sábado, 24 de janeiro de 2015

Um poema de Ferreira Gullar melhora qualquer dia





Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?



domingo, 18 de janeiro de 2015

Revolta das coisas e demais servomecanismos



Cena de Tempos Modernos, um clássico de Chaplin




Acredito em poucas coisas, entre elas num complô das máquinas e utensílios em geral, sejam carros, bicicletas, tomadas, pés de mesa. Aquilo que o professor Woiski chamava de servomecanismos para nos passar a noção de input e output. Pois de tanto serem servos, um dia se revoltam.
Nunca pifam isoladamente. Reagem em cadeia, solidários. Queima uma lâmpada num dia e, na noite seguinte, outra falece descaradamente. Dissimulados, em seguida é um cano que vaza.
Logo o cano do aquecedor a gás. É preciso chamar encanador, desligar o registro geral do prédio para o conserto. Você descobre que existem seis registros. Qual deles? Ninguém sabe. Não há planta, mapa, ficha técnica, nada. Tentativa e erro, então. Ou seja, erro. O pandemônio se instala.
Há muitos anos, numa viagem a Florianópolis, quando pilotava meu poderoso Opala 73, fui surpreendido por uma chuvarada infernal. O que pifou? O limpador de para-brisa. Poderia ser a maçaneta da porta, mas não. Foi o limpador.
Saí do carro, enfiando os pés na lama, quando uma camionete parou a meu lado. Uma boa alma, pensei. Vai ajudar.
O sujeito desce o vidro do carro e pergunta:
- Que houve, amigo?
- O para-brisa, explico, apontando a vareta inerte.
- Ah, esse troço só encrenca quando chove! – e, às gargalhadas, ele se mandou.
E eu molhado até os ossos. O recurso foi dirigir três quilômetros com a cabeça para fora da janela, a mão esquerda servindo de boné para enfrentar a chuva.
Assim como veio, a chuva se foi. Só então pude recolher a cabeça da janela. Acelerei, logo estaria no camping. Não devia ter acelerado. O Opala avançou sobre um trecho inundado da estrada, uma onda invadiu o motor com o solavanco. Pane geral.
Essa eu já conhecia. Água no carburador. Sai do carro munido de uma chave de fenda. Retirar a tampa, abrir o carburador, enxugar cada uma daquelas peças minúsculas. Resolvo fácil, pensei, furioso. Carburador remontado, giro a chave. Nada. Nova esfregadela de pano. Nova tentativa. Deu.
Retirei o carro da área alagada antes mesmo de fechar a tampa do motor. Foi quando surgiu um carro argentino, que mergulhou no alagado e jogou uma onda de água e lama por cima de mim e do Opala.
O carro argentino pifou. Dele saiu um portenho grande e nervoso, xingando o Brasil e as estradas brasileiras. Só faltou dizer que Maradona era melhor do que Pelé. Pensei em abandoná-lo ali mesmo – cantando Adiós, muchachos – mas, como o carro dele ficara atravessado na estrada, eu não podia sair.
Voltei à chave de fenda, abri o carburador do argentino, enxuguei, remontei. Funcionou. O argentino me olhou admirado e se foi sem agradecer.
Ao retornar ao Opala descobri que a onda de lama argentina havia encharcado o carburador de novo. Outra meia hora de mecânico.
Pois ontem, aqui no meu apartamento, a torneira do tanque de roupa espanou. Solidária, hoje a torneira da cozinha desembestou a pingar. Agora estou examinando previamente o registro do chuveiro. Será que abro? E se espanar? Se passar a noite pingando? Quem dorme com um barulho desses?
Não querem que eu tome banho. Eis o complô.




domingo, 11 de janeiro de 2015

Um milhão e meio de participantes na manifestação em Paris


Há poucos minutos em Paris. Jovens, idosos, homens, mulheres, crianças, franceses, estrangeiros, muçulmanos, católicos, ateus, todos em luta pela liberdade de pensamento e de expressão. A França retoma um lugar decisivo na luta pela Democracia e contra todos os totalitarismos e qualquer forma de fanatismo.








quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ataque terrorista contra o jornal Charlie Hebdo em Paris



Charb, Tignous et Wolinski sont morts dans l'attentat de "Charlie Hebdo"
Entre as doze vítimas do atentado, estão os desenhistas Charb (47 anos),
Tignous (58 anos) et Wolinski (80 anos). 


Ao menos dois homens armados com automáticas atacaram a sede do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris. Entre as doze vítimas, os desenhistas Charb, Cabu, Wolinski e Tignous, além de dois policiais – fala-se também que o economista Bernard Maris, que fazia parte da equipe do jornal, teria sido morto. Considera-se que seria o ataque mais violento realizado na França desde aquele do boulevard du Temple, em 1835,diz o jornal Le Monde.

Testemunhas teriam ouvido os assassinos gritarem “vingamos o profeta”.

O jornal Charlie Hebdo publicou há três anos uma caricatura de Maomé com uma bomba no turbante, o que teria desencadeado uma onda de protestos por parte de islamitas fanáticos, que juraram vingança. Ela veio agora, da forma mais brutal, assassina, desrespeitando todos os princípios segundo os quais buscamos apoiar uma sociedade mais justa e democrática. Desrespeitam as leis, as vidas humanas, a liberdade de opinião e de expressão, as fronteiras internacionais, o direito de pensar, de agir, de defender qualquer coisa que não seja um interpretação estupida da religião Islâmica, na verdade um pretexto, pois todos os líderes mundiais dessa religião são contra tais atentados sangrentos. São simples assassinos fanáticos, criaturas embrutecidas por convicções primitivas, por interpretações absolutamente equivocadas do que sejam religiões, crenças e convicções religiosas.

A verdade é que essa questão, desde que proibiram o livro de Salmon Rushdie, Versos Satânicos, o estopim para desatinos dessa ordem estavam fixados. Fanáticos anunciaram matariam Rushdie em qualquer parte do mundo que estivesse, o que demonstra que não respeitam países, fronteiras, leis, autodeterminação, nada.

Não são grupos religiosos. São assassinos. Não são defensores de qualquer deus, mas criaturas enlouquecidas e messiânicas que precisam expressar o ódio que existe em suas cabeças enlouquecidas.

É preciso que urgentemente todos os países democráticos do mundo se unam para acabar com a ação desses criminosos. É preciso inclusive que os líderes muçulmanos de todos os países onde vivem e são respeitados em sua fé religiosa, se unam para dar um basta a essa estupidez. Não há como se omitir.

Não é por acaso que a vítima foi um jornal. Não é por acaso que fosse um jornal de humor. Fanáticos delirantes não suportam humor, não têm humor, não têm inteligências livres para saber rir, não têm auto-crítica, não respeitam quem pensa de um modo diferente, seja por que motivo for.

Matar Wolinski – para focalizarmos uma só das vítimas, mas vale para todas – é desconhecer tudo que se pode considerar civilização, cultura, arte, espírito crítico, democracia.


Se as ações não forem decisivas contra esses fanáticos e contra países ou grupos que de alguma forma os apoiam, corremos o risco de ver tudo que Wolinski representava explodir mais cedo ou mais tarde.





terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Sem a mentira, o que seria da política?



A Parábola dos Cegos, do pintor flamengo Pieter Bruegel, o Velho (1568).


  
Durante a campanha eleitoral, num debate entre jornalistas, uma observação de um deles me deixou perplexo. Disse ele que o maior erro do candidato Aécio e que lhe custaria a eleição, foi ter dito que tomaria, se eleito, algumas medidas antipopulares.
Quando outro jornalista observou que Aécio havia dito apenas a verdade, recebeu essa resposta:
- Pois foi esse seu erro mais grave.
Simples. Nenhum outro jornalista na roda abriu o bico para discutir a questão. Não se pode dizer a verdade em campanha política. Ponto. A campanha é o reino da mentira.
Verdade e política, é claro, têm sido inimigos ao longo da história e não é de hoje e nem exclusividade do Brasil. Os governantes exigem o direito de mentir como parte dos instrumentos necessários ao exercício da política.
Tal distorção tem origem nas doutrinas que pensam a política entre países em guerra. É claro que em tempos de guerra é essencial esconder a verdade sobre seus recursos, ações e intenções. O inimigo não pode saber delas. São as chamadas mentiras de Estado. Acobertam segredos de Estado.
Arma pensada originalmente como algo contra inimigos externos, os governantes passaram a dirigi-la contra seus governados. Ou seja: qualquer interesse, deslize ou tropeção, por mais mesquinho ou ridículo que seja, pode ser alçado a segredo de Estado, autorizando a mentira. Podem se referir à análise de catástrofes, quebras de safras, número de mortos em desastres, roubalheiras etc. Com o tempo, esse “direito” foi-se expandindo até chegar ao ponto em que hoje se encontra. A mentira é a maior arma a ser usada e pode ser disparada em todas as circunstâncias em que certos fins são colocados como superiores e, portanto, a tudo justificam.
Há quem recorra a Maquiavel para avalizar essa expansão. Mas é bom lembrar que, no livro O Príncipe, onde aparece a noção de que os fins justificam os meios, entre os quais se encontra a mentira, Maquiavel faz logo no início uma advertência. A obra que o leitor vai ler trata de como deve proceder o príncipe em tempos de guerra, quando deve tomar posse e conquistar terras e povos e reinos inimigos. E adverte: em outra obra ele tratou dos deveres do Príncipe quando se trata de lidar com seu próprio povo. Isso é esquecido. Convém.
Hoje vivemos sob o domínio da mentira plena, útil em quaisquer situações. Para tanto, as campanhas são dirigidas por marqueteiros cuja grande virtude é mentir. Sempre. O marqueteiro é um ilusionista do mal: lida com fantasias e aparências. A imagem do político é um produto que deve ser oferecido e deve ser falsificado, se nele há algo de verdadeiro.  São falsas as suas roupas, as suas palavras, as suas afirmações, as suas convicções, as suas promessas. É dito aquilo que poderá conquistar votos e levar ao poder, sendo esse o fim em si.
Por essa razão as campanhas viraram uma encenação fictícia. Um candidato diz que tomará medidas antipopulares, como foi o caso, e o adversário aproveita para apontá-lo como antidemocrático. O primeiro fica no papel de bandido e o segundo no papel de bom sujeito.
Após a eleição, o eleito tomará, com a maior tranquilidade, medidas que foram defendidas pelo seu adversário e que ele próprio sabia necessárias. Isso se deu entre Dilma e Aécio. E não é de duvidar que ocorresse o mesmo se o eleito fosse o segundo.
Mas há antecedentes.
FHC mandou, assim que eleito, que esquecessem o que havia escrito. É verdade que não havia escrito nada de muito relevante, mas foi com o peso de sua carreira acadêmica, com seu verniz de sociólogo, que ele foi eleito. O que negou no dia seguinte à posse, passando a tomar medidas que condenara anteriormente, chegando ao ponto de dizer – no debate da reforma da aposentadoria – que os aposentados eram vagabundos, literalmente, sendo ele mesmo um aposentado. E houve a privataria e a ampliação do segundo mandato para cinco anos, a aquisição de votos etc.
Lula não fez diferente. Num momento em que se julgou acuado, declarou que jamais fora socialista. E aprovou a nova lei da aposentadoria que condenara desde sempre como trama diabólica de FHC, que não conseguira aprova-la. Depois, o mensalão, quando Lula disse que não sabia de nada, com o que, em outro sentido, muitos concordam.
FHC fica com o crédito da estabilização da moeda. Lula fica com o Bolsa Família, ideia original do senador Cristovam Buarque, que foi adotada na falta de outra qualquer, pois não havia plano algum de governo. Deu certo. Criou-se imenso curral eleitoral, como previu Zé Dirceu. Lula virou santidade.
Dilma não fez diferente. Acusou seu adversário de adotar política favorável aos banqueiros – os quais ela e Lula demonizam no discurso, mas que foram os maiores beneficiados de seus governos. E, antes mesmo de assumir o segundo mandato, ela chamou gente antes demonizada como neoliberais para o núcleo mais importante de sua equipe: Fazenda, Banco Central e Planejamento. E leiloou entre partidos da “base”, como se fez desde sempre, suas capitanias hereditárias, os 39 ministérios. E agora anuncia apertos, cortes, e foge dos estilhaços dos escândalos da Petrobrás.
Ou seja, políticos mentem. Sempre. Por isso tenho dito há muito tempo que somos governados por delinquentes.
A mentira é o núcleo central de todas as suas ações e só a partir dela podemos entender o que esses homens e mulheres fazem e por quais razões desejam o poder. Não os separa nenhuma convicção ideológica, nenhum projeto de um país futuro. Eles não têm nada na cabeça além de sede de poder e delírios de grandeza. Os projetos que apresentam, aliás, obedecem aos cochichos de marqueteiros. É aquilo que pode seduzir eleitores – quem for mais convincente, leva.
Por exemplo. Dilma deixou de falar em plebiscito. Os marqueteiros advertiram: não pegou bem, esqueça. Já não tem como anunciar metrôs, trens bala, rodovias e ferrovias. Anuncia então o que um marqueteiro retirou da cartola, o Brasil Pátria Educadora. É ideia requentada, a falta de qualquer outra, anunciada em 2013, mas que naquele momento não caiu bem, tendo sido deixada de lado. Por falta de coisa melhor, vai essa mesmo, é simpático falar em educação. Dito isso, coloca na pasta da educação um ministro conhecido por desatinos diversos e sem qualquer verniz na área educacional. Poderia ter dado essa capitania à ministra que quis proibir e reescrever um livro de Monteiro Lobato, dando demonstração de total ignorância literária e farta incultura. Daria no mesmo.
Jogo de imagens. Truques. Improvisos. Arte marqueteira de iludir os que se dispõem a ser iludidos: incautos, partidários, militantes, inocentes, apoiadores em disponibilidade, espertalhões, currais eleitorais etc.
E nós aqui, perdendo tempo com esse tipo de gente.
Logo agora, em pleno verão, quando todo mundo está na praia, inclusive a Dilma.






domingo, 4 de janeiro de 2015

Lelé lê um livro






_______________________________________________
De: Lelé
Para: Carinha
Assunto: leituras (04/01/2015; 05:47 hrs.
_______________________________________________

Aê, guri!
Tu não imagina o que tô fazendo. Tô lendo um livro!
Obrigado, é claro! Não. Não é obrigado de agradecer, mas obrigado pelo professor... hehehehe... Tá vendo como tô safo com o jogo de palavrinhas! Treinando no Word pra escrever o trabalho. É duro escrever mais do que no WhatsApp ou no Face. Me disse o profe que tenho que escrever duas páginas, já pensou? Tô aqui faz meia hora e olha só: diz o word que escrevi apenas 497 caracteres com espaço. Nem meia página!
Ô coisa difícil!
Pois nem te falo: livro é cheio de palavrinhas, de letrinhas, um monte delas. Tentei contar, mas não consegui. É muita letrinha, na metade perdia a conta. Tá vendo como micro é melhor e mais moderno: ele conta prá gente... hehehehehe.
Pois o novo profe chegou na sala e mandou:
- Vou introduzir vocês na Galáxia de Gutenberg!
Esse Gutenberg (o nome eu aprendi a escrever no Google...) eu nunca havia ouvido falar, Carinha, mas essa de Galáxia não entendi até agora. Ainda se fosse Galaxy tudo bem, aê! Tenho um! Mas Galáxia é coisa das estrelas e em livro não tem estrelas, cara.
E descobri mais essa: livro é mudo. Que nem o cinema mudo que meu pai diz que existiu. Não fala. A gente lê, lê, mas ele não fala. No começo vi que eu dava uma olhada lá em baixo da página sem saber o que eu queria. Ora, queria ver onde estava aquela flechinha de play ou aquele autofalante para aumentar o som. Não tem. É mudo mesmo, o que mostra que micro é muito melhor, né não?
Cara, não tem vídeo em livro, não tem imagem, só letrinhas. Fui reclamar com meu pai e ele disse que a gente imagina. Imagina! Se a gente tem que imaginar pra que livro? Imaginar a gente imagina por aí, de mão abanando, andando de skate, de bike, flanando.
Negócio é que historinha em livro não tem explosão, ninguém voa pelos ares, não tem tiroteio com raio laser. Nem nave atirando nas galáxias, hehehe...
Ainda não entendi porque o livro se chama D. Casmurro, mas tem um tal de Bentinho se atormentando por conta de uma tal de Capitu, guria sem graça, cheia de frescuras. Ela faz dele um palhaço. Cara mais palha esse Bentinho, Carinha!
Fosse um vídeo-game, essa Capitu explodia no primeiro capítulo e cabum! Cabô.
Mas não cabô. Tem mais um monte de páginas pra ler. Monte de letrinhas.
E o profe pediu minha opinião sobre o humor do autor. Essa é muito boa!! Humor desse cara, onde, Carinha?
Não tem um palavrão, uma só sacanagenzinha, um dedo em pé ou fazendo rosquinha, nada. Ninguém avacalha ninguém. Como é que vai ter humor? Acho que esse Machado nunca viu humor na TV! Nunca mesmo. Sem palavrão, imagina! Queria levar esse Machado pra ver um standup.
Vou mandar um trabalho curtinho, meia página. Essa Capitu tá precisando vc sabe do que. O José Dias é um vigário dos piores, o único que se salva na história. Queria mesmo é que livro explodisse, fosse pra outra dimensão, tivesse segredo da pedra sagrada, que Capitu levasse dentada de vampiro, algo assim mais interessante pra vida da gente, sacou? Emoção, sabe comé?
Cê não acha que eu tô certo?
Abr., Lelé.