sábado, 22 de novembro de 2014

Millôr, o camelo e a literatura espetáculo




Une Tombe trop bien fleurie


Sabemos que literatura é uma arte que se destina a uma imensa minoria.
Mas o mundo do espetáculo (leia-se: grana) não se conforma com isso. Sendo tudo espetáculo, trate-se de eleições, de futebol, de culinária, por que não a literatura? Os marqueteiros chegaram lá.
Em outubro surgiram dois exemplos, um na França e, outro, nos EUA.
Na França, foi publicado um romance – Une tombe trop bien fleurie – patrocinado pela Académie Balzac. Obra coletiva. Reunidos após seleção, vinte jovens escritores foram trancafiados no Château de Brillac durante três semanas. Espécie de BBB literário: dez deles acabaram sendo eliminados pelos internautas. Filmados de todos os ângulos, com transmissão ao vivo pela Internet, e, “a quarenta mãos”, como diz a peça publicitária da livraria virtual Chapitre, produziram 196 páginas de um “polar” (o romance policial dos franceses).
A meu ver as vinte cabeças e as quarenta mãos não foram nada criativas, pois pariram uma historinha “dejà vu”. Um velho escritor, que teve fama e sucesso, julga que sua única saída é morrer. Para proteger sua dedicada esposa, procura simular que seu suicídio foi morte natural. Dá tudo errado. O inferno se instala.
Historinha esquemática, roteiro de filme de terceira categoria. Sucesso garantido na televisão e nos telões. Capaz de abiscoitar algum prêmio em um dos milhões de festivais de cinema mundo afora.
O outro exemplo – Endgame – vem dos EUA, onde escolas de escritores insistem em ensinar a escrever. A escrever best-seller, é claro. Todos deveríamos escrever, eis a receita, como um cirurgião opera: seguindo protocolos.
O romance norte-americano é de ficção científica, cheio de tragédias, explosões e assassinatos, como se espera de um país que glamoriza a violência. Mas não basta. Os marqueteiros acharam o gancho literário. A obra se vincula à Internet, ou seja, aos games.
No livro existem links para páginas da rede nas quais se encontram pistas e chaves para a solução dos enigmas. Tudo se resume em desvendar um mistério confuso, que passa por cavernas, acidentes, tiroteios, escavações, mensagens cifradas. Os direitos para cinema e televisão já foram vendidos. Os personagens são, como diria o Chaves, ou seja, o Chapolim Colorado, friamente calculados: de várias nacionalidades, pois o mercado é o planeta.
Não basta. Os autores – no caso, dois; quatro mãos – oferecem ao primeiro que desvendar o mistério US$ 500 mil em moedas de ouro.
O máximo em prazer literário. Balzac viraria cambalhotas.
Os leitores sabem que o camelo é um bicho feio, um híbrido, patas de cavalo, pernas de avestruz, cabeça de alce, orelhas de burro, rabo de espanador etc. O que lembra uma máxima do Millôr: “todos os animais são belos e foram criados por Deus, exceto o camelo, que foi criado por um grupo de trabalho”.
Balzac – uma cabeça; duas mãos –– sem patrocínio e com credores à porta, faria melhor. Mas Balzac, nesse mundo do espetáculo literário, trabalharia feito forçado e continuaria de bolsos vazios.
Já as cabeças dos marqueteiros podem ser vazias, mas seus bolsos estão sempre cheios.




quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Manoel de Barros





Manoel de Barros faleceu hoje, 13 de novembro, uma quinta-feira de espantos. 97 anos de deslumbramento com todas as miudezas do mundo. Uma das netas do poeta disse – e outros repetiram – que ele não morreu. Que virou passarinho. Eu acho que não. Ele já era passarinho. Virou um poema sem-fim nem começo coreografando lonjuras. Perto de nós para todo o sempre.
Transcrevo um poema:



AUTORETRATO

Ao nascer eu não estava acordado, de forma que
não vi a hora.
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois já morri 14 vezes.
Só falta a última.
Escrevi 14 livros.
E deles estou livrado.
São todos repetições do primeiro.
(Posso fingir de outros, mas não posso fingir de mim.)
Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro.
Em pensamento e palavras namorei noventa moças,
mas pode que nove.
Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze.
Cito o mais bolinados: um alicate cremoso, um
abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios,
um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc etc.
Tenho uma confissão: noventa por cento do que
escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.
Quero morrer no barranco de um rio – sem moscas
na boca descampada!



sábado, 8 de novembro de 2014

O que a corrupção corrompe?





Alguns atribuem ao compositor Sinhô – um dos pioneiros do samba – uma frase engenhosa que me veio à memória durante o circo eleitoral a que fomos submetidos.
Ocorre que Heitor dos Prazeres o acusara de plagiar o samba Gosto que me enrosco. Diante disso, Sinhô, antecipando todos os malandros que viriam depois dele, teria dito: “Samba é como passarinho que passa voando. É de quem pegar primeiro”.
Para Sinhô um passarinho voando por aí é de qualquer um. Quem pegou, leva. Faz sentido, considerando-se o ambiente em que nasceu o samba. Mas é pilhagem de direitos autorais.
Ocorre que no país dos Bruzundangas, não são poucos os que se comportam desta forma quando se trata de dinheiro público, expressão que parece sugerir que, sendo público, é de todos, ou seja, de ninguém. Feito o pássaro que cruza os ares. Já tivemos um presidente que, diante da acusação de caixa dois feito com dinheiro público declarou, com uma lavada cara de santidade, ser aquilo coisa que “todo mundo faz”.
Eis aí. Se todos fazem, é normal que se faça.
Nesse outubro de 2014 o tema da corrupção dominou a campanha eleitoral, motivo pelo qual não resisto a ele, embora com a paciência já esgotada. As acusações de corrupção foram moeda corrente nos chamados debates – que nada debateram, resumindo-se a uma saraivada de xingamentos e golpes baixos – nos quais estiveram sempre associadas ao dinheiro público. Disso a população, com ou sem razão, deduz que todo político é corrupto.
Talvez seja justo pensar assim, mas há uma falha nessa equação.
Se há corrupto, existe corruptor, o sujeito oculto do quebra-cabeça. É difícil indicar quem ele seja e costuma ser perigoso fazê-lo, pois se trata de gente com efetivo poder de fogo. São banqueiros, financistas, empreiteiros, empresários, grandes proprietários, gente cheia de grana etc. Mexeu com eles, você acaba condenado. Vimos isso acontecer recentemente.
No entanto, sendo óbvio, é preciso colocar na roda os corruptores.
Ainda assim a equação não está completa.
Quando nos concentramos no dinheiro roubado deixamos de apontar não só o corruptor, mas algo mais profundo e que instaura a corrupção.
O efeito mais devastador da corrupção não é o roubo do dinheiro público. O que se corrompe nesse ato são as bases sobre as quais se apoia a vida social, no caso, a propriedade pública. E isso não é uma lei, é antes uma convicção constitutiva da sociedade. Repito o que digo há muito, por ser verdade e por ser óbvio: não são as leis que fazem as sociedades, são as sociedades que fazem as leis. Sem convicções não há sociedade possível.
Eis o crime cometido. Não um mero e eufemístico malfeito.
O que Sinhô, fraudava, ingenuamente por certo, é uma convicção moderna: a criação é propriedade do seu criador. Quando se garfa dinheiro público, o que se corrompe é a consciência de que o bem de todos tem dono. Tal como o ar, a água, a liberdade, a dignidade de cada um.
Um país precisa saber quais são suas convicções fundamentais e zelar por elas. Sem isso, o passarinho é de quem pegar primeiro, o que nenhuma arquitetura jurídica poderá consertar.