sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Niède Guidon, um exemplo de cientista






O leitor conhece Niède Guidon? Se não conhece, deveria conhecer. Eu confesso que a conheço menos do que deveria. Então, eis o pouco que aprendi, com a promessa de que vou estudar mais a respeito dessa brasileira notável.
Filha de pai francês e mãe brasileira, Niède Guidon nasceu em Jaú, 1933.  Estudou na USP e fez especialização em arqueologia pré-histórica na Sorbonne, tendo trabalhado no Museu Paulista. Dedicou sua vida ao estudo e preservação do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato no Piauí. Um trabalho de mais de 40 anos.
Niède obteve reconhecimento internacional. Em 2010 recebeu da UNESCO, em Joanesburgo, medalha entregue a pessoas que prestaram trabalhos relevantes na área da pesquisa, divulgação e preservação dos patrimônios culturais da humanidade. No mesmo ano recebeu pela Fundham a medalha de ouro pelo primeiro lugar na premiação para a Cultura do Herity Italia (Organizzazione per la Gestione di Qualità del Patrimonio Culturale - Commissione Nazionale Italiana).
Segundo Niède Guidon, a datação e a forma de povoamento do continente americano ainda não foi devidamente explicado. Em geral os cientistas acreditam que o ser humano chegou ao continente há 15 mil anos. Não é o que pensa Niède. Segundo ela, artefatos comprovariam que tal data deve ser afastada para mais longe, lá por volta de 45.000 anos.
A divergência estaria na dificuldade em se distinguir o que foi criado pela mão humana, os “artefatos”, daquilo que pode ter sido gerado por processos naturais, os chamados “geofatos”. Niède passou a vida pesquisando, mas as evidências ainda não permitem estabelecer um conclusão aceitável por todos. Ela, com sua alma de cientista, diz que isso não a constrange. Sua pesquisa busca comprovações científicas e, caso alguém provar que ela está errada, ficará muito grata. A verdade é que as evidências que seu trabalho produziu têm se mostrado cada vez mais consistentes.
No entanto, os problemas que Niède enfrentou não se relacionam a questões científicas. Estão ligadas ao descaso e a incompreensão das chamadas autoridades políticas diante do trabalho científico, seja ele qual for.
Daí o depoimento sofrido que ela fez recentemente. Explicou que morava em Paris, de onde saiu, cedida pelo governo francês, para trabalhar no Brasil. Trocou, diz ela, Paris pela Serra da Capivara empolgada com a possibilidade de “defender esse patrimônio e não consegui. Realmente um fracasso total”.
Tal decepção se vincula à falta de empenho do Governo Federal para com o Parque. A situação degradou-se a tal ponto que até o final deste ano a Fundação pode fechar. Como sempre, faltam verbas, num momento, aliás, em que a presidente da república – acrescento eu – vai à Suécia para a compra de 36 aviões de caça Gripen NG da empresa sueca Saab. Lá se vão 5,4 bilhões de dólares.

“Pra mim é o fim de tudo isso”, diz Niéde Guidon.

Os recursos que chegam ao projeto são destinados a obras, sendo que a carência é de pessoal. Isso levou à demissão de muitas pessoas. Alguns recursos que vinham da Petrobrás para a manutenção do Parque evaporaram com a decisão do então presidente Lula, em 2008, de mudar a legislação e criar um Fundo em Brasília. Os recursos? “Sumiu tudo”, diz Niède.
A equipe, então composta de 270 funcionários, foi reduzida para 40.
A saída seria o Parque se tornar autossustentável, para o que seria necessário um aeroporto que desenvolvesse o turismo, que conta com 25 mil turistas por ano. O projeto não precisaria do governo se o aeroporto não tivesse demorado 17 (isso mesmo, dezessete) anos para ser construído.  Inaugurado precariamente no dia 27 de outubro passado, não tem nenhuma linha regular ainda, não opera e tem suas obras contestadas pelo MP em função da deterioração de suas instalações ao longo desses anos. A inauguração foi feita com todas as pombas. Foram tiradas fotos e feitas filmagens.
Niède é, quanto a isso, categórica: “Tudo isso veio tarde demais. Nesse parque nacional foram investidos mais de 4 milhões de dólares que a Fundação conseguiu com o Banco Interamericano, com a França, Itália. Como disse a própria Unesco, é uma infraestrutura fantástica, isso pertence ao Brasil e vai ser destruído”.
Diz ela que tal situação não tem nada a ver com qualquer crise pela qual o país esteja passando. O que há é descaso. “O Parque é nacional, sendo de obrigação do governo federal, do qual sempre tivemos apoio, mas agora está em redução completa porque o Brasil está falido”.
Eis a conclusão de mais de quarenta anos de trabalho e dedicação dessa mulher extraordinária, dessa cientista dedicada e competente. Aos 82 anos, ela assim resume sua decepção: "Acreditei que ia dar certo e não deu. Realmente eu estou muito decepcionada com o que estou vendo aí. É uma coisa terrível".
Ela pensa em mudar-se para Paris.


NOTA: Sendo impossível dar todos os detalhes aqui, indico aos interessados pesquisar na Internet sobre Niède Guidon e o Parque Nacional Serra da Capirava, onde estão inclusive alguns dos artigos e entrevistas nos quais me apoiei para escrever esse texto.





quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O incrível homem que não largava o celular








O psiquiatra olhou para ele, pigarreou, e pegou uma ficha. Pigarreou de novo e olhou significativamente para o celular na mão dele. Ele se fez de desentendido.
- Bem, explicou o psiquiatra, preciso preencher uma ficha com seus dados pessoais, algumas informações gerais, antes de começarmos. Mas, me perdoe, seria melhor se o senhor desligasse o celular.
Ele reagiu e segurou o celular junto ao peito.
- Não posso.
- Aguarda alguma ligação importante?
- Nunca se sabe, doutor.
- É verdade, nunca se sabe. Mas é preciso que desligue para podermos conversar...
- Esse é o problema.
O psiquiatra riu. Era desses psiquiatras que riem:
- Entendi. Não sabe como desligar. Eu tive um celular que eu não sabia desligar. Um amigo me ensinou como fazer – e estendeu o braço na sua direção: Quer que eu desligue?
Ele saltou da cadeira, segurando o celular com as duas mãos. Gritou:
- Não!
Foi um não que exigia um ponto de exclamação, tanto que ele pediu desculpas:
- Me desculpe, doutor. Eu sei desligar.
- Então?
- Mas não posso, não consigo.
- Nunca desliga?
- Não. Nem deixo de olhar para ele.
- Por quê?
- Nunca se sabe...
- Entendo, fez o psiquiatra.
Ele voltou a ocupar a cadeira, o celular na mão esquerda, a mão direita pronta para ajuda-lo na fuga caso o médico ameaçasse arrancar o aparelho de sua mão.
- Calma. Calma. Então, me explique umas coisas.
- Vou tentar.
- Vai ao banheiro com ele?
- Sim.
- Ao chuveiro também?
Ele balançou a cabeça: sim, embrulhado num saco plástico.
- Suponho que quando almoça...
- Ele fica em cima da mesa, mesmo nos restaurantes.
- E no cinema? – o psiquiatra afinal achou que ia vencer.
- Não vou ao cinema há uns dois anos.
- Por causa... – o psiquiatra apontou cautelosamente: ...dele?
- Por causa dele.
- No teatro nem pensar?
- Nem pensar.
- Entendo. E quando dirige?
- No bluetooth do carro.
- Ainda bem. E quando dorme?
- Eu durmo, ele não. Fica ao lado do travesseiro.
- E... – o psiquiatra achou que chegara a uma pergunta infalível: ...quando faz sexo?
- Ele também faz.
- Também?
- Na mão esquerda.
- E funciona?
- Não. Esse é o problema: minha namorada já não aceita. Quer colocá-lo na gaveta, debaixo da cama pelo menos. Não consigo.
- Deixou de fazer sexo, então?
Ele abaixou a cabeça, triste:
- Deixei.
- Nunca vi disso, sussurrou o psiquiatra.
- Nem eu, confessou ele.
- Muito sério o seu caso. Já não vai ao cinema, já não faz sexo. O celular sempre ligado.
- Isso mesmo doutor.
O psiquiatra respirou fundo, passou a mão no rosto duas vezes.
- Confesso que...
- Também não sabe o que fazer, doutor?
Foi quando os olhos do psiquiatra brilharam:
- Acho que sei.
Pegou um bloco, uma caneta e escreveu alguma coisa.
- Meu remédio, doutor?
- Não, não. Nada de remédio.
O psiquiatra lhe estendeu a folha que sacou do bloco:
- Esse é o meu telefone. Ligue para mim.
- Quando, doutor?
- Agora.
- Agora?
- Agora.
O tratamento afinal pode começar. Mas cinema, teatro e sexo, nem pensar.