segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tragédia da boate Kiss – um crime anunciado um ano após





Há um ano, no dia 27/01/2013, sofremos o impacto das notícias a respeito da chamada “tragédia da boate Kiss”. Foram 442 mortes, centenas de feridos. São perdas irrecuperáveis e irreparáveis – nada poderá curar a dor sentida por pais, irmãos, amigos, namorados, nem mesmo por simples cidadãos brasileiros perplexos. Todos estão aprendendo a conviver com a brutalidade devastadora que os atingiu.
Podemos oferecer a eles apenas a nossa solidariedade.
Por isso registro aqui algo que me parece pendente. Não falo da punição dos culpados – que, esperamos, a justiça venha a fazer – mas da falta absoluta de medidas efetivas, de determinações claras, de controle rígido, sobre esse tipo de casas de espetáculos espalhadas por todo o país.
Como sempre, se procedeu da maneira mais desastrosa. Nos primeiros momentos, “autoridades” procuraram escapar de qualquer culpa, advogados foram acionados, políticos oportunistas anunciaram leis para regular a questão. O prefeito dizia não ter nada com isso. O governador do Rio Grande do Sul se esquivou de imediato. Os bombeiros não sabiam de nada.
Ora, no Brasil não faltam leis, país onde elas abundam, valendo o trocadilho.
O que falta é vigilância, acompanhamento de obras, análise de projetos, verificação das condições de segurança, exigência de cumprimento de leis já existentes, honestidade administrativa no acompanhamento das construções. E que fiscais fiscalizem e não recebam propinas.
Mas os governantes agem segundo um padrão conhecido.
Da presidente ao governador e ao prefeito, todos criam a ilusão de que tudo se resolve com leis ou com verbas. Não é assim. Vejam o caso ridículo das obras para a Copa do Mundo. Fizeram leis, as verbas foram destinadas, mas, não fosse a vigilância da FIFA, tudo continuaria ao deus-dará até o dia do primeiro jogo. A FIFA é certamente uma entidade oportunista, rica e safada. Tudo bem. Mas, não agindo ao modo brasileiro, sabe que administrar implica fazer o que tem que ser feito. Como resultado dessa monumental incompetência, o país, da presidente ao torcedor, é alvo de pitos e advertências de um Jérôme Valcke qualquer ou de um Joseph Blatte da vida. Uma vergonha.
O mesmo no caso da boate Kiss. Não se tem notícia de melhoria na fiscalização das casas de shows existentes no país. Não se sabe se pessoal adequado foi designado e treinado para vigiar o cumprimento das exigências impostas a todos que estão envolvidos em espetáculos em ambientes deste tipo.
Um ano após, o processo contra os responsáveis navega ao modo das chicanas jurídicas. E a única coisa que nos restaria fazer, após tal desastre, não foi feita: providenciar meios e modos e critérios técnicos e administrativos capazes de garantir que quem entra numa dessas boates não estará entrando numa arapuca assassina.
Se isso não for feito, ficará tudo como dantes no quartel de Abrantes.
É o Brasil.



terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O exílio era aqui – tempos de ditadura


 


Era um dia como outro qualquer. Eu chegava à UFPR para dar aulas no curso de Filosofia. 1976. Governo de Ernesto Geisel. Não se sabia se o pior já acontecera ou se ainda estava por vir. No ar havia cansaço, doze anos após o golpe de 1964. No pátio, passei pelo busto do ex-reitor – o mesmo que fora arrancado em 1968 e arrastado pela rua XV, quando a Reitoria fora invadida pelos estudantes. Subi as escadarias e peguei o elevador. Um dia como outro qualquer.
Quando cheguei ao departamento de Filosofia, normalmente deserto naquele horário, encontrei frei Raimundo Vier, chefe do departamento, que havia sido meu professor na PUC e era agora meu colega de magistério na UFPR.
Frei Raimundo era um homem do século XIII que se perdera no século XX. Tenso, ereto, sério, terno preto, carregando uma pasta e uma enorme competência como professor. Foi também um excelente tradutor – é elogiadíssima a tradução que fez da História da Filosofia Cristã, de Étienne Gilson. Dava aulas que, para os padrões circenses mais tarde implantados pelos cursinhos e comunicadores caricatos, seriam julgadas monótonas. Plantava-se na frente da classe, raramente se deslocada de um lado para outro, mais raramente ainda usava o quadro negro – apenas para escrever alguma coisa em grego. Segurava na mão um arquivo com suas anotações. E falava.
Tinha uma voz grave, forte, máscula, e conseguia colocar nela uns acentos de orador. Sabia como usar as ênfases, os silêncios, e se aventurava a contar piadas e anedotas sobre os filósofos gregos. As piadas não tinham muita graça, mas os causos sobre os filósofos eram divertidos.
Mas era um homem do século XIII. Várias vezes o observei na cantina, onde tomava o café da manhã – média e um pão com manteiga. Sentava-se numa banqueta, colocava a pasta no chão e tomava o café seguindo um ritual litúrgico. Sua serenidade só era prejudicada por um ligeiro tremor das mãos, que derramava café no pires que ele erguia junto com a xícara. Terminado o pão com manteiga, ele depositava a xícara no balcão, apanhava o pires e, como se vertesse um cálice sagrado, bebia o café nele derramado. E saía para dar aulas
Pois ali estava ele. Mas não parecia o mesmo. Estava inquieto. Depois de outros rodeios, disse que precisava falar comigo.
Esperei. Ele explicou, constrangido:
- Recebi um comunicado de que seu contrato não pode ser renovado.
Eu já lecionara no ano anterior e o contrato era renovado anualmente. Estávamos talvez em maio e, é claro, não recebera salários naquele ano, o que era normal na época.
Ele acrescentou que a AESI (Assessoria Especial de Segurança Interna), um órgão de informações que funcionava dentro na UFPR, ligado diretamente ao SNI (Serviço Nacional de Segurança) o avisara de que havia problemas com minha contratação.
Já não parecia um dia qualquer. A tal AESI funcionava numa saleta ao lado da reitoria e, sabíamos, tinha poderes maiores do que o reitor: era um setor de triagem ideológica. O ocupante da sala tinha poderes de avaliar se tal professor poderia lecionar ou não, se era esquerdista, marxista, se pregava a revolução ou o terrorismo, além de outras paranoias alimentadas pelos milicos na época.
A respeito desse funcionário sabíamos apenas que fora bedel da faculdade de Direito. Além disso, seu currículo incluía um gestual autoritário e um ar zombeteiro. E um carro esporte GM que tinha uma vaga reservada no pátio. Fora o GM, tudo tinha péssimo nível.
Perguntei a Frei Raimundo o que eu deveria fazer. Ele me disse, candidamente, que não fazia ideia, mas que iria comigo à AESI para assegurar que nada sabia que me desabonasse.
Marcada a reunião, lá fomos nós.
A conversa foi seca, de caserna. O ex-bedel mal ouviu os argumentos de frei Raimundo – alegou que os fatos que pesavam contra mim eram de outra época, motivo pelo qual o frei os desconhecia. Perguntei então que fatos seriam, de que local e data. O ex-bedel disse que conversaríamos sobre isso noutro dia. Antes precisava de alguns documentos meus. E, me passando uma folha de caderno, disse:
- Anote.
Anotei os documentos exigidos que ele ditava lendo um papel que tinha nas mãos. Ao terminar, acionou uma maquineta no canto da mesa, que parecia um apontador de lápis gigante, inseriu o papel numa fenda e apertou um botão. De imediato o papel foi reduzido a fiapos. Estávamos sendo apresentados, frei Raimundo e eu, a um instrumento típico da época: o triturador de papéis que comprometiam a segurança.
Voltei àquela sala outras vezes, mas nada se resolvia. O tipo me pediu outros documentos, todos inúteis, e jamais respondeu a pergunta que lhe fiz várias vezes:
- Do que me acusam?
Eu havia lido Kafka. Ele, certamente, não, mas desempenhava o papel como só Kafka imaginaria.
- Não tenho que lhe dar essa resposta.
Eu, ingênuo, insistia:
- Se há uma problema, me diga, para que eu possa explicar. É simples.
Não era. Ele dizia:
- Não preciso dizer, pois o senhor sabe o que fez. O senhor é que tem que dizer.
- Dizer o que?
- O que fez.
- Quando e onde?
- Não sei. O senhor sabe.
- Eu não sei.
- Eu também não.
- Então, do que me acusam?
Kafka puro. Ele encerrou a conversa dizendo que, em função das apurações que fizera, o contrato não sairia. E, abrindo uma pasta com os documentos que eu lhe entregara, os enfiou um a um no triturador.
- É só isso, me despachou, observando encantado os documentos se transformarem em picadinho de papel.
Não havia o que fazer. Era 1976. E não era um dia qualquer. Quem não viveu aquela época custa a entender. Eu sabia – todos sabíamos – de gente desaparecida, de gente presa e torturada, de gente que vivia escondida ou fora do país.
Mas não desisti. Por sugestão de frei Raimundo, procurei o oficial de gabinete do Reitor, que era conhecido como filósofo. Tratava-se de um homenzinho dissimulado, inseguro, mas gentil. Ouviu meu relato e, quando me referi à AESI, ele de imediato se transformou na materialização de uma frase notável de Voltaire: “tremia como um filósofo”. Suava, esfregava as mãos, prometeu verificar. Voltei dois dias depois: verificara e nada poderia fazer. Seguia tremendo, o filósofo.
O que se seguiu foi ainda mais kafkiano. Falei com uma professora que poderia acionar um funcionário de ministério em Brasília. Dias depois esse contato me telefonou para dizer que levara o caso ao chefe do SNI, um certo general Figueiredo, que encerrara a conversa com uma só frase: “trata-se de um ex-líder estudantil perigoso, que é amigo de Carlos Prestes e que fez um estágio de dois anos na União Soviética”.
Entrei em choque. Não havia sido líder de coisa alguma, nunca vira Prestes pessoalmente e jamais saíra do país.
Indignado, resolvi seguir em frente e procurei falar com outras pessoas, nenhuma da UFPR, pois alguns professores do departamento comemoravam meu afastamento, entre eles um que levava recados ao ex-bedel, conhecido por ter participado da Operação OBAN (Operação Bandeirante – órgão destinado ao combate da subversão e sabidamente centro de torturas) em São Paulo.
Nada consegui, de porta em porta, telefonando, reclamando, exigindo e correndo riscos. Era 1976, é bom lembrar. Até que um dia um professor da UFPR, Antônio Lipski, me chamou para uma conversa num estacionamento, estilo agente secreto. E me disse:
- Tenho um recado para ti. O comandante militar da região mandou dizer que se continuar insistindo sobre o contrato, manda te prender.
Esqueci o nome do tal comandante e nem vou pesquisar. Sumiu do mapa juntamente com o ex-bedel e aqueles que “tremiam como filósofos”.
Não havia o que fazer. Ou melhor, havia. Fiz o que um escritor deve fazer. Escrevi o romance “Alegres memórias de um cadáver”, que publiquei em 1979, com o qual ganhei o prêmio da União Brasileira de Escritores/São Paulo, como o melhor romance editado no Brasil naquele ano. Ambientado numa universidade, narra as peripécias de um cadáver insepulto. Cada um usa as armas que tem. O romance esgotou uma edição em pouco tempo, saíram outras e ainda circula por aí. É benquisto. Os milicos voltaram pra caserna.
Como resultado, passei 13 anos afastado da UFPR, impedido de lecionar. Precisei reinventar meu trabalho, minha vida e minha cabeça. Mas a história não termina aí e só pude entender o que acontecera alguns anos depois. Para tanto, foi preciso voltar a 1964.

Voltando a 1964

Em 1964 éramos um grupo de jovens com pretensões intelectuais e vivíamos numa Blumenau mítica, pequena, na qual nos divertíamos muito. Estudávamos no Colégio D. Pedro II, excelente colégio público. Estudávamos no período noturno porque era preciso ganhar nossos trocados durante o dia. Eu trabalhava num banco.
Dessa turma, faziam parte o Sergio Faraco, que se tornou o grande contista gaúcho que todos conhecem; trabalhava na Junta de Conciliação do Trabalho. Érico Max Müller Filho, cujo pai fora líder integralista. Era o mais porra louca da turma, o primeiro sujeito que vi fumando maconha. E foi também quem me apresentou à poesia de Rilke e de Walmir Ayala. Guenter Leyen, que havia cursado um pedaço de arquitetura em Porto Alegre e era um desenhista talentoso e um papo doidão e divertido. Pedro Luso de Carvalho, hoje advogado em Porto Alegre. E um tipo chamado Laerte Tavares, sabedor de poemas de Augusto dos Anjos, que declamava pelos bares por onde andávamos.
A história dessa tribo eu coloquei numa novela chamada Antes que o teto desabe na qual se passam nossas estripulias juvenis antes que o golpe de 64 desabasse sobre nossas cabeças.
Sérgio Faraco, o mais velho da turma, era amigo de um dirigente do PC local, Francisco José Pereira, escritor e figura notável, conhecido então como Chico Comunista. Era o Faraco que nos trazia os primeiros fragmentos de marxismo, combustível para nossa inquietação. Sonhávamos com um nordeste enfim livre, enfim desenvolvido, queríamos fazer uma arte voltada para o povo, revolucionária e libertária, entre outras fantasias.
Certo dia o Faraco surgiu em minha casa esbaforido e, para evitar que minha mãe bisbilhotasse nossa conversa, me levou para a rua. Tinha uma notícia bombástica: Chico Comuna o indicara oficialmente – ou seja, com aprovação do PC local – para uma viagem à URSS, onde faria um curso de um mês.
Ele não se continha de tão nervoso e fomos até o hotel onde morava. Continuou agitadíssimo. Falava sem parar, se perguntava como seria, dizia que era um sonho conhecer a Rússia, mas... Mas havia, é claro, o medo. A Rússia era então a pátria mãe do comunismo, a origem possível de uma revolução mundial que mudaria os destinos da humanidade. Lá estavam alguns de seus ídolos e lá viveram escritores e revolucionários que admirava. Ele não se aguentava. Tanto que, pelo que me contou no dia seguinte, sofreu naquela noite uma violenta disenteria que o manteve em atividade até amanhecer. Afinal, uma revolução não se faz sem sofrimento.
A viagem estava marcada para o dia 30 de março. Faltavam poucos dias e, antes disso, ele precisava ir a Florianópolis para se apresentar a um contato do PC local e receber o passaporte. Como continuava nervoso, me convenceu a ir com ele, eu que tinha família por lá. Fomos os dois, nos hospedamos na casa de meu tio Gersino Silva, que era uma pessoa educadíssima, inteligente, um dos conversadores mais agradáveis que conheci na vida. Farmacêutico, adorava jogos de carta e ouvia uma coleção imensa de discos na primeira radiola que conheci. E era vereador. Pela UDN. Conservador e, como era clichê na época, reacionário. Pilotava um Austin pela cidade vestido com roupas muito sóbrias, e se reelegeu várias vezes, tendo um reduto eleitoral fiel num recanto da ilha. Quando soube de nossas ideias políticas, comentou:
- Vocês imaginam mudar o mundo. Que ingenuidade. Mas são jovens, se entende.
Sergio e eu ficamos em sua casa dois ou três dias. Na manhã seguinte à nossa chegada, levei o Sérgio a um lugar onde ele faria um primeiro contato com um misterioso comunista que lhe passou um endereço. E a recomendação: vá sozinho, sem seu amigo. Eu estava fora. No outro dia, na hora marcada, levei o Sérgio às proximidades do morro da Cruz, que ele subiu sozinho rumo ao encontro secreto.
O resto da história já é conhecida. Sergio Faraco a transformou num belo e comovente romance chamado Lágrimas na chuva, no qual relata que foi forçado, com a eclosão do golpe no Brasil, a ficar na URSS não o mês planejado, mas um ano e meio. Assistiu cursos de doutrinação marxista, desgostou-se com o país de seus sonhos, manifestou desejo, apesar dos riscos, de voltar ao Brasil, tornou-se suspeito, pelo que foi interrogado, preso e internado em instituição psiquiátrica. O modelo soviético típico.
 Em 2010, outubro, Sérgio me enviou um e-mail dizendo o seguinte: “Tenho aqui comigo documentos secretíssimos da 2ª Secção do III Exército, e num deles consta que tu, vereador em Florianópolis, viajaste comigo para a Guanabara”.
Eis a trapalhada completa. Noutro registro, do qual me falou um professor da UFPR – que confirmava o comentário do general Figueiredo – além de descrever as atividades do perigosíssimo contista gaúcho, se diz que: “no final do mês de março de 1964, acompanhado do líder estudantil Roberto Gomes, filiado ao PC de Blumenau, esteve em Florianópolis, ocasião em que se hospedaram na residência do vereador comunista Gersino Silva”.
Terá sido essa ficha que chegou às mãos do ex-bedel da AESI. Algum asno do seu quilate nos transformou em filiados ao PC, me promoveu a líder estudantil e elegeu meu doce e reacionário tio Gersino vereador comunista. E do encontro com Prestes, com quem Sérgio realmente esteve, eu teria participado, tornando-me amigo dele. Depois disso, eu teria passado dois anos na URSS.
Eis como esse episódio de 1964 explica o que me aconteceu em 1976, tornando evidente a estupidez paranoica das ditaduras, a incompetência visceral de seus agentes, do general ao ex-bedel, e o fato de que nós vivíamos enredados numa trama kafkiana. Eu fui impedido de lecionar e Sérgio Faraco, além de preso e torturado na URSS, foi preso e torturado ao chegar ao Brasil. Espancado por comunistas lá e por direitistas aqui.
Por conta disso, passei treze anos afastado de meu cargo de professor, conquistado por concurso público. Só retornei à UFPR em 1989, com base na Lei de Anistia e com o apoio de dois amigos, que venceram as tramoias burocráticas e outras. Os professores Dante Romanó Jr., então vice-reitor – um homem nobre – e Emmanuel Appel, velho amigo, um desses filósofos que não tremem.
Hoje, quando se procura recuperar a memória daqueles anos de ditadura, me parece importante mostrar que regimes ditatoriais se baseiam em ignorância, estupidez, desumanidade, truculência e simples e pura burrice.




domingo, 19 de janeiro de 2014

A arte de ouvir o que merece ser ouvido







Um amigo telefona do outro lado do oceano Atlântico para comunicar que, segundo seu médico, está ficando surdo. É verdade que não anunciava nenhuma novidade – já havíamos conversado a respeito – mas mesmo assim falou num tom melancólico de quem espera algum conforto.
Não me dei por achado. Disse a ele:
- Comemore. Com o mundo do jeito que está, com tanta porcaria sonora solta no ar, ficar surdo é uma bênção. A surdez vai te livrar de chateações, inclusive das novas duplas sertanejas, dos cantores românticos, dos discursos políticos, das pregações evangélicas. Portanto, fique feliz!
Acho que fiz bem, pois ele deu uma gargalhada estrondosa. Num mundo abarrotado de ruídos endoidecidos, isso de surdez pode ser útil, concluímos.
Há muitos anos trabalhei na Aliança Francesa como bibliotecário. Jovem, tímido e ingênuo, fiquei comovido certa ocasião com um senhor francês, arquiteto, que surgia por ali a cada três dias ao lado de sua mulher. Ela falava alto, tinha opiniões constrangedoras sobre todos os assuntos, dava risadas sarcásticas, convertendo o mundo a sua volta num pandemônio. Ele, quieto e meio sonso, era surdo.
Fiquei triste com a surdez daquele homem. Entrava em silêncio, cumprimentava com um leve movimento de cabeça e ia bisbilhotar as estantes da biblioteca. Remexia nos livros, sempre achava um volume de poemas – amava Baudelaire e Rimbaud – e ficava a um canto lendo poemas enquanto sua mulher seguia em sua missão ensurdecedora de falar pelos cotovelos.
Seria um homem triste. Triste pela surdez, pelo isolamento do mundo, mas me parecia ter uma alma de poeta. Até que certo dia, quando eu também folheava um livro, ele se aproximou de mim. Fiquei tenso, pois não imaginava como conversar com um surdo, ainda mais em francês. Mas ele sorriu e, com voz calma, me perguntou o que estava lendo. Respondi que relia – tentando decorar – o poema de Verlaine, Chanson d’automne, que até hoje considero o mais perfeito da literatura universal.
Ele se empolgou e me deu uma aula a respeito de Verlaine, insinuando educadamente que eu já saberia de tudo aquilo que estava me dizendo. Eu não sabia, é claro. Fiquei pasmo, não só com seu conhecimento de Verlaine, mas com o fato de que falava com elegância e ouvia perfeitamente.
Assim ficamos num papo tranquilo, só atrapalhado pelo meu sofrível francês da época, que era capenga. Aliás, continua capenga.
Foi quando ouvi a voz de trovão de sua mulher. Atropelou nossa conversa sem cerimônia e disse que já estava na hora.
Ele colocou a mão no ouvido direito e perguntou:
- O que disse?
Ela subiu o tom:
- Vamos embora!
Ele me olhou, sorriu e, com um sinal, deixou claro que voltaríamos a conversar. E saiu, como se diria em outras épocas, à francesa.
Só então fui descobrir o que todos ali na Aliança já sabiam. O triste arquiteto só era surdo quando sua mulher estava por perto. Escutava perfeitamente quando queria e era surdo ao que ela dizia, com o que mantinha a alma leve para se dedicar a seus poemas e projetos.
Era, desta forma, um homem feliz. O que é raro.



sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Maranhão, estado de calamidade. Ou: Dilma precisa do olivelharca Zé Sarney



Eles riem do quê? De quem? Você tem algum palpite?


Sempre guardo a impressão de que o Brasil – seus políticos, suas instituições, suas mazelas, seus habitantes – se revela plenamente pelos absurdos que é capaz de produzir. Quem for incapaz de entender absurdos jamais entenderá esse pobre país.
Não é um absurdo, pergunto, a construção desses estádios megalomaníacos para um campeonato de futebol num país com problemas gravíssimos em áreas vitais como saúde, educação etc.? Coloco o etc. não por economia de dígitos, mas para não cansar os leitores com as repetições de problemas já sabidos. Todo mundo sabe a que lista de mazelas esse etc. se refere.
Meu pai, nascido no início do século XX, quando ouvia falar em reforma agrária – não dar o peixe, mas ensinar a pescar, não dar apenas terra, mas instrumentos, sementes, desapropriar e indenizar, caso seja justo – erguia as mãos para os céus e bradava:
- Ouço falar nisso desde menino! Não aguento mais!
E acrescentava à fase um palavrão que não vou incluir aqui para não ferir ouvidos delicados.
Não foi um absurdo retirar armas da população dizendo que isso diminuiria a criminalidade? Eu não tenho armas nem as quero, mas sei que bandidos as adquirem via contrabando, tráfico de drogas etc. Não dependem de cidadãos incautos, até porque preferem armas mais potentes. Todo mundo sabe disso. O ministro da Justiça na época, o trepidante Tarso Genro, não sabia disso? Fez que não sabia? Imaginava iludir a todos nós, bandidos aí incluídos?
Para não encompridar conversa, vamos direto a esse monstruoso escândalo das prisões no Maranhão, tentando não repetir as notícias que estão em todos os jornais.
Todos sabemos o que são as prisões brasileiras, mesmo os que não foram trancafiados nelas. Diante dos fatos revelados – estupros, degolas, espancamentos, telefones celulares, balas de borracha, comida podre – será concebível que a senhora Roseana Sarney, governadora, com seu batalhão de assessores, com seu pai senador de triste memória, o José Ribamar, não soubesse o que lá se passava? Será que esta senhora nunca chamou os seus secretários de Justiça e de Segurança para lhes perguntar como iam as coisas na prisão de Pedrinhas?
A governadora ganha um bom salário e conta com uma trupe de auxiliares para governar aquele estado calamitoso que é o Maranhão, campeão dos piores índices nacionais em seja lá o que for. Pois será imaginável que só agora, com o filme de terror insano a que fomos obrigados a assistir, ela se deu conta do que se passa? Diz ela que vai tomar medidas, formar comissões, socorrer-se do papai, da Dilma, do Ministro da Justiça, da Gleisi e da inocente útil Maria do Rosário, que, ao criticar Roseana, levou um pito de Dilma.
Eis aí. O absurdo.
Nossos governantes – que pagam por obras jamais feitas, que gastam o dobro para pagar a metade, que passeiam em jatos das Forças Armadas, que são autores de obras inacabadas ou inúteis, que largam a educação, a saúde e etc. ao abandono, que fazem licitações de caviar e champanhe tal como Roseana – levam uma vida da fuzarca, para dizer o mínimo.
Adiam tudo, protelam tudo, nada resolvem. Meu pai tinha razão, até no palavrão que não revelo. Agora, a senhora Dilma está preocupada em não ferir o olivelharca José Ribamar. Precisa de votos, sobretudo do Maranhão, onde alcançou, em 2010, uma votação astronômica: 79%.
É possível levar a sério? Não. O absurdo não pode ser levado a sério.
Que me desculpem os atuais escritores brasileiros que anseiam ser beletristas. O Brasil precisa é de Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, de  Apporelly, o Barão de Itararé, do Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, de Millôr Fernandes redivivo, de Cervantes, de Voltaire, de Molière, de Dostoievski, de Nikolai Gogol, de Kafka, de Shakespeare.
Só autores desse quilate poderiam virar o país pelo avesso e nos dar uma ideia de como seria esse gigante adormecido quando virado pelo avesso do avesso.
Se me entendem.




domingo, 5 de janeiro de 2014

Como esvoejar entre futebol e eleições






Lá vamos nós esperando inaugurar um ano novo com o pé direito. Também com o esquerdo, lembro, pois somos criaturas bípedes. Equilíbrio, portanto. Dois pés no chão e a cabeça nas nuvens é boa dosagem. Os pés no chão nos situam no presente e, com a cabeça nos ares, se esvoeja entre passado e futuro, lembranças e projetos, empregando um verbo pouco usado e bastante expressivo, esvoejar.
Vejamos o que esse 2014 nos oferece como cardápio, além do carnaval, momento em que o ano anterior termina e o seguinte começa. Iniciemos, portanto, depois do carnaval.
Teremos a copa do mundo da FIFA, não se sabe se com o padrão de mesmo nome.
Confesso meus temores. Eu era criança demais em 1950 para saber o que se passava no Maracanã no dia 16 de julho. Mas cresci assombrado com os temíveis uruguaios e aquele gol no último minuto feito pelo Ghiggia. Ghiggia e Obdúlio Varela, El Negro Jefe, passaram a ocupar no meu imaginário o lugar de carrascos. Revi milhares de vezes o gol. Fotografado, narrado, filmado, nos cines jornais, na televisão e em filmes. Uma hecatombe.
Com o tempo, fui entender que Ghiggia não era um traidor, mas um herói do outro lado e que fizera o que tinha que fazer: meteu a bola ali onde Barbosa, nosso goleiro, não poderia alcançar. A depressão nacional, no entanto, escolheu Barbosa como culpado, o que fez com que predominasse durante décadas, nesse país pouco afeito a refletir sobre seu racismo, o mito de que negros não são bons goleiros. Foi preciso aparecer o Dida, nos anos 1990, para que essa bobagem fosse vencida.
Pois bem, estamos em julho de 2014. O que acontecerá? Temos a obrigação de vencer, dizem todos. Eu fico num pé só, oscilando. O futebol brasileiro sofre de um grande defeito, o narcisismo. Do complexo de vira-latas de que falava Nelson Rodrigues, passamos para o extremo oposto. Diz-se que o Brasil joga o melhor futebol do mundo, que a seleção é invencível em casa, que nossos jogadores são superiores.
É o narcisismo. Enquanto não brasileiros suam sangue até o último minuto da partida, distribuindo botinadas e carrinhos para todos os lados, deslocando-se para receber a bola, os brasileiros, confiantes em sua fantasiosa habilidade, esperam que a bola venha a seus pés.
Um leitor mais atento do que eu advertirá que não foi isso que ocorreu na Copa das Confederações. Certo. Pois é assim que é preciso jogar. Como dizia João Saldanha, jogador deve disputar a bola como quem disputa um prato de comida. Faremos isso? Ou, como em 1950, acharemos possível ganhar na véspera?
Como alerta, vale lembrar que Ghiggia tinha a mesma altura de Messi, 1,69 m. É bom ficar de olho nos baixinhos, sempre decisivos no futebol.
Terminada a copa, teremos as eleições. Há quem pense ganhar na véspera. O grupo da máquina governamental e o grupo do alpinismo na indignação popular de junho. É bom ficar de olho. Um erro, tanto na copa quanto nas eleições, se prolonga pelo menos por quatro anos. E, sendo erro grave, pode virar hecatombe com décadas de lamentações.
Dois pés no chão, portanto. E cabeça a esvoejar.