sábado, 30 de agosto de 2014

Um homem triste


 


- Eu sou um homem triste.
Quem dizia isso, com voz sofrida e rouca, era um homem pequeno, que ali pelas seis da tarde já estava sentado na mesa dos fundos do bar do cego Tião, de onde só saía depois de abater diversas cervejas e comer muitos rollmops.
Nada se sabia dele além daquela reclamação lamentosa:
- Eu sou um homem triste.
Sendo o boteco do cego Tião, aqui no centro da Vila, um lugar de altos debates e vastas especulações, sempre havia alguém levantando hipóteses sobre a origem de tão desesperada tristeza.
- Tem mulher na história, opinava Laurinho Telefone.
- Por quê? – queria saber Luiz Borracheiro.
- Sempre tem mulher no meio de histórias assim.
- Pura hipótese – aparteava doutor Asclépio Plúmbeo Da Vênia, o causídico da Vila, dado a erudições.
- Pode ser – retrucava Laurinho, sorrindo - Assim como a Teoria da Relatividade, da Evolução, das Cordas, do caminho inevitável para o socialismo.
Desabava então um impasse no ambiente. Todos ali sabem, de tanto especular entre goles de pinga e copos de cerveja, que são inúmeros os impasses do conhecimento humano, entre eles as razões que fariam daquele homem um ser tão infeliz.
E havia um complicador. Dele só sabiam o nome, Toninho, dito Tonin. E sabiam disso não porque ele o dissesse, mas porque era assim que um menino o chamava ali pelas onze da noite:
- Seu Tonin, onze horas.
Ele atendia – donde se concluía ser esse seu nome – pagava a conta ao cego Tião, que não perdoa despesa nem dos homens mais tristes do mundo, e saia ao lado do menino como quem se apoia numa bengala. Atravessava o pontilhão sobre o rio Belém, dava umas pequenas paradas, respirava fundo, e seguia em frente. Quando alcançava o outro lado do rio, virava-se na direção do boteco e gritava:
- Eu sou um homem triste!
E sumia na escuridão, motivo pelo qual não se sabia ao certo onde morava, talvez nem ele soubesse, pois era conduzido pelo menino a seu destino.
- Deve ter havido uma tragédia na vida dele. Perdeu a família – opinava cego Tião, que costuma enxergar melhor os sofrimentos humanos do que seus fregueses.
- Que nada. É só cachaça. – debochava Luiz Borracheiro – Cachaça. Por isso só bebo cerveja.
- Mulher. É mulher, insistia Laurinho.
- Dinheiro, isso é que destrói um homem, argumentava doutor Asclépio, espantando aos tapas as caspas do ombro curtido de seu sobretudo negro.
E assim como havia frequentado o boteco durante vários anos, sem revelar mais do que seu nome, um dia o homem triste sumiu sem deixar rastro. O menino também sumiu. Nunca mais veio procurá-lo às onze da noite. Mas não cessaram as especulações, que se tornaram tão obsessivas que um dia o cego Tião, irritado com tanta teoria, encerrou a questão como era seu hábito: deu uma pancada com o porrete disciplinador que deposita na prateleira do boteco e decretou:
- Chega de explicações inúteis! – e, vasculhando o boteco com seu olhar vazio, perguntou – Qual a razão de tanto espanto? Me digam uma coisa: quem aqui não é triste?
O silêncio que tomou conta do boteco poderia ser apalpado – e era assim que cego Tião via todas as coisas do mundo.




quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Debate capilar

Para vencer o tédio, fui desenhando. Quem sabe achasse alguma ordem oculta no espetáculo. Não achei. Debate tosco para excitar militantes, ingênuos e crentes através de poses estudadas e velhíssimas. Então, segui desenhando. Ao final cheguei à seguinte conclusão: havia, oculta, uma certa ordem capilar. Coloquei aqui os gladiadores de imagens na ordem crescente de quantidade de cabelos. Mas podemos colocá-los na ordem decrescente. Ou em qualquer outra. Divirtam-se.



Meditações que me dito

Da série Meditações que me dito:




Na vida e no futebol - tudo é chute.



sábado, 23 de agosto de 2014

Pensamentão de Eça de Queiroz

Disse o notável escritor português:


"Os políticos e as fraldas devem ser trocados de tempos em tempos e pelos mesmos motivos." 

NOTA: a caricatura acima é do não menos notável Loredano

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Miriam Leitão: O terror da tortura e o silêncio das Forças Armadas




Todos devem ler o depoimento de Miriam Leitão a respeito dos momentos de absoluto pavor que passou nos cárceres da ditadura militar. Humilhada, torturada, ameaçada de morte e de estupro embora estivesse grávida, Miriam sobreviveu para contar - e essa é a grande vitória: os ratos de esgoto que a torturaram sumiram nos porões que eles mesmos abriram e ninguém lembrará deles a não ser para condená-los. Miriam e o filho que gestava sobreviveram. O Brasil sobreviveu.
Dupla covardia. Além da covardia da tortura criminosa, a covardia em não assumir o que fizeram naqueles tempos em que estufavam o peito de orgulho patrioteiro.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O grande amor de Dominícia


 


Ela se chamava Dominícia.
Sua história se passa lá pelos fins de século XIX e início do XX. Tudo que sei dela me foi contado por minha mãe, que falava de sua avó com carinho e saudade. Era uma mulher graciosa, miúda, bonita. Vaidosa, inventou um creme para passar no rosto, mistura de talco e gotas de perfume. Era o presente que dava às amigas nos aniversários. De família pobre, cuidava de suas roupas, que ela mesma costurava, reformava, enfeitava.
Vestida com simplicidade e bom gosto, sapatos com saltos, cabelos arrematados em coque.
Passou a vida no Morro da Cruz, em Florianópolis. Quando jovem, gostava de saracotear pelo centro da cidade. Com o tempo e a velhice, resolveu ficar em casa, quieta e, pelo que sabe, feliz.
Mas para que os leitores entendam, preciso contar outra história.
Um dia Dominícia, talvez num de seus saracoteios pelo centro da cidade, encontrou o amor de sua vida. Ele era um paraguaio forte, mulato, de estampa sedutora. O fato de ser mulato, é claro, foi escondido pelas gerações seguintes da família, que preferem falar dele apenas como o paraguaio.
O namoro e o amor entre eles terá sido o usual na época, mãe e pai vigiando, pequenas idas ao portão da casa. Não demorou e se apaixonaram perdidamente. Logo estavam casados, morando numa casinha simples, que depois ficou para os filhos e os netos, entre eles minha mãe.
Da janela da sala, Dominícia observava seu amor descendo o morro rumo ao trabalho. Ela ficava em casa, cuidando do filho, da limpeza, das roupas, dessas coisas que ocupavam as mulheres naqueles tempos. Ao final do dia, aguardava o retorno de seu amado debruçada na mesma janela.
Eram felizes e Dominícia, sem favores, um doce de criatura.
Não sei quanto tempo se passou, pois os detalhes das histórias se perdem em favor de episódios que resumem tudo. Viveram felizes até que um dia, o paraguaio, que era homem de muitos resmungos e poucas palavras, enfiou-se na sua melhor roupa, escovou as botinas, esticou os cabelos encaracolados, meteu um perfume barato atrás da orelha e se preparou para sair.
Beijou Dominícia, afagou o filho José, meu avô, e deixou sobre a mesa uma moeda de cinco mil réis:
- Volto logo. Não demoro.
Nunca mais. Saiu da vida de Dominícia do mesmo modo como entrara, de hora para outra. Talvez, afinal realizando sonho antigo, tomou algum navio para o Rio de Janeiro ou retornou a seu país, onde, desconfiavam todos, tinha família, filhos e netos.
Dominícia nunca mais foi ao centro da cidade. De início andou a procura de seu marido. Foi à polícia e aos hospitais. Nada. Então se recolheu em casa. Mas não se consumiu em infelicidade. Ficou esperando.
Todos os dias, perto do horário em que seu homem voltava do serviço, colocava no peitoril da janela uma almofada branca, imaculada, contornada com rendas, e nela se debruçava. Esperava. Fez isso até o fim da vida.
Emoldurada pela janela, debruçada na almofada branca, assim ficou na memória de minha mãe. Jamais admitiu que ele não voltasse.
- Algo aconteceu, dizia. Ele voltará.
Não voltou.
Mas ela jamais foi infeliz. Amava perdidamente aquele homem.




quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Uêba! Lá vem O Trem Itabirano



Ilustração de Millôr para o jornal "O TREM Itabirano"



Na Internet não há apenas fofocas, selfies bobinhos, piadinhas bestas ou intrigas cansativas. Aqui e ali brotam informações valiosas e textos que podem ser lidos com prazer. Uma delas, já completando nove aninhos, é o jornal O Trem Itabirano.
Começa que, sendo de Itabira, é como se fosse nossa casa. Todo brasileiro decente se imagina parente de Carlos Drummond de Andrade. Depois, sob a direção geral de Marta Saldanha e tendo Marcos Caldeira Mendonça como editor, o jornal não deixa de surpreender a cada número (que, como diria Millôr, é um exemplar – aliás, Millôr também era fã do jornal e chegou a presentear a turma com a ilustração acima. Foi a glória). 
Mas o melhor do jornal é aquilo que, faltando palavra melhor, chamarei de seu “espírito”. Independente da matéria, do colaborador – são muitos, espalhados pelo Brasil inteiro – há em tudo que é publicado, mesmo nas fofocas municipais de Itabira ou em textos dos quais discordamos, um cheiro de malícia e picardia, irreverência e safadeza, coisas que faltam ao jornalismo sem imaginação e pasteurizado que se pratica nesse triste país tropical.

Então, se quiserem ler bons textos e melhorar o astral, usem o endereço de e-mail otremitabirano@yahoo.com.br e falem com o Marcos Caldeira. Se estou certo, você receberá o jornal em seu computador com regularidade.



domingo, 3 de agosto de 2014

Silêncio parado no ar





Quase meia-noite. Caminho pela avenida que margeia a praia.
De algum lugar nas redondezas ouço sons abafados. Sons de música e de conversas - o que inclui vozes de crianças, risadas. Mas o que sinto é um profundo silêncio. Há silêncio nas ruas, nas árvores, no ar. As calçadas e as pedras estão em silêncio. Não apenas ausência de sons ou ruídos – um silêncio concreto, audível.
Um silêncio parado no ar.
Até o mar se limita a um ronco surdo, afastado, que alarga a faixa de areia.
A praia esteve deserta nesse dia em que fez sol e frio. Apenas alguns surfistas se atreveram a enfrentar a água gelada e o vento. Estiveram ali durante a manhã e a tarde, agarrados às pranchas de surf, cavalgando as ondas. Na maior parte do tempo apenas esperavam. Não entendo como suportam. Mas suportam e se divertem. E isso basta.
Sou o único a caminhar por aqui. Saí do hotel e vim para a avenida gastar uma meia hora que ainda me resta antes de dormir. Na verdade, não queria dormir. Precisava caminhar.
Descubro então esta moto estacionada perpendicular à calçada. Na avenida deserta, aquela moto mais parece um monumento. Uma absurda moto solitária. Sugere uma escultura negra e solene. Desconfio que faça parte da rua tanto quanto os postes e as placas de trânsito. A moto ali está como se ali estivesse desde sempre. Introvertida, mergulhada no silêncio da noite. Lamento não poder fotografá-la.  Ficaria bem uma imagem daquela criatura solitária abaixo das luzes pálidas que saem dos postes. Talvez fotografasse o silêncio.
Deixo a moto para trás.
É quando percebo que não estou só. Surgindo de uma esquina, a três quadras, alguma coisa se move. É um homem e sua bicicleta. Não dessas de esportistas ou de exibicionistas. Uma bicicleta simples, modesta, que avança com algum esforço. Não se trata de um jovem. Curva-se a cada pedalada e esconde o rosto com um chapéu. Vindo em minha direção, não parece mover-se. Pedala como se navegasse nuvens ou emergisse de outra dimensão, estranhando esta em que vivemos.
Ao passar por mim, o homem move a cabeça e o chapéu num cumprimento demorado. Faço o mesmo, movendo a cabeça e o boné. E lá continuamos nós dois, cada um em seu caminho, sabendo que jamais nos reencontraremos. Não sei quem é, ele não sabe quem sou, mas fazemos parte de um mesmo silêncio. Ao longe ainda escuto o ranger das correntes cansadas da bicicleta. Ao final da quadra, volto-me para ver onde o ciclista estará e não o vejo mais.
Seu desaparecimento não me abala. Dobrou em alguma esquina ou retornou à dimensão da qual surgiu.
Paro de pensar. Também o pensamento me parece capaz de perturbar o estado de quietude que envolve a tudo.
As criaturas a minha volta estão em repouso, eis tudo. Pedras, animais e vegetais incluídos. Nenhum trepidar de trânsito, nada da neurose que nos atinge numa cidade, mesmo quando todos - ou a maioria - dormem. É um silêncio afirmativo, que esconde um nexo oculto entre todas as coisas, sejam homens, bicicletas ou motos.
Volto ao hotel. Não demora e estou dormindo. Não me permiti fazer ou pensar em nada que pudesse perturbar o silêncio.