domingo, 22 de junho de 2014

O que nunca disseram um ao outro




A noite, filme de Michelangelo Antonioni. Em cena, Jeanne Moureau e Marcelo Mastroiani.



Encontraram-se por acaso, ao entrarem no café. Depois do choque inicial e de gestos constrangidos, ocuparam a mesa de canto e aguardaram em silêncio o garçom e o vinho escolhido ao acaso.
Quando o garçom trouxe o vinho, disseram ao mesmo tempo:
- Há uma coisa...
Riram da coincidência. Mais uma coincidência. Ele pediu desculpas:
- Fale.
- Fale você.
Ela esperou, evitando o olhar dele. Deu um volta no cálice de vinho e disse:
- Há uma coisa que eu nunca te disse...
- Era o que eu ia te dizer.
- Ia dizer o quê?
- Isso mesmo. Há uma coisa que eu nunca te disse.
Ela sorriu e tentou falar, mas ele a interrompeu, perguntando:
- O que você ia dizer?
- Que há uma coisa que eu nunca te disse.
Riram. Aproveitaram para beber.
- Há quanto tempo? – ela perguntou.
- Há muito tempo. Nem é bom pensar. O tempo é cruel.
- No entanto, dissemos a mesma coisa ao mesmo tempo.
- É. Ao mesmo tempo. Como se fosse ontem.
- Ou hoje.
- Mas já nem sei se recordo quando...
Foram interrompidos pelo garçom, que trouxe duas fatias de torta.
- Nem sei se combina com esse vinho, disse ela.
- Nem eu, disse ele.
Ela tentou descontrair:
- Isso de escolher vinhos é uma chateação. Desisti de aprender como funciona.
- Eu também. Os caras que falam de vinho são uns chatos. Duvido que gostem de vinho.
- Do que eles gostam?
- De fazer pose. Odeiam vinho.
Ficaram em silêncio. Um grupo de jovens entrou no café fazendo algazarra.
- Jovens, resmungou ela.
- Já fomos jovens, disse ele.
- Acho que nós estamos fugindo do assunto.
- Qual?
- Aquilo que deixamos de dizer. Aquilo que eu nunca te disse.
- É mesmo. Uma coisa que eu nunca te disse.
- E que eu nunca te disse.
- Mas será que...
- Acho que não. O tempo...
- Talvez a gente pudesse...
Ela fez um gesto, o dedo sobre os lábios:
- Não. Melhor esquecer.
- Tem razão.
Beberam em silêncio ao longo de uma hora e meia. O garçom veio avisar que o café estava fechando. Perceberam então que o grupo de jovens já havia partido. Despediram-se na porta, sem beijos ou abraços.
- Até, disse ele.
- Até, disse ela.



domingo, 8 de junho de 2014

Vinicius de Moraes e o homem cordial







Vinícius de Moraes (em outubro fará 101 anos, vivíssimo) me parece a mais completa encarnação do que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “homem cordial”.
Devo me explicar. Essa expressão – homem cordial – foi mal interpretada por brasileiros que não se deram ao trabalho de ler “Raízes do Brasil”, livro magistral. Quem não lê os textos-fonte de sua cultura pega os conceitos pelas beiradas, dependurado em citações capengas.
Assim, ao contrário do que é usual – em rádios, jornais, academias etc. – Sérgio Buarque jamais disse que o brasileiro é pacífico, tranquilo, paciente ou bonzinho. Desenvolveu com muita propriedade a tese de que o brasileiro é uma criatura que se orienta pelo coração. Afinal, cordial vem de cor-cordis, coração em latim.
Outros povos se orientam pela razão, pela experiência empírica, por costumes ou dogmas religiosos ancestrais. Os alemães buscam razões para fundamentar seus atos e pensamentos enquanto os ingleses e norte-americanos se apoiam em dados empíricos para pensar e agir. Já os brasileiros agem de forma afetiva, dizia Sérgio Buarque. Muitas vezes levados por impulsos. Podem ser muito afetivos e carinhosos em expressões e gestos, mas, como qualquer povo, podem ser violentos, injustos, tirânicos. Os leitores pensem em episódios como Canudos, nas degolas durante a Revolução Federalista, na sucessão de ditaduras pelas quais fomos assolados e na violência urbana atual.
Ser cordial não significa ser bonzinho, mas colocar o coração acima da razão, dando-lhe um valor superior nas decisões – o que pode eclipsar a razão ou a experiência.
Isso é frequente na mídia. Dia desses assisti uma remexida e bela moçoila falando da peça de teatro da qual participa. Fiquei sabendo de cólicas na estreia, de friozinhos na barriga antes de colocar o pé no palco, do ambiente de amor que uniu o elenco, da emoção do público, do carinho com que o diretor tratou a todos.
E não ouvi uma só palavra sobre a peça, o texto da peça, seu valor literário e dramatúrgico, o autor, suas obras e sua época, o sentido e as reflexões que provoca. A moçoila e o entrevistador estacionaram nas “emoções”.
É o homem cordial recusando-se a pensar.
Muitos pensarão que estou criticando Vinícius. Não. Ele é o homem cordial na sua face positiva e criativa, que fez da cordialidade instrumento de saber e  conhecimento – forma de dar sabor à vida.
Lembro-me do delicioso “Poema enjoadinho”:

“Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?”

Uma maravilha de concretude, de um saber e sabor que é tátil, olfativo, auditivo, gustativo, visual. O homem cordial usa desses meios para construir seu universo. As razões são afetivas. Mas não são ilusões melosas ou “emoções”. Trata-se de uma sabedoria do sensível.
É baseado em Vinícius que desejo que os brasileiros venham a usar seu coração como ele o fazia. Não como fuga ao pensamento, mas como base de um modo de ver e sentir o mundo que supere fundamentalismos primitivos ou frieza tecnológica de raciocínios gélidos – extremos entre os quais o mundo atual se debate.




terça-feira, 3 de junho de 2014

Canção Mínima (Cecílila Meireles)


cecilia-meireles


CANÇÃO MÍNIMA

Cecília Meireles




No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o Sem-Fim,

a asa de uma borboleta.


(1938)