domingo, 30 de março de 2014

Os mitos (e os preconceitos) são invencíveis





Lá vinha eu caminhando quando encontrei um desses amigos ocasionais que fazemos batendo pernas por aí. É um homem sorridente, simpático, gentil. Não sei seu nome e nem ele sabe o meu, o que acontece nesse tipo de amizade ambulante. Terá seus setenta e cinco anos, cabelos brancos, andar apaziguado.
Caminhada é um veículo ideal para se conversar sobre tudo, do tempo que faz aos escândalos do dia. Não raro resolvemos os mais complexos problemas do mundo dando pernadas ao longo de meia quadra.
Meu amigo estava preocupado com o Brasil. Quem não está? Reclamou disso, daquilo, eu o apoiei. Em seguida, lembrou que estrangeiros insistem em ver qualidades no nosso povo, que dizem caloroso, amoroso, acessível etc.
- No que ficamos? me desafiou.
Sem que eu reagisse, emendou:
- Sabe qual é o mal do Brasil?
Me ocorreu que já foi a saúva, mas preferi evitar essa polêmica. Devolvi a pergunta óbvia:
- Qual é?
- Ter sido descoberto pelos portugueses. Se fossem os ingleses... os franceses...
Ouço esse argumento desde criança, mas, tratando-se de uma caminhada, é preciso ser cordial. Não contestei. Aguardei explicações.
O diabo com os mitos é que dispensam argumentos, ou seja, qualquer coisa serve para apoiar um mito que, por natureza, não tem apoio em coisa alguma. Além disso, nenhum argumento derruba um mito. O racismo e todos os preconceitos de etnias e nacionalidades e outros estão nesse caso. Gustavo Corção, criticando essas asneiras, dizia ser possível desenvolver uma teoria segundo a qual os males do mundo decorrem da existência de corcundas.
Eu acrescentaria, sendo óbvio, que o problema começa com a constatação de que no mundo existem mais corcundas do que imaginamos. Como se sabe – e eis um exemplo de como se defende mitos – corcundas são criaturas dissimuladas. Um postulado imbatível.
Assim, já que nos mitos alguém tem que incorporar o mal, é preciso admitir que os corcundas povoam o mundo com sua presença insidiosa.
Por isso, diante do entusiasmo do meu amigo – que não parece se considerar racista e nem mencionou corcundas, registre-se – fiquei quieto e esperei.
- Ah, essa corrupção! Tudo isso vem da colonização portuguesa. Veja quantos portugueses existem em São Paulo!
Fiquei perplexo. Mas continuei quieto.
- Se fossem os ingleses seria outra coisa, sentenciou ele.
Tentei lembrá-lo de países onde houve colonização inglesa, francesa ou belga, nas Américas e na África. Esses países foram saqueados e são miseráveis e atrasados.
- Mas Angola, hein? – me cutucou com o cotovelo – E Moçambique?
Eu estava diante de um autêntico defensor de mitos, para quem predominam as verdades definitivas. Ao contrário do pensamento, no qual tudo está em questão, nos mitos tudo é definitivo.
Argumentei que o problema não era a nacionalidade, mas haver colonizador, o que implica degradar o colonizado, mas ele não me ouviu.
Arrematou, sorridente:
- Nada disso. Os portugueses são os culpados, não há como negar.
Os mitos e os preconceitos são invencíveis. Seu sucesso se deve àquela certeza apaziguadora que só a ignorância consegue proporcionar.




terça-feira, 25 de março de 2014

Minidicionário do Barão de Itararé e de Stanislaw Ponte Preta






O Barão se chamava Apparício Torelly, mas foi como Apporelly que assinou seus escritos antes de virar Barão de Itararé. Já Sérgio Porto só depois de muito escrever é que criou o Stanislaw Ponte Preta. Humoristas têm dessas coisas. Nos dois, aliás, encontramos não apenas humor refinado, mas, o que é quase o mesmo, um senso crítico agudo das mazelas nacionais de fazer inveja. O Barão foi, além de humorista, um inovador  da linguagem jornalística e Stanislaw, além de fazer humor e compor o sensacional Samba do crioulo doido, foi um excelente contista, como se pode ler no livro “As cariocas”.
Enfim, sendo fã de ambos, organizei, para divertimento dos leitores, alguns pensamentos do Barão de Itararé e de Stanislaw Ponte Preta em verbetes.


Barão de Itararé
 
BANCOS. O banco é uma instituição que empresta dinheiro à gente se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de dinheiro.
BARULHO. O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro.
COMPANHIAS. Dizes-me com quem andas e eu te direi se vou contigo.
DATILÓGRAFA. Precisa-se de uma boa datilógrafa. Se for boa mesmo, não precisa ser datilógrafa.
EMPRÉSTIMOS. Quem empresta, adeus.
ESPERANÇAS. De onde menos se espera, daí é que não sai nada.
FÍGADO. O fígado faz muito mal à bebida.
FILHO ÚNICO. Em todas as famílias há sempre um imbecil. É horrível, portanto, a situação do filho único.
FORCA. A forca é o mais desagradável dos instrumentos de corda.
MUNDO. Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato.
NEGOCIATA. Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados.
RELATIVIDADE. Tudo é relativo: o tempo que dura um minuto depende de que lado da porta do banheiro você está.
SABEDORIA. Sábio é o homem que chega a ter consciência da sua ignorância.
SONHO. Nunca desista do seu sonho. Se acabou numa padaria, procure em outra!
TV. A televisão é a maior maravilha da ciência a serviço da imbecilidade humana.
VIDA. O que se leva desta vida é a vida que a gente leva.
VOTO. O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato.


Stanislaw Ponte Preta

CAE. Caetano Veloso confunde velocidade com trepidação.
COMPANHIAS. Antes só do que muito acompanhado.
DIAGNÓSTICO. Quando aquele cavalheiro nervoso entrou no hospital dizendo "eu sou coronel, eu sou coronel", o médico tirou o estetoscópio do ouvido e quis saber: "Fora esse, qual o outro mal do qual o senhor se queixa?"
EDUCADORAS. Mulher expondo teoria sobre educação infantil é solteira na certa.
EMPRÉSTIMO. Mulher e livro, emprestou, volta estragado.
ESPERANTO. Esperanto é a língua universal que não se fala em lugar nenhum.
ESPERTEZA. O sol nasce para todos, a sombra pra quem é mais esperto.
FATOS BRASILEIROS. No Brasil as coisas acontecem, mas depois, com um simples desmentido, deixaram de acontecer.
FREUD. O primeiro nome de Freud era Segismundo. Aliás, não só seu primeiro nome como também seu primeiro complexo.
IMBECILIDADE. Ser imbecil é mais fácil.
JUSTIÇA. O mais perigoso é que já estão confundindo justa causa com calça justa.
LATINÓRIO. Pode-se dizer a maior besteira, mas se for dita em latim muitos concordarão.
LÓGICA. Quem diz que futebol não tem lógica ou não entende de futebol ou não sabe o que é lógica.
MACROBIÓTICA. Macrobiótica é um regime alimentar para quem tem 77 anos e quer chegar aos 78.
RECEITA. Quem não tem quiabo não oferece caruru.
TÉDIO. O imbecil não tem tédio.
TERCEIRO SEXO. O terceiro sexo já está quase em segundo.
TV. A televisão é uma máquina de fazer doidos.
UTILIDADE. Mais inútil do que um vice-presidente.





domingo, 9 de março de 2014

Carnaval - a festa da carne







Alguém poderia perguntar o que Curitiba tem a ver com carnaval, a festa da carne, na minha desabusada maneira de inventar etimologias. Aliás, como em questões etimológicas ninguém se entende – no que está a graça e o fascínio desta ciência que os linguistas atuais desprezam – as interpretações podem ser várias. Entre as opções, uma delas garante que a palavra vem de “adeus à carne” (carne vale, no latim) faz sentido. Antes que os dias de privação e jejum subjuguem a volúpia da carne, o melhor é dar a ela uma ocasião de se esbaldar, pois na quaresma será necessário se abster de carne e de abusos a ela relacionados. Portanto, uma fuzarca prévia e preventiva é necessária. Ou seja, a festa da carne.
E Curitiba com isso?
Pois essa é uma cidade curiosa. Fui descobrir que aqui existem exemplares da fauna humana que professam a crença absoluta em dois dogmas: o primeiro diz que não existe carnaval em Curitiba e, o segundo, que não deve existir carnaval em Curitiba. Trata-se, como se vê, de uma imposição categórica à maneira kantiana. Não existe e não deve existir.
Que se diga que o carnaval aqui é modesto, pobrinho, um tanto triste e desajeitado, chegando ao constrangedor, é aceitável. Mas existe. Há quem se divirta com ele. Há uns cinco anos eu e meu filho resolvemos, para testar máquinas fotográficas recém-adquiridas, fotografar um desfile de carnaval em Curitiba. Acho que cobria uns cem ou duzentos metros de avenida, os participantes eram poucos, o povo nas arquibancadas olhava sem saber o que fazer, mas aqui e ali havia quem tivesse samba no pé, embora o samba propriamente fosse muito fraquinho. Fotografamos esforçadamente, mas o resultado foi desanimador. Não como fotografia, mas como registro daquele desfile melancólico.
No entanto, há carnaval. Estava ali na nossa frente e acho que não se pode pregar que ele não deva existir nessas plagas. É preciso pensar nas razões dessas crenças estapafúrdias.
Os mais jovens podem estranhar, mas há não muito tempo usar bermuda em Curitiba era algo tido como indigno de um autêntico curitibano. Um curitibano da melhor cepa – sobretudo se fosse dado a prendas intelectuais, digamos um professor, um intelectual, um jornalista, um escritor – não deixava as pernocas à mostra pelas ruas. Homens sérios não usavam bermudas. E não gostavam de carnaval assim como não gostavam de praia. Cansei de ouvir discursos acalorados contra os bichos de pé nas areias da praia, contra os incômodos da areia penetrando onde não deveria, contra a violência do carnaval, a frouxidão de costumes, a baderna. Curitiba, a séria, não gostava dessas bandalheiras em seu território.
Com o tempo isso mudou – mas mudou ao modo curitibano. Hoje os habitantes da cidade toleram a bermuda e festejam o carnaval, mas o fazem na praia. Vão todos para o litoral, onde a fuzarca come solta e desenfreada, sendo que a cidade fica vazia para serventia de quem, tal como eu, gosta de cidades vazias, de ruas silenciosas, de cenários desertos. É uma espécie de ritual de preservação do lugar sagrado onde moram. Fuzarca só na casa do vizinho, que pode ser também na Oktoberfest, em Blumenau, espécie de carnaval germânico regado a cerveja.
Mas na minha memória, sempre dispersiva, o carnaval curitibano adquiriu um significado especial, que o liga à minha infância, à minha primeira visita a essa cidade e às fantasias que fabriquei com alguns fragmentos de lembranças.
Vim a Curitiba pela primeira vez quando tinha uns quatro ou cinco anos, não mais. Guardo dessa ocasião uma memória em flashes fotográficos muito nítidos. Não me lembro do conjunto dessa viagem, não sei como aqui cheguei e onde fiquei, mas lembro de duas coisas como se estivessem acontecendo hoje. Fotos nítidas na parede. É só olhar.
Na primeira dessas fotos estão os bondes. Adorei andar de bonde, obrigando minha mãe, a custa de chateações e chantagens, a ir e vir comigo de bonde pela então pacata Curitiba. Mas não me lembro da cidade, só do bonde, de estar sentado naqueles bancos, de ver a cidade saltitando como fotogramas pela janela. Parecia uma história em quadrinhos. Fiquei maravilhado.
A segunda imagem, nítida e cinematográfica, em grande plano americano, se deu a partir de uma sacada do prédio que fica na esquina da Avenida Luiz Xavier com a Travessa Oliveira Bello, onde hoje está o HSBC. Lá estou eu, cabeça enfiada entre as pernas dos adultos, a espiar a rua na qual dança um homem negro, alto e magro, vestido com um terno branco que ainda hoje me ofusca as vistas. Dançando a seu lado, uma bela mulher mulata evolui ondulando uma bandeira no ar ao ritmo da música. Ouço também o samba ao fundo, mas só vejo os dois dançarinos e aquela dança me encanta.
No cruzamento daquelas ruas, cercados pelo povo, eles dançam. Curitiba ficou sendo para mim uma cidade na qual existem festas nas quais as pessoas dançam nas ruas. E na qual existiam os fascinantes bondes. Duas coisas que não existiam na germânica Blumenau de onde eu vinha.
A vida, no entanto, nos dá tombos frequentes, foi o que aprendi ao longo dos anos. Demorei a voltar a Curitiba. Já era então um adolescente espinhento. E na cidade, onde eu esperava circular novamente de bonde, já não havia bondes. Numa rua qualquer, não sei qual, tropecei nuns trilhos inúteis, encaramujados entre paralelepípedos.
Foi meu primeiro aprendizado curitibano. Não é uma cidade fácil.
Mas não desisti. Confessando-me decepcionado com a ausência dos bondes, perguntei a alguém como andavam os preparativos para o carnaval, que seria no mês seguinte.
- Carnaval?
- É. Carnaval.
- Aqui em Curitiba?
- Claro.
- Não existe, menino!
Já não havia mais bondes nessa estranha cidade e, carnaval, pelo tom da resposta, era coisa vista com certa repulsa. Eu levaria mais uns anos para encontrar aqueles que professam a crença dogmática de que carnaval em Curitiba não existe e nem pode existir, mas já senti o clima.
Curitiba não me engana. Sempre foi sincera comigo. A segunda aprendizagem.
Decepcionado, passei novamente alguns anos sem colocar os pés aqui. Meu mundo se dividia então entre Blumenau, lugar de estudos e trabalho, onde eu tomava chope feito um alemão, e Florianópolis, para onde ia durante o verão, passar dois meses na casa de parentes – fazia-se isso naquela época, acho que havia fartura então, uma fartura solidária, não fartura de gente rica.
Foi lá que conheci o Carnaval. Minhas memórias não são nada confiáveis, motivo pelo qual me obstino a escrever a respeito desses tempos passados – quem sabe os coloco um dia em boa ordem. O fato é que na Ilha dos Casos Raros, como seus habitantes se referem à cidade, havia carnaval de verdade. As escolas de samba, Copa Lord e Protegidos da Princesa, sendo que eu torcia pela primeira. E as chamadas Sociedades, Granadeiros da Ilha e Tenentes do Diabo. Nessas havia caros alegóricos mutantes, nos quais de dentro de uma caixa feericamente iluminada saía outra e mais outra até que lá no alto emergia, saindo de uma bola azul cintilante, uma sambista com roupas mínimas. Mínimas para a época, é claro, que os tempos eram outros e pudicos, mesmo no reinado de Momo. Mas era o que bastava.
A música era da melhor qualidade, os compositores eram tipos que encontrávamos no mercado municipal e os sambistas tinham o tal samba no pé. Naquele embalo, íamos todos, de cara limpa e sem fantasias, fumando Continental sem filtro que segurávamos numa das mãos enquanto na outra empunhávamos um tubo de lança perfume, que tinha a serventia de provocar arrepios gelados nas costas e nas pernas das moças, além de encharcar lenços que cheirávamos cantando desembestados.
Nada a ver com o gigantismo das escolas atuais, é claro. Era quase uma festa de salão ao ar livre que girava em torno da praça XV, onde ainda se encontra a figueira centenária que pode confirmar a história.
Como sempre, nesse tipo de universo, existem os tipos míticos. Lembro-me de um deles, um mulato belíssimo, de uma elegância notável, dançarino excepcional, que, tendo tropeçado na conjugação de um verbo numa arguição oral de francês, recebeu da professora o apelido de Avez-vous. Mas, como ocorre com os mitos e as etimologias, há outra versão: recebera o apelido porque, inteligente e falante, gostava de fazer citações em francês. Assim ficou conhecido para sempre, tanto no mundo do samba quanto na cidade, onde faleceu em 2008, atropelado às vésperas do carnaval. Foi compositor, formado em Direito, e dedicou a vida à escola de samba Copa Lord. Quando ele passava sambando a multidão explodia:
- Avez-vous! Avez-vous!
Nada mais surrealista.
Além da praça XV, tínhamos os clubes – o Lira e o 12 de agosto. A grande aventura era conseguir entrar sem ser sócio. Contávamos então com um de nossos amigos que era craque em forjar documentos. Carteirinhas de sócio, por exemplo. Nelas éramos todos maiores de idade. O truque era esperar o início do baile, a música subir a todo vapor, e se enturmar num grupo qualquer que chegava cantando e dançando. Os porteiros não davam conta. Entrávamos.
Pois foi nesse clube que pulei o mais fantástico carnaval de minha vida, não só por motivos carnavalescos, como se verá.
Ocorre que eu tinha uma namorada chamada Di. Não vou dizer que era bonita. Era mais do que isso. Nesse momento de nossas vidas e paixões, as mulheres são alucinantes . Ocorre que eu tinha 16 anos e, ela, 32. No dia primeiro de ano passamos juntos, em Blumenau. Conseguimos embebedar estrategicamente o resto da família e, ao longo da madrugada, ficamos os dois dançando na sala da casa ao som de um LP que girava num toca-discos de plástico, daqueles que abriam uma tampa que era ao mesmo tempo o alto-falante. Ali começamos a namorar. Mas secretamente, é claro e por motivos óbvios. Quando chegou o Carnaval, fomos, não apenas nós dois, mas a família inteira, a Florianópolis, onde ficamos na casa de meus tios.
O Clube 12 ficava num prédio antigo e parecia um caixote doido que se sacudia ameaçador ao ritmo da orquestra. Muita cuba-livre. E uma mistura maluca que usávamos na época, conhaque com guaraná. Ali pelas quatro da manhã, saímos do baile, e percorremos abraçados toda a extensão da imensa avenida Mauro Ramos até a Praia de Fora, que hoje só poderíamos percorrer de madrugada protegidos por um pelotão de guarda-costas. Mas naquela madrugada, éramos únicos no mundo. Todos os apaixonados são únicos no mundo, os últimos habitantes do planeta.
A praia de Fora era então uma praia de verdade. Hoje está aterrada, por lá passa uma avenida que a engoliu. Na época era uma praia rasa, de águas calmas, com uma estreita faixa de areia que separava o mar da fileira de casas de madeira, muitas delas de pescadores. Havia canoas ancoradas por ali. Havia uma claridade suave que nos orientava e, ao mesmo tempo, a sombra de árvores que nos escondiam.
Achamos um lugar de areia seca e firme e foi ali que deitamos. As mulheres dessa época usavam vestidos, o que foi providencial pela facilidade, digamos, de acesso e pela ameaça invasora da areia. Mas era minha primeira vez. Do que eu fazia segredo. Mas não havia como recuar nem como esconder minha atrapalhação. Como seria mesmo? Teria algo a ver com tudo que imaginara solitariamente? Passavam pela minha cabeça os desenhos eróticos das revistinhas do Carlos Zéfiro. E revi páginas de um romance que circulava clandestino entre nós: uma vida de Messalina. Descobri, no entanto, que agora era diferente. Era até difícil. Nem tudo funcionava. Não era bem assim. Entre beijos e abraços, e com a ajuda generosa da Di, afinal consegui entender o como e onde e, fazendo pose de sabido, fiz sexo pela primeira vez.
É claro que depois fiquei confuso – teria sido um fracasso? Ficamos por algum tempo deitados, exaustos, depois de horas de carnaval e uns trinta minutos de sexo, e resolvemos ir para a casa de meus tios, que ficava a três quadras. Levantamos e, abraçados, começamos a caminhar.
Foi quando surgiu da escuridão o vulto de um homem. Apertamos o abraço, assustados. O homem, carregando algo que erguia nas costas com o braço esquerdo, passou por nós e deu com a mão direita no chapéu, dizendo:
- ‘noite!
Respondemos em uníssono:
- ‘noite!
Ele se foi. Era apenas um pescador. Carregava uma rede. Respiramos aliviados. Estivera escondido por ali nos observando? Pouco importava. Voltamos para casa.
Foi o melhor Carnaval de minha vida e não devo ter sido o amante desastrado que imaginei, pois o namoro continuou por mais dois anos, o que me lembra, quando penso nisso, os versos de Neruda, que eu e Di líamos juntos:

Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
Te pareces al mundo en tu actitud de entrega.

Mas, se foi o melhor carnaval de minha vida, foi também o último. Nunca mais fui a nenhum baile de carnaval. Fico pensando por qual razão na afastei de uma fuzarca da qual gostava, mas não consigo entender direito.
Imagino dois motivos.
Com o tempo, passei a fazer parte de um grupo de sujeitos metidos a ler, a escrever, a publicar jornais estudantis, a fazer política, a beber chope industrialmente enquanto travávamos discussões supostamente elevadíssimas. Saíamos do curso noturno ali pelas onze horas e ficávamos até às quatro da manhã pelos botecos, não apenas bebendo, mas preparando a grande revolução que imaginávamos que o país esperava de nós. Deu no que deu. Envolvido com os altos destinos da nação e com a literatura, só reservava tempo, além do emprego no banco e das aulas noturnas, para os encontros secretos com Di. O carnaval deixou de me interessar.
E eis o outro motivo, talvez o principal: era melhor não ir a outro baile de carnaval, pois o encanto daquele jamais se repetiria.
O carnaval sumiu de minha vida. Às fantasias que ele provoca eu não tinha o que opor senão as ilusões perdidas. Talvez por isso ancorei meus sonhos e desacertos em Curitiba, cidade na qual, conforme me haviam advertido, não existiam nem bondes nem carnaval.


NOTA: publico na Revista IDEIAS, editada em Curitiba, textos que refletem sobre fragmentos de memórias e lembranças associadas a eles. Aqui no blog já postei três textos saídos na IDEIAS que antecederam esse que hoje publico: Meu primeiro filme pornôLíngua e Literatura só com prazer e O exílio era aqui - tempos de ditaduraDou essa informação a pedido de alguns leitores do blog.


domingo, 2 de março de 2014

O menino que escrevia cartas de amor





Desde muito cedo o menino escrevia cartas de amor.
Ainda não sabia escrever, é verdade, mas as cartas eram pensadas em sua cabecinha inquieta enquanto acompanhava as evoluções de Ana Maria no quintal da casa vizinha. Sabia seu nome porque a mãe dela não parava de gritar:
- Ana Maria isso! Ana Maria aquilo! Não faça mais isso, Ana Maria!
Aquela mãe era muito gritona. Desgostou tanto dela que por pouco sua primeira carta não foi de amor, mas de reclamação. Que parasse de gritar, diabos, atormentar a filha com tantos berros!
Mas o menino desistiu dessa carta. Inútil escrever para aquela berrona. Além disso, lembrou-se de sua própria mãe gritando:
- Ângelo isso! Ângelo aquilo! Não faça mais isso, Ângelo!
Então ele escreveu uma cartinha breve, um bilhete, dizendo que era preciso paciência com os adultos, sempre irritados. E que ela era mais linda quando sorria e parecia feliz.
Mas um dia os pais de Ana Maria resolveram mudar de casa.
Veio um caminhão, colocaram nele a mudança, cadeiras de pernas para o ar, e o menino guardou a última visão de Ana Maria: da janela do caminhão ela sorriu para ele e jogou um beijo. Ele ficou besta. Jamais olhara para ele, por que fazia isso agora, quando partia? Muito difícil de entender.
Meses depois, ganhou uma bicicleta de presente. Descia a ladeira voando, retornava pedalando aos trancos. No alto da ladeira empurrava a bicicleta, exausto. Foi quando viu uma menina muito bonita na janela de uma casa amarela. Parou junto à calçada. Demorou, mas afinal ela olhou na sua direção e sorriu. Depois, se escondeu.
Merecia uma carta.
Começou falando do inesperado, como nas histórias que sua mãe lia para ele. O inesperado era muito bom nas histórias. Acrescentou: gostei de você... E empacou. Gostou do quê? Meninas fazem perguntas, querem saber de tudo, precisava de uma razão para gostar dela, ainda que apenas gostasse e pronto. Não tinha por quê.
Gosto do seu cabelo.
Retornou dias depois e viu a menina passar em frente à janela e, súbito, sentar-se de costas para a rua. Ele desceu da bicicleta. Fez de conta que a corrente estava com problemas, mexeu aqui e ali, um olho lá na janela. Ela não se mexia. Emporcalhou a mão na corrente, montou na bicicleta e desceu a ladeira.
Na volta, veio empurrando a bicicleta devagar, um olho na janela. Ela nem se mexeu. Voltou para casa irritado. Mania de ficar de costas para a janela, pensou. Janelas não eram feitas para se olhar para fora?
No dia seguinte, ele se aproximou a tempo de ver que ela surgiu correndo e sentou-se de costas para a janela. Desconfiou. Sabia que ele estava ali. Largou a bicicleta na calçada, foi até o portão. Descobriu então que eram duas meninas, ou melhor, uma era a menina de verdade, de costas, e outra era a menina que o espiava pelo espelho que havia na parede.
Acenou para aquela que o olhava do espelho. Ela se levantou bruscamente. Ou melhor: elas levantaram-se e saíram da janela. De cara feia. Haviam sido descobertas e estavam furiosas.
Foi quando escreveu outra carta. Confessou que não conseguia entender as mulheres.




sábado, 1 de março de 2014

O Grande Naufrágio do STF





Um desses líderes de governo (ou assemelhados, tropa de apoio, talvez) enunciou mais uma vez uma frase estúpida e oportunista – repetida como se fosse expressão de suma sabedoria e retidão democrática – a respeito da decisão do STF que absolve os mensaleiros do crime de formação de quadrilha:
- Decisão da justiça não se discute. Cumpre-se.
A frase é idiota em si mesma. Se por um lado é necessário cumprir as decisões da justiça, por outro lado, numa democracia, tudo está em permanente discussão, inclusive as sentenças que saem da cabeça de juízes. Ocorre que o Brasil, além de sua tradição ditatorial, é um país no qual governantes e políticos são despidos de espinha dorsal reflexiva. Jogam para a plateia, desconversam, são ratazanas em busca de um bom bocado, seja ele qual for.
Outra idiotia, com fedores de pilantragem: juízes togados e de fala complicada, assemelhada de longe à língua portuguesa, engataram uma ré no STF e declararam que no mensalão não houve formação de quadrilha.
Ora, se houve mensalão – e o STF condenou mensaleiros – houve formação de quadrilha. Por outro lado, se não houve quadrilha, não houve mensalão.
Teremos que acreditar que tudo não passou de uma soma de coincidências. Um liberava grana num banco, outro depositava essa grana no exterior, outro repassava essa grana a líderes de partidos, políticos recebiam a grana e votavam conforme o pedido. Ao ver da maioria dos juízes tudo isso ocorrendo ao mesmo tempo e com os mesmos personagens não caracteriza quadrilha.
Agora, se quatro pobres diabos se juntam para assaltar uma quitanda – um vigia na porta, outro empunha a arma e dois limpam o caixa – serão acusados de formar quadrilha.
Devemos concluir assim que os mensaleiros são criaturas inocentes, vítimas de coincidências. Ocorre que um banco deu a grana a um, o outro a encaminhou etc. etc. Tudo sem querer, ao acaso, na maior inocência.
Com a recente decisão– que contou com votos suspeitíssimos de nomeados de última hora por essa senhora que faz pose de gerentona correta – o STF naufragou.
Mas o que se anuncia é ainda pior. Advogados dos mensaleiros estão aguardando a aposentadoria do Barbosa para, com algum ministro “adequado” nomeado pela Dilma, pedir a simples e pura anulação do julgamento. É claro: se não houve quadrilha, não houve mensalão etc.
Será o naufrágio final, a desmoralização do STF, da justiça brasileira, do PT, da Dilma e de Lula. A desmoralização da democracia brasileira. A vitória do oportunismo das ratazanas.
Haverá como evitar tudo isso?
Já não estou tão certo. Um país que não tem coluna vertebral reflexiva não pode ter coluna vertebral ética.