terça-feira, 31 de março de 2015

Para fechar o mês, Shakespeare





Um poema de Shakespeare.
Na tradução exemplar de Carlos Vogt, poeta, linguista e professor da Unicamp.



SONETO 76

Por que ao meu verso falta novidade
Orgulho jovem, variação, mudança?
Por que não deixo acompanhar-me a idade
Dos novos métodos que a moda lança?
Por que escrevo apenas sempre o mesmo
E escondo o achado em hábitos banais,
Tanto que as palavras quase nunca a esmo
Mostram meu nome e a mim como seus pais?
Ó doce amor, é de você que escrevo,
Você e o amor, meu único argumento;
Vestir no velho o novo, este o meu desejo,
Usando tudo o que me lega o tempo...
        Como o sol cada dia é novo e tardo
       Assim meu amor só conta o que é contado.




quinta-feira, 26 de março de 2015

Como tapar o sol com uma peneira Ou O reino de Dilma à beira de um ataque de nervos




Charge do imbatível Nani


Desde quando surgiu nos céus um sol enorme, de proporções federais, a vida naquele reino distante se encontra nos limites de uma catástrofe. E foi num dia de sol forte e devastador que o ministro de um dos quatrocentos e oitenta e nove ministérios entrou correndo na sala da autoridade máxima. Veio aos berros:
- Não sei mais o que fazer! Não sei!
Foi olhado de alto a baixo pela autoridade máxima, o que deixou o ministro com a espinha congelada.
- E desde quando você soube o que fazer?
- Ora, ora, autoridade, nem sempre fico tão perdido assim. A situação atual é gravíssima.
- Já respondeu aos reclamos feitos ontem pelo populacho?
Ele balançou a cabeça: respondera, sim, com todos os recursos.
- E então?
- Acontece que contra a iluminação que estamos sofrendo peneira não é uma arma eficiente, autoridade.
- Peneira?
- É o que restou em nosso arsenal, como consta do meu último relatório, autoridade.
- Não queira me comprometer! Não li seu relatório. Acha que devo ler tudo? Não sabe que eu já declarei que não leio, tenho preguiça, além de ter coisas mais sérias das quais me ocupar?
Então o ministro explicou: gastaram todas as armas. Das mais simples, como bilhetinhos, até as mais sofisticadas, como decretos e mensagens via internet. Deu em nada.
E acrescentou, exaurido:
- O solão que nos assombra continuou brilhando e iluminando tudo, autoridade. Só nos resta tentar cobrir o sol com a peneira, segundo velho dito sábio de nossos ancestrais.
- Não use palavras complicadas.
- Perdão.
- E daí?
- Daí que não funciona, autoridade. Mesmo quando juntamos uma centena de peneiras, o sol continua a atravessá-las. Além disso, são peneiras com uma telinha fina, de arame vagabundo, o sol as aquece, elas derretem, não adianta.
A autoridade deu um pulo de sua cadeira e andou de um lado para outro, chutando baldes e ministros que estavam por ali.
- Assim não é possível! Minha assessoria é formada por um bando de incompetentes! Como não conseguem cobrir o sol com uma peneira?
O ministro tossiu, pediu licença para falar, mas foi interrompido:
- Cale-se!
Calou-se.
- E aquele grupo de mensageiros?
O ministro encolheu-se, temeroso, e, com voz sumida, murmurou:
- Lamento, autoridade, mas ninguém acredita neles. Pelo menos 70% não acreditam. Eles soltam as notas, inclusive dólares, e artigos via eletrônica, mas não adianta. Parece que quem lê mensagens eletrônicas anda se informando em outras fontes. Em resumo, não acreditam.
A autoridade chutou uma cadeira e os fundilhos de um oficial de gabinete e avançou na direção do ministro:
- Do que eles precisam para serem ouvidos?
O ministro engasgou, tossiu:
- Mais verba, autoridade máxima.
- Mais?!
- Trata-se de um óleo para engraxar suas mãos, dizem eles. Sem isso não funciona.
- Então tá.
- Então tá, o quê, autoridade?
- Mande retirar mais verba.
O ministro exultou:
- Verdade?!
- Sim. Mas... – a autoridade chegou um dedo no nariz do ministro – ...saiba e faça com que todos saibam que eu não autorizei nada disso. Eu não sei de nada, compreende? Como sempre. De nada!
- De nada?
- De nadinha.
E a autoridade máxima chutou os fundilhos do ministro, que disparou porta afora e foi garimpar mais verbas para comprar mais peneiras com as quais esconder o sol federal que iluminava aquele reino à beira de um ataque de nervos.





segunda-feira, 23 de março de 2015

Caderno de Pintura / Walmir Ayala







Walmir Ayala – poeta, romancista, crítico de arte, dramaturgo, ensaísta – faleceu em 1991, mas novos títulos continuam saindo de sua inesgotável produção.
Esse Caderno de Pintura, editado em 2014 pela Cepe Editora, Pernambuco, recebeu projeto editorial e gráfico (a cargo de Marco Polo Guimarães e Luiz Arrais) e prefácio de Carlos Newton Júnior. O livro reúne poemas inspirados por obras de arte. Neles se unem, portanto, o crítico de arte e o poeta Walmir Ayala. Essa mistura de um poeta e de um crítico, refletindo poeticamente, permitem que vejamos, em versos muitas vezes fulminantes a expressão mais completa de uma concepção ao mesmo tempo de poesia e de artes plásticas. É um exemplo disso o poema inspirado por uma gravura de Fayga Ostrower:

“incêndio numa folha de papel de seda”

Exemplo magistral de síntese, a perfeita união da obra, do crítico e do poeta.
O único senão é que nem todos os poemas são acompanhados pela reprodução das obras que os inspiraram. Mas é compreensível. Reunir tal número de reprodução envolveria dificuldades de várias ordens e de grandes proporções, o que talvez inviabilizasse essa proposta editorial.
As reproduções que constam do livro e os poemas de Walmir são valiosos. Valem a leitura e a releitura.


Para os interessados aí vai o endereço da Cepe: Rua Coelho Leite, 530 – bairro Santo Amaro – 50100-140 – Recife, PE



sexta-feira, 20 de março de 2015

Fastio do Brasil – o pós-15 de março.





Sete dias se foram e não me senti animado a escrever sobre as reações do governo às manifestações do dia 15.
Deve ser cansaço. Fastio, como diziam os mais antigos. Fastio do Brasil.
O Brasil cansa, eis tudo.
A manifestação do dia 15 levou às ruas uma multidão representativa do que vai pela cabeça da maioria (62% da população desaprovam Dilma, que se dependura em 13% de aprovação). Gente que foi sem receber refrigerantes, camisetas, sanduíches. Que não obedece a quaisquer ordens superiores ou laterais. Por certo, como sempre, aqui e ali estavam alguns patetas gritando bobagens, dignas da direita raivosa. São minoria, felizmente. Eles sempre aparecem.
A maior parte, no entanto, era de simples cidadãos brasileiros que, como este cansado cronista, estão com fastio do Brasil. Chega. Já encheu.
E qual a resposta da presidente?
Sugere diálogo. A criatura que menos dialogou desde que assumiu a presidência, mesmo com seus aliados de ocasião, agora fala em diálogo. A mais impaciente das criaturas, pede paciência. A mais prepotente, pede humildade. A que está colocada nas cordas – acossada pelos diversos PTs, pelo Lula, o PMDB, o Renan Calheiros, o Eduardo Cunha, o “general” Stédile – faz cara de mandona. E, por meio de dois prepostos – não ela pessoalmente, como faria um estadista – manda seu recado.
Eis o recado: um projeto de lei anticorrupção e insinuações que visam desqualificar – como em 2013 – o que se passa nas ruas.
Miguel Rossetto e José Eduardo Cardozo fazem jogo de cena. O primeiro alega que aquela multidão era dos que não votaram na presidente. Farsa. Como se aqueles que não votaram na eleita estivessem desqualificados para fazer críticas. Críticas só dos favoráveis. A oposição é apresentada como sendo formada por maus brasileiros, que querem o pior dos mundos, gente burguesa, classe média que se deve odiar etc.
Aliás, entre tantas contradições desse governicho, uma salta aos olhos. Seus seguidores a qualquer pretexto xingam a classe média – justamente a classe à qual pertencem. A classe média que, segundo uma filosofante da USP, merece ódio irrestrito. Ao mesmo tempo, se vangloriam de ter criado uma nova classe média com o bolsa-família. É possível entender? Não. Estamos diante de um poço de contradições.
Cardozo repetiu o argumento ridículo de que não haverá terceiro turno. Não há terceiro turno, é óbvio, mas governantes devem ser pelo menos competentes ou poderão ser defenestrados. Não são imperadores pela vontade de Deus. O poder lhes é dado pelo voto popular e pode ser tirado. Ainda não é o caso, mas é uma possibilidade se o governo se mantiver paralisado.
Já o pacote anticorrupção é um requentado de leis já existentes e serve para desviar a atenção da população. Tenho repetido várias vezes que o Brasil sofre de uma demência legislativa. Para tudo são feitas novas leis. Lembro que leis não fazem a sociedade. A sociedade é que faz as leis.
O governo não pode se esconder atrás de leis. Cabe ao poder executivo administrar, gerenciar, agir, planejar, saber dos problemas, fazer escolhas, tomar decisões. Leis são fáceis de produzir e nelas logo se acharão brechas – aliás, já deixadas em aberto de propósito – para salvar corruptos.
Portanto, reação pífia do governo.
Não há como não sentir fastio. Cansaço. O mesmo cansaço cada vez mais óbvio no rosto, no corpo e nos gestos desconexos da presidente.
E la nave va – o título do genial filme de Fellini serve para retratar o momento brasileiro. Vai para onde a nave desgovernada? Não sabemos. A timoneira não tem a menor ideia, embora se agarre ao timão com fúria.
Os brasileiros precisam ter juízo e refletir com cuidado – o momento é grave e não se presta a fanfarronadas, das quais já estamos bem (ou mal) servidos.




sábado, 14 de março de 2015

Panorama visto da Ilha do Desterro

Fuga para o Egito, Ferdinand Demetz, 1902.





Ontem eu e meu irmão Cid passamos a tarde caminhando pelas ruas centrais de Floripa.
Cadê o Cine Ritz que estava aqui? Não está mais aqui. Nele assisti a estreia – barulhenta e escandalosa na época – de Rock around the clock (quem não estava lá não sabe do que se trata e nem adianta explicar aqui), filme em cujas projeções foram quebradas inúmeras poltronas nos cinemas Brasil afora.
E o Cine São José, no outro lado da quadra? Era a sala elegante, cheirosa, com menininhas em flor disparando sedução. O tempo levou. É agora uma coisa chamada Igreja Livre em Jesus. Ainda guarda o mesmo perfil de fachada, mas está visivelmente decadente.
Fugimos dali como se nos ameaçasse algum buraco negro e vamos em direção da igreja matriz para ver a escultura em madeira da Fuga para o Egito, do austríaco Ferdinand Demetz. Vale a pena. O pé da Virgem e o rosto de são José já justificariam a visita.
O diabo é que há barulheira em frente da igreja. Homens e mulheres vestindo camisetas vermelhas. Uniformes. Aliás, todos uniformes. Uns 350 manifestantes. Comeram o mesmo sanduíche e tomaram o mesmo refrigerante. Uns parecem cansados, outros olham para os lados como se estivessem procurando novidades. Um deles urra ao microfone. Bandeiras são agitadas.
Eu e meu irmão fugimos dali como quem foge de um pesadelo ou para o Egito.
Ele resume:
- É um protesto para defender a Dilma e criticar todas as medidas do governo Dilma.
Ah, agora entendi.
Não o sumiço dos cinemas, não a fuga para o Egito, mas o balanço neurastênico da presidente quando fala – num pezinho, noutro pezinho, pra lá, pra cá – as frases que começam e não terminam, os atropelos com a lógica e a linguagem.
É duro sobreviver no século XXI tendo o século XX diante de nossos olhos.

Vamos ver o que nos aguarda no dia 15, domingo. Em que século estaremos?



domingo, 8 de março de 2015

Ah, as mulheres!







A rotina rolava calma no boteco do cego Tião. As mesmas moscas de sempre reunidas no fio elétrico de onde pende uma lâmpada cansada. O final mortiço de uma tarde quente. Tudo em quietude até que o doutor Pamphilo Assumpção Datavênia, o causídico da Vila, venceu a embriaguez, colocou-se de pé e soltou o vozeirão:
- Quanto às mulheres...
Uma pausa solene e tensa tomou conta do boteco. Silêncio cheio de energia. Resultado do espanto causado por tanta habilidade retórica ou pela oscilação da figura magrela de Pamphilo lutando contra algumas doses a mais de uísque.
Ele olhou em volta, examinou cada um dos presentes e emendou:
- ... é preciso aceitar que só acreditam no inacreditável.
Deu-se um monumental silêncio respeitoso. Era um gênio.
Laurinho Telefone largou o copo sobre a mesa. Nezinho deteve o cigarro no ar, a cinza ameaçando cair no sanduíche de mortadela. Carlão Borracheiro não entendeu o que se passava, mas fez cara de quem estava entendendo. Todos aplaudiram.
Ao contrário do que alguns podem pensar, o espanto não decorria do aparente paradoxo da frase, nem da referência às mulheres, sendo que tudo que se diz sobre elas costuma gerar polêmica. O que intrigou a distinta clientela do boteco foi o início da frase, no qual aquele “quanto” parecia indicar que alguma coisa fora dita anteriormente e que agora seria afinal revelada. Que truque retórico seria aquele?
Vou me permitir uma pequena divagação, embora essa crônica, em tempos eletrônicos, deva ter apenas duas páginas ou umas 50 linhas, o que não permite divagações demasiadas. Mas é necessário. Ocorre que Pamphilo é conhecido não apenas como o advogado sem diploma – ou com diploma falsificado, há controvérsias – que defende causas justas ou injustas na Vila, mas também como um profundo sabedor das artes da retórica e das artimanhas das mulheres. Ou seja: o bicho ia pegar.
Nezinho bateu as cinzas do cigarro no chão. Cego Tião rosqueou o vidro de rolmops, velho hábito em momentos de nervosismo. E Laurinho provocou:
- Diga de lá, magistrado.
Havia naquele tratamento de magistrado alguma coisa que incomodou Pamphilo. Gostava de ironias, mas se chateava quando bordejavam suas virtudes jurídicas. O que exigiria outra divagação, essa sobre as suscetibilidades humanas, mesmo em homens inteligentes como o causídico da Vila, mas não vou me desviar.
- Você chega em casa e ela ataca: “Demorou demais. Onde esteve?” Você explica: encontrei um velho amigo na farmácia, o Nunes. Ficamos conversando, fomos tomar um café e perdi a noção do tempo. O Nunes é um grande papo.
E, olhando cada um dos habitantes do boteco, Pamphilo indagou – note-se que ele jamais pergunta. Ele indaga ou argui. Afinal, é um magistrado.
- Qual a reação da mulher?
A resposta da turma foi unânime:
- Não acreditou.
- Perfeito. E passou o dia azucrinando: onde andou? quem encontrou?
Pamphilo virou o resto do conhaque e seguiu:
- Agora, se o prezado disser que desconfiava ter sido abduzido em plena Praça Tiradentes, quando apareceu à sua frente um sujeito imenso, andando em pernas de pau e que mais tarde se descobriria ser um anão minúsculo. O gigante jogou em sua direção uma luz verde saída de uma lanterna. Foi só isso. Você não lembra o que aconteceu nas duas horas seguintes. Amnésia total.
Suspense. Pamphilo lançou de novo a mesma pergunta:
- Qual a reação dela?
- Acreditou! – gritaram todos.
Pamphilo bateu palmas:
- Acreditou e, considerada a luz verde, disse que o anão seria de Marte, onde os homenzinhos são verdes e abduzem tipos distraídos que atravessam praças.
Dito isso, vencido pelo cansaço e pelo conhaque, Pamphilo sentou-se, voltou ao mutismo que o dominara até então e nada mais disse e nem lhe foi perguntado. Fazia sentido, pensaram todos, sem questionar se estavam acreditando no acreditável ou no inacreditável. O resumo foi feito por Laurinho:
- Elas é que são inacreditáveis.




quinta-feira, 5 de março de 2015

Escritor com suas mãos em silêncio.





Caricatura de Roberto Gomes por Jefferson Schnaider (d'après Olea)

Levo ao conhecimento de quem segue as postagens de minhas crônicas que, depois de dezoito anos na ativa e sem interrupção, deixo de colaborar com o jornal Gazeta do Povo. Mudanças editoriais, corte de gastos, permutas à vista, troca de favores, pressão de gente ansiosa por publicar naquele retângulo de jornal, algo assim. Publiquei na Gazeta quase 500 crônicas. Daria um livro de mil e quinhentas páginas, por aí.
A partir de agora, tiro férias do jornal impresso mas não deixo de publicar aqui no blog. As mãos voltarão a tagarelar. E a incomodar.
Há um consolo. Os leitores não precisarão mais comprar o suplemento que acompanhava minhas crônicas, chamado Caderno G. Aqui é grátis.