terça-feira, 29 de setembro de 2015

O casario antigo de Curitiba apodrece a céu aberto





Incêndio começou por volta da 1h20 deste domingo (27) | Rhodrigo Deda
Rua Paula Gomes,325, São Francisco, Curitiba




Vi na internet uma imagem que me pareceu assombrosa. Foi parcialmente incendiada uma casa na rua Paula Gomes, 325, aqui em Curitiba, no domingo passado. Nessa construção funcionou até 2012 a Casa de Portugal. Hoje é de propriedade da Prefeitura Municipal, que a abandonou. Foi então invadida por moradores de rua. Agora, sofre um incêndio.
Essa história já se repetiu inúmeras vezes.
Precisaríamos encontrar uma maneira de responsabilizar a Prefeitura por ter deixado essa e tantas outras casas do centro de Curitiba, muitas centenárias, ao abandono. Não vale culpar moradores de rua ou drogados. O culpado pela destruição e pelo incêndio é, em última análise, o prefeito, juntamente com o encarregado pelo patrimônio, que não sei quem é.
Em países que respeitam e cultivam sua própria história, construções são preservadas, há leis a respeito e vigilância permanente. O proprietário não pode deixa-las ao abandono – se fizer isso e houver um incêndio, ele é criminalmente responsabilizado, pois, além de abandonar um patrimônio, coloca em risco as construções em volta.
Um amigo meu mora em Paris num prédio do século XVII. Há regras rígidas para reformas, conservação, uso – e que ninguém pense que, derrubando o prédio antigo, poderá erguer no local um caixote de cimento qualquer. Terá que refazer a edificação.
Isso em países civilizados, onde vivem pessoas civilizadas, o que inclui prefeitos e administradores.
Uma das desgraças do Brasil é que ninguém é responsável – ou seja, ninguém responde pelo que acontece com bens públicos. Ser um bem público, nesse país, significa ser de ninguém. Pode ser abandonado, destruído, incendiado. Ninguém pagará por isso.
A falta de respeito pelas coisas públicas, unida ao desprezo pela história da cidade, faz com que o passado arquitetônico seja consumido e apodreça a vista de todos.
Um grupo no Facebook, Memória de Curitiba, está colocando na rede fotos e informações a respeito da história da cidade. É louvável. Mas, diante do descaso das chamadas “autoridades”, trata-se de um esforço quixotesco. Alguns buscam registrar a história e outros se encarregam de destruí-la, justo os que deveriam preservá-la. Perdemos todos.
Será que tudo isso acontece por acidente? Por simples esquecimento? Por falta de pessoal ou de verba? Faltará a tal “vontade política” da qual costumam falar políticos e administradores? Ou trata-se de uma destruição calculada que busca abrir espaço para prédios monstrengos que enfeiam as ruas, a cidade e machucam a alma das pessoas?
A inércia, o descaso, a incompetência das “autoridades”, apontam na direção da última hipótese.
O casario antigo de Curitiba está apodrecendo a céu aberto – os exemplos são contados às centenas. Poderia ser recuperado, avivando a memória dos curitibanos, sendo destinado aos mais diversos fins: museus, bibliotecas, auditórios, casas de cultura, órgãos públicos etc.
Ou até mesmo para simplesmente ficar ali, preservado e educativo, para o convívio dos habitantes da cidade.






segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Nau dos Insensatos segundo Tito Costa







Como escreveu o poetinha Vinicius de Moraes,

“A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.”

Quanto ao primeiro verso não há dúvidas, mas o terceiro desperta controvérsias. Não podemos ter certeza de que estejamos salvos, mas é verdade que a vida vem em ondas como o mar.
Por exemplo, a Lava-Jato. Chegamos à décima nona investida das ondas sobre as praias do Brasil. Somadas, dariam um tsunami. Vindas assim, de uma em uma, vão acumulando cansaço e algum tédio. Mal assimilamos uma dessas vagas, outra nos surpreende de calça curta à beira mar. Sequer decoramos os nomes dos ilustres presidiários da última arribação, surgem outros para exigir de nossa memória. E a vida segue.
E não vale perguntar: já prenderam os chefes? O Brasil, como é sabido, não produziu romances policiais de mérito. Nada comparável a Arthur Conan Doyle, Georges Simenon, Agatha Christie, nem mesmo algo que alcance aqueles livrinhos que eram comprados – ainda são? – nas bancas de jornal com as deliciosas histórias de Shell Scott, o cínico herói de Richard S. Prather, com seus cabelos brancos cortados em escovinha e sua cicatriz na face. O Brasil é um país onde Ali Babá e os quarenta ladrões jamais seria escrito. Seriam apenas Os quarenta ladrões. Aqui não tem Ali Babá. Os Chefes seriam eclipsados. Aqui, Al Capone terminaria seus dias sozinho, com todos seus asseclas presos, mas estaria solto.
Assim, são impossíveis romances policiais no Brasil. Apenas vemos as ondas chegarem à praia numa sucessão infindável. Mas dizem que somos o país da esperança. Esperemos.
Enquanto isso, o cenário político se movimenta da mesma forma. Renan e Cunha seguem fazendo tropelias e, citados em processos, não abandonam seus cargos. Ao contrário, mandam e desmandam. Boicotam o que podem, não por convicção, mas por pilantragem, criando problemas para inimigos e aliados. E sobrevivem.
Além deles, há um vice, Temer, que vegeta na moita, como todos os vices, mas de olho na sua chance histórica. Diz uma coisa, outra, se desdiz, sem perder a pose sinistra de vampiro.
E Dilma continua na dança da barata tonta, tal como um capitão de navio que afunda. Mas que continua atirando, inclusive nos próprios pés. A cada pronunciamento surge uma mandioca, uma meta que será dobrada ou não, e essa joia da retórica: “eu queria dizer...” E nunca diz, é claro. A luta com as palavras é a luta mais vã, já dizia Drummond, noutro nível e com outras intenções. Como a presidente não é nenhuma poeta, se limita a discursos defensivos, retórica inventada por Lula: eu não sabia. E acusa inimigos de serem pessimistas, o que a ditadura militar também fazia.
E as chamadas esquerda e direita seguem na mesma batida. A esquerda rosna e a direita late. Não produzem ondas, só marolas. Professores universitários criam textos cada vez mais torturados tentando prever o passado. Mais do mesmo. Fantasias sobre os rumos inevitáveis da história. E sujeitos irados da direita tumultuam berrando que seus adversários são comunistas (KKKKKK, para usarmos um termo técnico do Face Book). Querem que sejam mandados para Cuba, quando Cuba afinal está – com décadas de atraso – tentando sair do atoleiro no qual crenças maníacas a colocaram.
Aliás, esperança era o que se projetava quando da ascensão do PT ao poder. Uma geração de iludidos, entre os quais me incluo, suspirou: lá viriam afinal novos tempos, apesar dos pesares. Não vieram. Veio o avesso do avesso.
Perdemos uma grande oportunidade histórica e cá estamos a remar contra a maré. Lula perdeu a oportunidade de se tornar um estadista capaz de dar uma direção honesta e justa às coisas políticas brasileiras, e os brasileiros perderam o paraíso no qual esperavam chegar.
Por isso a grande síntese dessa triste quadra da vida brasileira é a carta publicada ontem, 20/09, no jornal Folha de São Paulo. Foi escrita por Antonio Tito Costa e dirigida a Lula. Tito Costa, líder político, defensor de Lula no ABC dos tempos de resistência à ditadura militar, prefeito de São Bernardo, do alto de seus 92 anos, concluiu assim a carta, sintetizando o estado político e emocional em que todos nós brasileiros nos encontramos:
Como bem lembrou Frei Betto, seu amigo e colaborador, você, liderando o Partido dos Trabalhadores, abandonou um projeto de Brasil para dedicar-se tão somente a um ambicioso e impatriótico projeto de poder, acomodando-se aos vícios da política tradicional. (....)
Por isso, meu caro Lula, segundo penso, você perdeu a oportunidade histórica de se tornar o verdadeiro líder de um país que ainda busca um caminho de prosperidade, igualdade e solidariedade para todos. Alguma coisa que poderia beirar a utopia, mas perfeitamente factível pelo poder político que você e seu partido detiveram por largo tempo.
Agora, perdido o ensejo de sua consagração como grande liderança de nossa história republicana recente, o operário-estadista, resta à população brasileira o desconsolo de esperar por uma era de dificuldades e incertezas.


PS: quem quiser ler a íntegra da carta de Tito Costa, clique aqui.




sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Andando de bicicleta



Não foi bem isso, mas foi quase




Há alguns anos não andava de bicicleta. Explico: fui vítima de dois roubos de magrelas. Compraria outra? Demorei a me decidir.
Pois cá estou com uma nova bicicleta.
A primeira dificuldade é se readaptar. Embora jamais se esqueça de como se anda de bicicleta, a verdade é que mudou o trânsito, o número e a ferocidade dos carros, a agilidade do ciclista, até mesmo a paciência em pedalar escolhendo alternativas pela cidade. Mas temos as ciclovias. Assim, lá vou eu.
Com alguns cuidados, porém. Trago na memória o acidente que sofri quando tinha dez anos. Ia de bicicleta ao colégio, um trecho de uns quatro quilômetros. Atrasado para a aula de educação física, cujo professor era um baixinho exigente e autoritário, eu dava pedaladas furiosas para chegar a tempo.
A Rua Sete de Setembro – numa Blumenau que não mais existe – estava sendo preparada para a colocação de paralelepípedos e havia sido recoberta por macadame, uns pedregulhos robustos. A última lembrança que guardo é da trepidação sobre o macadame. Foi quando a bicicleta pareceu sumir chão adentro. Curiosamente, sem choques ou dores; como se o tempo parasse e eu mergulhasse numa piscina cheia de nuvens. Eis o que me ficou na minha memória. A morte deve ser assim.
Acordei duas horas depois, num hospital. À minha frente, um médico e um homem que não reconheci. Abri os olhos com dificuldade e o médico me perguntou:
- Como é seu nome, menino?
Disse meu nome e sobrenome, o que causou um sobressalto no homem que estava ao lado do médico.
- Você é o filho do João Gomes? perguntou ele, surpreso.
- Sim.
O homem ficou pasmo. Ele me conhecia, mas não me reconhecera: meu rosto estava em carne viva. Aquele homem, chamado Glauco Olinger, que me recolhera na rua e me trouxera ao hospital, saiu em busca de meu pai, seu amigo.
Os próximos trinta dias foram de idas e vindas ao hospital. Eu era colocado numa cadeira, diante de um alemão imenso, o enfermeiro, que ia retirando com uma pinça os grãos de areia e fragmentos de pedras que ficaram incrustados no meu rosto e que brotavam aos poucos. A cada dia emergiam novos grãos e o enfermeiro os retirava com cuidados que contrastavam com seu gigantismo.
Em casa e sem ir à aula, lembro-me da aflição de minha mãe, que eu não entendia. Mais tarde ela me diria que temera que meu rosto jamais voltasse ao normal. Em seus olhos eu vi que meu estado deveria ser lastimável e procurei o espelho do banheiro para conferir o estrago. O espelho do banheiro havia desaparecido. Também sumira o espelho da sala. O mesmo com o espelho da penteadeira de minha mãe. Ela sumira com todos os espelhos – eu não deveria ver o que acontecera com meu rosto.
O acidente resultara da quebra dos garfos da roda dianteira. A roda avançara sozinha e eu fora jogado contra as pedras nas quais meu rosto se arrastara por uns dois metros. Tornou-se uma ferida só, mas não quebrei um único osso.
Fiquei dias sem ir ao colégio e minha mãe se esforçou para me distrair. Guardo a lembrança de estar jogando bola com ela no quintal e lembro-me de ter surpreendido seu olhar aflito, me observando disfarçadamente. É, no entanto, uma boa lembrança.
Numa outra fase da vida talvez isso me afastasse das bicicletas para sempre. Mas não foi assim, pois pouco tempo depois, com nova bicicleta, lá estava eu com meus amigos realizando o que considerávamos uma proeza digna de heróis.
Tratava-se do seguinte. Subíamos até o alto do Morro da Caixa d’água, que ficava depois da linha do trem, junto à Rua São Paulo. Íamos empurrando as bicicletas – era impossível subir pedalando. Ao chegar lá em cima, em posição de largada, despencávamos morro abaixo. Era um caminho de barro cheio de curvas que descíamos em alta velocidade, sendo que a grande demonstração de coragem era retirar o pé dos pedais.
Explico: aquelas bicicletas não tinham freios manuais, o freio era no pedal. Com os pedais livres e sem freio possível, lá íamos nós, aos berros, derrapando curva após curva.
Loucura total.
Um dia um de meus amigos se perdeu numa curva e foi jogado contra um eucalipto no qual ficou dependurado. Pela inclinação do morro, ficou a uns cinco metros de altura. Foi um trabalho enorme retirá-lo de lá.
Desistimos daquele heroísmo.
Desde então, ao subir numa bicicleta, me assaltam dois sentimentos contraditórios. Um deles é a sensação deliciosa de sentir o vento, a velocidade, a fantasia de liberdade. Outro é o medo. Um medo abissal, sempre presente.
Mas não foi isso que me afastou das bicicletas. Pedalei até virar um adolescente que preferia ir ao cinema, vestir camisas pretas com gola erguida, ver filmes de novos heróis, John Wayne e Elvis Presley. Que iria fazer numa bicicleta, coisa de criança?
Hoje me pergunto: o que faço numa bicicleta, estando a infância tão distante? Pedalo com cuidado, ando pelas ciclovias, atento aos carros e aos pedestres. Não acho mais graça em arriscar meus ossos numa queda ou despencando morro abaixo. O medo me mantém atento. Mas a sensação de liberdade é a mesma. Ainda pedalo como o menino que fui. O medo é bom conselheiro e saboreio a vitória sobre ao menos um dos muitos temores que a vida nos impõe.
E, havendo caminho livre, acelero a magrela.