolha da sucessora. E agora?
Haddad foi obrigado a engolir o recuo das passagens, Dilma se atrapalha, errática, sem rumo. Nessas horas, cadê o padrinho? O que ele tem a dizer ao mais de 1 milhão de pessoas que estão nas ruas e, especialmente, aos 80% que o veneram no país?
Goste-se ou não de FHC, concorde-se ou não com o que diz, ele se expõe, analisa, dá sua cota de responsabilidade para o debate. Dá a cara a tapa, digamos assim. Já Lula, como no mensalão, não sabe, não viu.
Desde o estouro das primeiras pipocas, afundou-se no sofá e dali não saiu mais, nem para ouvir a voz rouca das ruas. Recolheu-se, preservou-se, deixou o pau quebrar sem se envolver. As festas pelo aniversário do PT e pelos dez anos do partido no poder? Não se fala mais nisso.
Como marido e mulher, companheiros e partidários prometem lealdade "na alegria e na tristeza". Mas isso soa meio antiquado e Lula é pós-moderno. Deve estar se preparando para quando o Carnaval chegar.




quarta-feira, 26 de junho de 2013

O Brasil continua em chamas – o povo nas ruas




Em fevereiro passado Lula e companheiros colocaram na rua a campanha para a reeleição da Dilma.
Houve uma perplexidade geral.
Muitos se perguntaram: como alguém que ocupa a presidência, sem ter ainda dito a que veio, se lança numa campanha eleitoral com tanta antecedência?
Houve quem lembrasse à presidente que obras estavam em andamento, problemas precisavam ser pensados e resolvidos, medidas deveriam ser tomadas, não sendo razoável envolver-se em clima de campanha eleitoral tão cedo.
Advertência inútil.
Confesso que não me surpreendi com essa antecipação da campanha eleitoral.
Em primeiro lugar, lembremos que Dilma estava em lua de mel com as pesquisas que lhe davam índices de aprovação astronômicos.

(Parêntesis: alguém que me lê pela internet já foi pesquisado por algum desses institutos? Tenho um amigo, jornalista há mais de quarenta anos, que costuma declarar que nunca foi entrevistado por instituto algum e que não conhece ninguém que tenha sido. Só isso pode explicar o desacordo brutal entre tais pesquisas e a revolta que se observa nas ruas brasileiras.)

Inebriada com tais índices, Dilma lançou sua candidatura.
Mas, a meu ver, há outra razão, mais profunda e triste, para tal aventura. Ela e seus marqueteiros decidiram pela antecipação da campanha por um motivo rasteiro: eles não sabem administrar, eles odeiam administrar, eles não conseguem parar para pensar em qualquer plano, projeto, estudo, que possa equacionar as questões sociais e políticas do país.
O que fariam no resto de mandado da presidente?
A solução terá saído de algum dos áulicos – a história brasileira registra inúmeros Chalaças em seus anais. Lançada a campanha, fariam o que adoram fazer: politicagem, bravatas, negociatas, imaginando navegar em índices maravilhosos de prestígio junto à população. Como numa imensa campanha publicitária.
Machado de Assis, com a ironia de sempre, disse que “é mais fácil cair das nuvens do que de um quarto andar”. Com as manifestações nas ruas, Dilma e companheiros despencaram das nuvens e descobriram que, embora mais fácil cair das nuvens, não é coisa sem consequências graves.
Imaginavam mais um ano e tanto de campanha, finda a qual seriam reconduzidos ao Alvorada, nos braços de marqueteiros e companheiros.
Agora, o povo nas ruas, a presidente pressionada, chamada afinal a tomar atitudes e agir como é exigido de um governante, dá demonstração de não saber o que fazer. É fácil entender: durante todo esse tempo ocupou-se de programas factoides, de medidas demagógicas, de viagens ao exterior para fazer pose, de acusações desvairadas contra “as elites” e não teve tempo nem gosto nem competência para pensar no que fazer.
E o que havia a fazer é óbvio.
Eu mesmo, que não sou nenhum oráculo, insisti em meus textos em questões básicas: educação caindo aos pedaços, saneamento abandonado, transportes baseado em caminhões, automóveis em infindáveis prestações ao invés de transporte coletivo de qualidade, saúde pública em estado terminal, com doentes em corredores, deitados no chão, falta de leitos, de medicamentos, de equipamentos, de médicos. Tudo que é gritado agora nos cartazes dos manifestantes.
E a prova de que eles não têm gosto nem aptidão para pensar o país, ao trombarem nas reinvindicações da população por melhor saúde, só conseguiram acenar com a tosca ideia de importar médicos. Nada contra, desde que passem por uma revalidação no Brasil, exigência que qualquer país faz. Mas o que farão médicos vindos de outros países se não há leitos, aparelhos, medicamentos, ambulâncias, se o sistema do SUS virou uma baderna?
Quando digo que somos governados por delinquentes, quero dizer, entre outras coisas, isso: eles governam sem pensar, de olho nas próximas eleições, imaginando como vão passar uma rasteira nos adversários e como irão driblar a opinião pública.
A isso eles chamam de “política”. Motivo pelo qual são delinquentes.
Por isso tenho sentido nesses dias um orgulho imenso daqueles que estão nas ruas protestando, desmentindo todos os índices fantasiosos dos institutos de pesquisa, demolindo a miragem do Brasil como uma ilha inexpugnável de felicidade.
O povo nas ruas mais uma vez deu aos governantes em geral – de todos os partidos, é bom frisar – uma sonora lição de civismo, de consciência política e de democracia. Forçaram a Dilma a despir-se de sua pose arrogante e falar a que veio.
Mas, como ironizava o Pasquim: ela falou e não disse.



sexta-feira, 21 de junho de 2013

Brasil em chamas. A revolta está nas ruas.




Milhares de manifestantes caminham pela avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro 

Dias após a eclosão dos protestos que tomam conta das ruas do Brasil, qualquer papo a respeito deve começar afirmando que devemos rejeitar a conversa fiada de que brasileiro não protesta, sendo um povo acomodado. Talvez tenhamos paciência demasiada, é verdade, mas sabemos muito bem o que pensar.
Segundo: rejeitemos o mito de que os jovens atuais não têm consciência política. Mentira. Têm e muita, como evidenciam os protestos desses dias. O que eles não têm são ilusões com partidos ou políticos cretinos, no que mostram notável senso crítico. Eles rejeitam, definitivamente, as práticas políticas tradicionais por serem corruptas, cínicas e trapaceiras.
Dai o caráter apartidário dos protestos. O que não resulta de acaso ou mera birra. Trata-se, conscientemente, de uma recusa da mediação e das práticas dos partidos. O que as ruas estão dizendo é que, em primeiro lugar, estamos cansados da farsa política. Não nos sentimos representados por esses políticos e partidos.
Por outro lado, estarrece – sendo o anverso do que escrevi acima – a absoluta incapacidade dos políticos em entender o que está acontecendo. Tanto que todos se esconderam. Estão atônitos. Eles, que adoram holofotes e se emperiquitam diante de qualquer câmara de TV, sumiram do palco.
Como exceção que confirma a regra, essa infeliz senhora chamada Dilma abriu o bico em reunião fechada para dizer tolices monumentais, demonstrando que o simples fato de ocupar a presidência da República não transforma ninguém em estadista. Disse ela estar atenta e ouvindo a “voz das ruas”, que era preciso pensar no assunto, que havia um Brasil novo emergindo. E, com perversa maldade, insinuou que os protestos eram devidos ao espírito dos “jovens” que, como sabemos, são dados a protestos e anarquias irresponsáveis. Ou seja: essa senhora, de hábito rude e arrogante, está querendo entrar no barco para o qual não foi convidada. E apropriar-se das reivindicações feitas. Como é típico de governantes brasileiros, faz de conta que não tem nada a ver com isso, não sabe, não viu, não tem culpa – pelo contrário, dá a maior força. Faz de conta que não é com ela.
Foi um tiro n´água. Dilma mostrou, mais uma vez, que não tem nível nem capacidade de governar um país. Não passa de uma invenção equivocada de outro sujeito que, tão falante, está novamente em crise de mutismo, tal como nos tempos do mensalão. Pois os dois se reuniram num hotel em São Paulo e, com o desastrado presidente do PT, tal de Rui Falcão, resolveram arregimentar militantes do partido e despachá-los com a missão de se juntar às passeatas com suas bandeiras. O PT – no delírio politicóide lulista – se integraria e talvez assumisse a liderança dos protestos. Deu no que deu: foram escorraçados, eles e suas bandeiras.
Outra surpresa (ou nem tanto): a cobertura das televisões privilegiam os chamados vandalismos, que ocupam a maior parte do tempo de noticiário. Claro, por uma doença antiga, jornalistas acreditam que um gato que atravesse a rua sendo respeitado por motoristas não é notícia; notícia é se ele for atropelado. Mas são cômicas, ao noticiar os vandalismos, as caras escandalizadas que fazem essas mocinhas que apresentam jornalões de TV. E a cara de homens probos que fazem os rapagões que seguram aqueles sorvetes diante das câmeras.
Ora, em primeiro lugar a notícia é outra, ou seja, um país tido como conformista que afinal protesta com todas as letras e em todas as ruas. E de forma pacífica. E pregando a não violência. Em qual evento se colocaria 100 mil pessoas nas ruas de São Paulo sem que algum aproveitador não se intrometesse para pilhar e vandalizar? As televisões fazem, sabemos, péssimo jornalismo. Se vandalismos são inaceitáveis, mais inaceitável ainda é não se dar um tempo equilibrado para as manifestações de 99% dos participantes e 1% de baderneiros infiltrados.
Portanto, sendo apartidário, esse movimento nega as intermediações tradicionais da política. O recado da população é óbvio: estamos de saco cheio, não atrapalhem. O silêncio dos políticos ou suas aparições constrangedoras mostram que eles perderam completamente a capacidade de entender o que se passa. De tanto viverem embriagados com os perfumes e as verbas dos palácios, já não enxergam o que está diante de seu nariz. Muito jornalismo, por outro lado, prefere manipular matéria política e social com o mesmo maquiavelismo dos políticos. Que se analisem as intenções da população e dos manifestantes, que se procure entender o que, social e politicamente, quer dizer tanta gente nas ruas – e, ao mesmo tempo em que se condena qualquer vandalismo, se reconheça que tudo tem limite e que quem provocou esses vandalismos não foram os participantes das passeatas.
Quem gerou essas violências, foram criaturas que, ocupando cargos, provocaram a indignação do povo. Os responsáveis pelos manifestantes recusarem partidos políticos são os próprios políticos. Os responsáveis pela descrença nas ações governamentais são os próprios governantes com seus PACs marqueteiros e seus gastos astronômicos em obras faraônicas ou inúteis – quando não são abandonadas pelo caminho. O estopim que faz com que tomem as ruas não é nenhum espírito juvenil rebelde e irresponsável, mas aquilo que os jovens observam nas escolas, nas ruas, nas estradas, nos hospitais, nas suas casas, nas parcas esperanças que lhes restam diante de um mundo caduco.
O discurso oportunista de Dilma mostra isso claramente. Ela é – junto com o bando de políticos de todos os partidos – a responsável pelo estado dos transportes, das estradas, das escolas, dos hospitais, do saneamento básico, das roubalheiras e negociatas políticas.
Portanto, essa senhora deveria apontar o dedo para o próprio nariz.
Mas isso exigiria dela atitude de estadista, que ela – e nenhum político brasileiro no momento – tem. E, infelizmente, aproveito para repetir o que escrevo e repito há mais de dez anos: somos governados por delinquentes.
Portanto, viva a rebelião das ruas. Faz bem pensar que um novo país seja possível.



domingo, 16 de junho de 2013

Insônia das boas




A medicina refinou o conceito de insônia, pelo que me dizem. Antes, insone não conseguia pegar no sono. Rolava na cama de um lado para outro e não havia contagem de carneirinhos que pudesse ajudar.
Já não é assim. O sujeito continuará sofrendo de insônia, mesmo que caia na cama e durma imediatamente. O insone acordará uma ou duas horas depois e, a partir daí, nada de dormir. Ou dormirá aos trancos. De hora em hora, como já me aconteceu algumas vezes, com uma precisão de minutos. Trata-se de insônia, a falta de nome melhor.
Confesso que durante muito tempo considerei isso de dormir uma enorme perda de tempo. Ainda mais se fizermos aqueles cálculos malucos: um terço da vida (um terço do dia) dormindo e, com oito horas de sono, o sujeito que viveu 90 anos (só para efeito de cálculos, explico) terá dormindo 30 anos.
Pura perda de tempo.
Dizem que certa ocasião Hermeto Pascoal – que não dorme nunca, segundo boatos – convidou o Sivuca para fazer uma daquelas gravações infindáveis em sua casa, onde havia um estúdio. Sivuca topou e se mudou de sanfona e cuia para a casa do Hermeto. Mas como acompanhar o interminável entusiasmo do Hermeto? Lá pelas tantas – ali pelas onze, no máximo – ele abotoava a sanfona e ia dormir.
O Hermeto não se conformava:
- Assim não é possível! O Sivuca acredita em dormir!
Pois é, alguns acreditam em dormir.
O escritor Josué Montello, por exemplo, não acreditava. Dormia de três a quatro horas por noite e passava o resto do dia em atividade febril. Escrevia, lia, discutia, talvez reclamasse de amigos que estavam dormindo. Assim, economizou metade das horas de sono que a medicina lhe prescrevia na cama e, tendo vivido 99 anos, ao invés de ter dormido 33 anos, ganhou 16,5 anos em atividade.
E não é só.
Os médicos dizem que sujeitos que dormem pouco estão mais propensos a enfartos, mortes súbitas, acidentes, cansaço, baixa produtividade – e a viver pouco. Pois o Josué Montello não deu bola para as estatísticas e, além de viver 99 anos, escreveu mais de 160 livros, entre eles um romance magistral, Os tambores de São Luiz.
Claro que é difícil enfrentar uma noite de insônia, sobretudo quando se é vítima de um tormento atroz: nessas horas muitos se perdem em pensar tolices. Pensam na morte, escutam passos no quintal, lamentam um amor perdido, calculam quem terminará antes, o mês ou o saldo bancário.
Mesmo assim me parece que, com um pouco de malícia, é possível driblar a insônia. Primeiro: não tente dormir. O problema de dormir não é seu, é do sono – ele, se quiser, que durma. Segundo: não se afobe. Escute rádio, ouça música, leia um livro – mas não deitado, isso faz um mal danado para a cervical. Ande pela casa, coloque em ordem os CDs, os livros, o guarda roupa. Faça de conta que isso de dormir não é com você. Com essas medidas o caro leitor já estará cochilando. Esqueça o sono que ele, contrariado, irá para a cama em seguida – e você irá junto, sendo que poucas horas bastam, talvez quatro ou cinco.
Você tem mais o que viver, convenhamos.



sexta-feira, 7 de junho de 2013




Harold Bloom é reconhecido como um dos mais competentes e refinados comentaristas da produção filosófica e literária. Estou lendo no momento seu livro “Onde encontrar a sabedoria?” – Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2009 – que é uma obra preciosa, ao mesmo tempo densa e polêmica, na qual a maior dificuldade é a imensa erudição com que o autor inunda o texto de informações e referências cruzadas vindas de todos os lados. Mas não se trata de uma erudição de natureza acadêmica, tal como nas teses e dissertações aborrecidas das universidades, onde as citações não passam de artifícios destinados a impressionar leitores incautos. Além disso, o texto é claro e muito bem escrito.
A erudição de Bloom é visceral, profunda, de quem mergulhou em todos os livros e deles extraiu sua essência. Ler todos os livros, sabemos, é uma impossibilidade física. O fato é que dos principais não lhe escapou nenhum. Na verdade, a leitura dessa obra exige um leitor cuidadoso, ciente de que ler é tarefa dificílima, exigindo cuidados de arqueólogo. Podemos discordar de Bloom – eu discordo de muita coisa – mas a trajetória que o autor nos oferece é rica e fértil. Generosa.
Como brinde – e um convite – ao leitor do blog transcrevo o primeiro parágrafo da Coda que conclui o livro. É uma preciosidade de síntese e perfeição estilística, embora toda a sua sabedoria não dispense a leitura das 329 páginas que a antecedem.
Eis aí:


“William James observou que sabedoria é aprender a ignorar o que deve ser ignorado. O Príncipe Hamlet é o mais inteligente dos personagens literários, mas, de acordo com o teste pragmático de James, o carismático shakespeariano ávido de morte nada tem de sábio. Hamlet nada pode ignorar, e assim estabelece o padrão para todos os que são capazes de iluminar a sabedoria, mas não podem encarná-la. O gênio, ou demônio, de Hamlet insiste em fazê-lo ciente de tudo ao mesmo tempo. Pensando com excessiva clareza, Hamlet perece em consequência da verdade. Seja lá quem formos nosso demônio há de se tornar a nossa nêmesis e fazer de nós mesmos o nosso pior inimigo, tornando-nos incapazes de aprender o que ignorar.”



sábado, 1 de junho de 2013

Joaquim Barbosa e a “Loucura sagrada”


 

É um recurso frequente em obras de ficção. Um personagem pira, o que lhe permite dizer verdades que outros não podem enunciar. A Loucura, nesse caso – não confundir com a noção psiquiátrica – consiste em uma ruptura com as ideias aceitas e bem comportadas, o senso comum acomodatício, o bem pensar politicamente correto e medíocre. Trata-se da Loucura elogiada por Erasmo de Rotterdam.
O personagem que enlouquece – seja o louco genial chamado Quixote ou o louco torturado chamado Hamlet – atravessa uma fronteira e revira o mundo pelo avesso. À maneira de Viramundo, criatura inventada por Fernando Sabino, por exemplo.
É o que ocorre no romance Incidente em Antares de Érico Veríssimo. Os mortos retornam à vida causando enorme reboliço, pois, livres de qualquer temor por já estarem mortos – no Brasil de 1971, que vivia sob tortura e repressão – podem dizer o que pensam, sem as hipocrisias com que estavam obrigados a conviver.
Essa é a Loucura que permite que a verdade seja dita.
Não sei se me explico ou se exagero. Mas as recentes declarações do presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, me fizeram pensar nisso. Disse Barbosa que temos partidos de “mentirinha”. E arrematou: “não nos identificamos com partidos que nos representam no Congresso, nem tampouco esses partidos e seus líderes têm interesse em ter consistência programática ou ideológica. Querem o poder pelo poder”.
É uma declaração límpida e óbvia. Aliás, a verdade – diria o escritor inglês Chersterton – tem essa característica: é óbvia. Sabemos que nossos partidos são de mentirinha, que não têm consistência conceitual, nem projetos programáticos ou coerência ideológica. Querem o poder pelo poder, pois, embora críticos na oposição, são maleáveis quando no poder. Velha verdade brasileira que, no Império, era encenada por luzias e os saquaremas. “Nada há mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”, dizia o político pernambucano Holanda Cavalcanti. Nos dias de hoje, os leitores sabem quem encena essa farsa.
O atual governo reúne apoios os mais conflitantes, com 39 ministérios destinados a acomodar grupos, interesses, partidos de aluguel e políticos oportunistas. O que gera o “toma lá dá cá” a que chamam de “política”. A votação recente da PEC dos Portos mostrou isso com clareza.
Portanto, Joaquim Barbosa, ao “enlouquecer”, disse o óbvio, ou seja, a verdade. O que desencadeou reação furiosa de políticos engomados. Segundo um deles as declarações de Barbosa seriam um “grande equívoco” de “alguém que não tem apreço pela democracia”.  Outro afirmou que “a declaração foi desrespeitosa e não contribui para a harmonia constitucional”.
Infelizmente, esse momento de Loucura de Barbosa foi seguido por um deslize e o imbróglio terminou em tom menor. Uma nota do STF explicou que o seu presidente, ao dizer o que disse, estaria fazendo uma “especulação acadêmica” que não visava criticar o legislativo.

Barbosa recuou. Não esteve à altura de seu surto de Loucura. É uma pena. O Brasil continuará o mesmo.