terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Natal e Ano Novo por Bandeira e Drummond






Versos de Natal
-Manuel Bandeira
-
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo  exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
-
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em por seus chinelinhos atrás da porta.
-


Receita de Ano Novo
Carlos Drummond de Andrade


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.





domingo, 22 de dezembro de 2013

André Schiffrin, o último editor?






Diz-se que Napoleão não pode ser considerado um notável general porque, ao invés de executar, resolveu livrar da forca um editor.
Editores sempre gozaram de má fama. Vivem entre a necessidade de fazer dinheiro e a vaidade desmedida de escritores; entre a volatilidade dos leitores e as oscilações do mercado. Entre edições picaretas e a publicação de livros de qualidade.
André Schiffrin, franco-americano, foi editor notável, alcançando o respeito de escritores, revelando e difundindo autores. Navegou na contra-corrente das tendências fáceis da indústria editorial.
Faleceu no dia primeiro de dezembro passado, em Paris, aos 78 anos.
Seu pai, de quem herdou a veia editorial e a formação humanística, foi Jacques Schiffrin, judeu nascido em Baku, Azerbaijão, em 1892. Na década de 1920, em Paris, funda as Éditions de la Plèiade.  Em 1933, transfere-se para a Gallimard, que incorpora sua editora na Bibliothèque de la Plèiade. Foi amigo de uma geração de intelectuais, entre eles Gide, que o ajuda, em 1940, a fugir para os EUA, quando os nazistas impõem a arianização das editoras. Foi demitido através de um bilhete de três linhas assinado pelo senhor Gaston Gallimard.
Jacques refugia-se em Nova York. Publica Aragon, Saint-Exupéry. Une-se à Pantheon Books. Enquanto isso, o menino André cresce e estuda filosofia com Hannah Arendt, frequenta Yale, Cambridge e Columbia. Com a morte do pai, em 1950, assumirá a Pantheon Book a partir de 1963. Seus autores: Hobsbawm, Chomsky, Sartre, Foucault.
Mas a roda da vida gira. Em 1990 a Randon House, que incorporara a Pantheon Book, decreta que essa tem baixa rentabilidade, devendo ser extinta. André resiste. Quando a Pantheon é adquirida pela gigantesca Newhouse, ele e sua equipe pedem demissão.
Assim, em 1992, aos 57 anos, André Schiffrin recomeça. Funda The New Press, independente e sem fins lucrativos. Segundo ele, havia que lutar contra a onda do entretenimento e publicar livros de verdade. Em vinte anos, eis alguns autores: Hobsbawm, Chomsky, Sartre, Bourdieu. A máxima de Schiffrin era ir contra a onda dominante, pois “quando todo mundo concorda, é preciso discordar”.
Em 2004, retorna a Paris e dali dirige sua editora em Nova York. Organiza, publica e escreve livros. Edição sem editores seguido de O controle da palavra, nos quais narra como sua editora foi engolida por um conglomerado. Referindo-se à França, assusta-se com a atonia da mídia, o conformismo dos intelectuais, a ausência de debates. Vale para o Brasil. Aqui, escritores batem palmas e pedem bis em vários festivais, viagens e feiras. Cada um que se salve como puder.
No horizonte, ele vê um futuro trágico: dentro de uns dez anos existirão no mundo três ou quatro editoras. Mas, em O dinheiro e as palavras Schiffrin afirma que não somos impotentes nem estamos condenados a consumir best-sellers, ou jornais miseravelmente subservientes, ou séries televisivas ineptas. E oferece várias alternativas.
Era otimista, ou melhor, era um lutador. Tudo depende do que fizermos.
Eis um editor que mereceria o perdão de Napoleão.



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Mandela, Madiba, Tata, um homem sábio.






Nem sempre serve de consolo, mas tem sido assim ao longo da história.
Só especialistas lembram o nome dos acusadores de Sócrates, que foi condenado à morte. Cristo continua vivo para grande parte da humanidade e é exemplo para muitos, mesmo quando não cristãos. Thomas Morus foi decapitado, mas não sabemos o nome de seu carrasco e ignoramos que rei ordenou sua morte.  Guardamos os nomes de inúmeros mártires, mas não o nome de seus torturadores.
O caso de Mandela é excepcional. Preso por 27 anos, submetido a trabalhos forçados, o advogado que defendia negros e que se tornou guerrilheiro, sobreviveu a tudo e a todos. Morreu aos 95 anos, deixando uma imagem raríssima entre homens públicos. Ele próprio riria se dissessem que não tinha defeitos, mas é certo que suas qualidades - suas tentativas, como talvez dissesse – de acertar foram superiores a seus equívocos eventuais.
Esse homem de sorriso generoso soube representar a população negra e subjugada de seu país, mas, ao chegar à presidência, não se fartou com o poder, não assumiu ares de líder dos povos, não deu as costas às ideias que sempre defendeu, recusou-se a se perpetuar no poder. E também não se tornou um anjo vingador.
Ele alertava que não era santo, mas era sem dúvidas um homem sábio.
Soube conduzir seu país a um reencontro com seu destino. Como é óbvio, a África do Sul não se converteu depois dele num paraíso, mas é agora um país capaz de respeitar a todos sem distinção de raça ou cor da pele. As conquistas continuam, sobretudo o orgulho, partilhado por negros e brancos, de serem sul-africanos.
E, para além de tudo que fez, resta para sempre o exemplo de seus atos e de suas palavras. Nós brasileiros, que somos agredidos, entre outras coisas, pelo caráter tatibitate dos pronunciamentos de nossos dirigentes, temos que reverenciar Mandela e aprender com ele. Por isso selecionei algumas frases que mostram seu caráter, suas convicções e mesmo seu humor. Afinal, ele sorria sempre.


Frases de Nelson Mandela

Uma boa cabeça e um bom coração
formam sempre uma combinação formidável.


Você não é amado porque você é bom,
você é bom porque é amado
.


Não se esqueça de que os santos são pecadores que continuam tentando.


Fofocar sobre os outros é certamente um defeito,
mas é uma virtude quando aplicado a si mesmo
.”


Aprendi que a coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele. O homem corajoso não é aquele que não sente medo, mas o que conquista esse medo.


Nascemos para manifestar 
a glória do Universo que está dentro de nós. 
Não está apenas em um de nós: está em todos nós. 
E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, 
inconscientemente damos às outras pessoas 
permissão para fazer o mesmo. 
E conforme nos libertamos do nosso medo, 
nossa presença, automaticamente, libera os outros.


Sonho com o dia em que todos levantar-se-ão
e compreenderão que foram feitos para viverem como irmãos.


Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.


A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo.


Nenhum poder na Terra é capaz de deter um povo oprimido, determinado a conquistar sua liberdade.


Lutei contra a dominação branca, e lutei contra a dominação negra. Cultivei ideal de uma sociedade democrática e livre,
na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia
e com oportunidades iguais.
É um ideal que espero viver para alcançar.


Deveríamos levar a sério nossas próprias
experiências e desempenho. Em um mundo cínico,
nós nos tornamos inspiração para muitos.



Uma questão que me preocupava profundamente na prisão
 era a falsa imagem que eu projetei involuntariamente
para o mundo exterior; de ser visto como um santo.




segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Janelas de não ver o mundo






Mudei de apartamento e, súbito, o mundo mudou. Embora tenha apenas atravessado a rua, a vista é outra. Daqui é possível bisbilhotar uma paisagem mais distante, tanto na frente como nos fundos. Sendo face norte, produz a impressão de que mudei de cidade.
Mas não foi isso que me chamou a atenção.
As janelas me surpreenderam. Daqui posso ver uma quantidade enorme de janelas nos prédios em volta. Não cheguei a contá-las, nem farei isso, mas passam das centenas.
Umas após as outras, umas acima ou ao lado das outras. Janelas de frente e pequenas janelas ao fundo. Um grande festival de janelas
Mas não foi pelo número que elas chamaram minha atenção.
Chamaram minha atenção pela falta de imaginação. Retângulos de alumínio. Vidros grandes, sem divisões. Duas abas que correm uma sobre a outra, pelo que se dispõe apenas de meia janela. Deve ser mais barato, fico imaginando eu, que nunca havia pensado nas leis econômicas das janelas.
De dia são escuras. À noite deixam pouco à mostra. Um armário, uma geladeira, um canto de mesa.
Mas também não foi isso que me surpreendeu.
Fiquei pasmo com a ausência de gente nas janelas. No máximo vejo um vulto que surge e apaga uma luz ou fecha a cortina. Dia desses vi um gordinho chegar numa das janelas e vasculhar rapidamente de um lado e outro, fechando desinteressado a cortina. Sumiu o gordinho.
Fiquei pensando que algo mudou no mundo. As janelas já foram mais valorizadas. Tinham beirais, saliências, enfeites no alto ou nas laterais, cortinas que se estufavam em gomos, presas a um canto com cordões.
E havia o costume – sobretudo das mulheres, sempre mais curiosas – de se debruçarem nas janelas. Sobre uma almofada, as senhoras repousavam os braços cruzados, permitindo que seus seios também participassem da paisagem.
É claro que não se espera que alguém, no décimo andar, converse com alguém que passe na rua, mas é admirável que ninguém se habilite a bisbilhotar o que está lá fora.
O romancista gaúcho, Josué Guimarães, infelizmente esquecido na atual onda de burrice que assola a literatura nacional, chegou a escrever um romance, Os tambores silenciosos, a partir da janela de onde, munidas de binóculos, sete curiosas solteironas vasculham a vidinha de sua cidade interiorana.
Hoje se perdeu a curiosidade de espiar o mundo pelas janelas. Foram substituídas pela televisão entronizada no centro da sala. É nela que todos espiam o que lhes oferecem como sendo o “mundo”.
Quando perguntaram a Umberto Eco, que foi professor de Filosofia Medieval, por que ambientou O Nome da Rosa na Idade Média ao invés de no século XX, sendo o enredo policial, ele respondeu de forma exemplar. Disse: “É que da Idade Média eu tenho um conhecimento direto, enquanto que o século XX só conheço pela televisão”.
Prevejo um dia em que casas e apartamentos não terão janelas. Haverá um sistema de ventilação informatizado, sugando o ar por pequenos canais, e os moradores se fartarão com as telas de televisão, de celulares, de computadores, de tablets e do que mais for inventado.
Para que janelas?



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Prisão domiciliar só para os nobres? E a plebe rude?


QUANDO AINDA COMEMORAVAM



A cena política brasileira é transparente. Não é necessário muito talento, nem mesmo muito conhecimento, para se perceber qual o sentido político do que se passa. Pode parecer óbvio o que digo, mas é precisamente por ser óbvio que se aplica ao Brasil. Este é um país em que tudo é visível. Vamos diretamente da aparência à essência, sem recurso a dialéticas mais sofisticadas.
Um dos casos que ocupam a mídia nesses dias são as condições de saúde do ex-deputado Genuíno. Ele fez uma operação no coração, recuperou-se, mas apresenta pressão alta. Será um caso grave? Exigirá cuidados especiais? Poderá ser encarcerado ou deverá ficar em prisão domiciliar?
Tudo isso foi debatido e noticiado. O presidente do STF, Joaquim Barbosa, indicou especialistas para darem um laudo médico a respeito.
O outro caso é o de Roberto Jefferson, a respeito do qual também uma junta de médicos se pronunciará. Está convalescendo de uma operação do pâncreas. Tem câncer. Emagreceu muito. É um homem que está visivelmente doente. Também ele deseja permanecer em prisão domiciliar dado seu estado de saúde.
Esses são os fatos que dão margem a noticiário e entrevistas.
Mas do que se trata?
Duas observações, igualmente óbvias e despidas de partidarismo.
Uma: sabemos que nas prisões brasileiras, insalubres, existem inúmeros presos com doenças graves. Alguns têm câncer, outros têm AIDS. A tuberculose anda por toda parte. Doenças respiratórias, da pele, psiquiátricas. São essas as condições de saúde de milhares de presos. Muitos casos são gravíssimos. Isso é sabido. Há muito.
Dois: só agora, quando se está na iminência de ver na cadeia figuras que não fazem parte da plebe ignara, mas que são membros da classe política dominante e poderosa é que se levanta essa questão: deve um preso com doença grave ficar na cadeia comum a todos?
Eis então a evidência. Parece que nunca se pensou no assunto das condições carcerárias. E agora também não se pensa, mas procura-se encontrar um jeito de amenizar a vida de figurões que o STF mandou prender após processo.
É uma repetição, em escala maior, do episódio das algemas acontecido há alguns anos. Só quando engravatados foram algemados é que se ergueram vozes de empetecados advogados vociferando que era injusto, uma injúria, uma forma desrespeitosa de tratar o próximo, sendo que vemos diariamente a plebe rude ser levada a ferros para a cadeia.
Agora, a prisão dos mensaleiros foi estigmatizada de espetáculo midiático. Joaquim Barbosa foi criticado por um mandado de prisão legítimo.
Portanto, esse episódio evidencia que não debatemos a sério as condições carcerárias existentes no país. E mostra igualmente que queremos tratamento diferenciado para nobres e plebeus. O Dirceu quer ser gerente de um hotel. O Genuíno quer ir para casa.
Ora, se de fato as condições de saúde deles, Jefferson e Genuíno, exigir tratamento especial, é razoável o pedido. Mas por que ninguém está pensando em exigir – e nunca se exigiu até hoje – o mesmo tratamento para os plebeus que estão trancafiados com AIDS, tuberculose, câncer de pele, esquizofrenia e tantas outras doenças igualmente graves? Só os nobres comovem os legisladores, os políticos, os partidos?
A desigualdade visceral de condições e de tratamento dada a pobres e ricos, a nobres e plebeus, a engravatados e pés-de-chinelo, é uma marca indelével da sub-democracia brasileira.
Vale a máxima que está no livro A revolução dos bichos, de George Orwell: todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.