quarta-feira, 30 de março de 2016

Por que não se discute política no Brasil?








Aparentemente o país das Bruzundangas, como dizia Lima Barreto, está mergulhado num profundo debate político. É o que dizem jornais e televisões e a chamada voz das ruas.
Pois me parece o contrário. Esse triste espetáculo que estamos assistindo não vai além de uma troca de xingamentos, chavões, palavras de ordem, quando não palavrões cabeludos.
O que não é privilégio de qualquer dos partidos ou grupos envolvidos. Todos têm o mesmo comportamento e a mesma concepção obtusa de debate político. Nas ruas e nessa janelinha perversa chamada de redes sociais, é fácil sentir o que se passa e receber o bafo do analfabetismo político brasileiro.
Um de meus “amigos” (jamais entenderei que sentido tem essa palavra no facebook) faz um chamado a democratas verdadeiros, de boa índole e consciência integra para que se não se omitam e manifestem seus pensamentos. E fecha o texto assinando como “poetas contra o golpe”. Daí se deduz que democratas verdadeiros são contra o golpe, sendo que golpe é o processo de impeachment da presidente. Os equívocos são abundantes. Primeiro “não vai ter golpe” é palavra de ordem, não é pensamento, não é argumento. Segundo, quem tem cérebro em atividade, sabe que impeachment não é golpe. Está previsto em lei e até o momento obedece às regras nelas estabelecidas.
E garanto que esse meu “amigo” não é rapaz bobinho. É poeta, autor de livros, pesquisador, professor universitário, participa de organizações de intelectuais etc. Mas comete essa joia de primarismo lógico e político. O PT e demais partidos se pautam por palavras de ordem, não por análises e argumentos. Tais ordens colocam de um lado os “bons” e, de outro, os “maus”. Essa palavra de ordem, no entanto, só hipnotiza a adeptos do PT. Esses bravos militantes precisariam providenciar argumentos que levassem a uma análise diferente dos desastres cometidos pela presidente e por Lula.
A isso devemos somar o outro lado da moeda, onde estão os políticos do PSDB e os desembarcados do PMDB.
Mesmo diante da fragilidade intelectual, administrativa e política de Dilma, essa oposição não consegue desenvolver nenhum programa convincente. Não consegue nem mesmo fazer o que políticos sempre desejam: liderar os movimentos sociais. Como sabemos, as passeatas – exceto as do PT, que são digamos oficiais – recusam a participação de políticos e de partidos, mesmo se esses pretendem apoiar suas reivindicações.
Temos então uma oposição que é chutada das manifestações de rua e manifestações a favor de Dilma onde a cor vermelha, as bandeirinhas, as palavras de ordem, os sanduíches distribuídos, os ônibus etc., estão diretamente ligados a um partido que está no centro das denúncias.
Não bastasse, e para resumir, encontramos ainda outro agrupamento – graças aos deuses, minoritário – onde se homiziam os que clamam contra o “comunismo”.
Todos sabemos que nem a China e nem Cuba são mais comunistas, mas esses idiotas acham que o PT é comunista. Entenda-se. Com tal pretexto paranoide pedem o retorno dos militares ao poder. Só muita ignorância histórica para sustentar apelos desse tipo. O PT não é comunista. É um espelho de Lula, um político pragmático, sem convicções éticas, sem projetos de nação. Lula revelou-se um populista que manobra os sem terra e sem teto a custa de uma concepção assistencialista do poder.
No entanto, uma direita absolutamente anacrônica urra desejando regime ditatorial no poder.
Eis os três grupos que se digladiam, entre xingamentos, nisso que não é debate político algum. Já escrevi várias vezes: o Brasil é um país sem ossatura filosófica, portanto incapaz de desenvolver convicções ideológicas consistentes, análises históricas objetivas, políticas que sejam debatidas tendo em vista o chamado bem comum.
Aliás, o que mais falta nesses tempos nebulosos é bem comum. Cada um luta pelo seu próprio bem. A presidente se agarra ao poder com unhas e dentes. Partidos políticos esgotam-se em lutar pelo poder. E alguns trogloditas, de convicções nazifascistas, anseiam por um estado militarista.
Não é de estranhar. Analisando as últimas quatro décadas de história brasileira, é fácil perceber que nosso triste país tropical foi submetido a um processo deliberado de emburrecimento cultural e político. O resultado não poderia ter sido outro, infelizmente.


quinta-feira, 3 de março de 2016

Palavras são seres mutantes






As palavras têm essas virtudes: são mutantes e surpreendentes. Difícil aprisionar uma palavra. Segundo o dicionário, significam uma ou muitas coisas, mas, quando usadas, disparam novos sentidos. Surpreendem.
Por conta disso lembrei-me de meu pai. Sem ser um conhecedor da língua inglesa, ele implicava com o que julgava ser uma confusão norte-americana própria de imperialistas. Uma mesma palavra, dizia ele, escrita do mesmo jeito, mas pronunciada de outra maneira, significa coisas diferentes. E dava lá uns exemplos dos quais já não me lembro. Fazia isso se divertindo. E eu me divertia com as brincadeiras dele.
Até que um dia ele saiu apressado dizendo que precisava levar uma camisa ao alfaiate para uma reforma. Naquele tempo as roupas eram levadas aos alfaiates para reformas. Golas puídas eram viradas do outro lado, mangas frouxas eram encurtadas, remendos eram feitos aqui e ali, sobretudo quando o ali era o cotovelo. Valia a pena. A roupa voltava nova e era usada por mais alguns anos.
Hoje, é claro, não se reforma roupa. É mais fácil comprar outra e, problema adicional, já não se encontra quem saiba reformar uma camisa com refinamentos de artesão. Os alfaiates desapareceram pelo que sei. No tempo de meu pai, eles eram eficientes e tinham convicções anarquistas. Havia uma inexplicável leva de alfaiates anarquistas no mundo e no Brasil, o que não agradava a meu pai, embora lhes admirasse a habilidade com tesouras e agulhas. Implicava com o fato de que, sendo anarquistas, queriam revolução e não reformas, o que somava outro significado.
Mas o problema é que, ao ouvir a palavra reforma dita por meu pai, me ocorreu que seu Durval, um vizinho aposentado e resmungão, era conhecido como “militar reformado”. Eu o observava a cuidar do jardim e pensava: não foi muito bem reformado esse seu Durval. Meio curvado, uma perna presa e outra solta, o que fazia com que mancasse. Além do mau humor.
Pois aprendi então que os militares, com a idade, eram reformados. Continuavam do mesmo jeito, infelizmente, mas reformados.
Mas havia ainda outro imbróglio.
Morávamos em Blumenau, cidade germânica, cheia de luteranos. Desde pequeno convivi com luteranos sem qualquer problema. Pareciam com o seu Durval pelo ar casmurro e dureza de caráter, mas eram competentes e sérios. Bastava.
Mas eis o problema que fui descobrir mais adiante: resultavam de uma reforma. Ou melhor, Reforma. Quem nos explicou isso em detalhes foi o professor Mosimann, de História – aliás, um professor admirável, uma espécie de São Francisco de Assis que aturava e contornava com sábia delicadeza as estripulias dos alunos, que eram, eu inclusive, umas pestes.
Pois a reforma protestante empreendida a partir das 95 teses de Martinho Lutero, um monge franciscano exigente e reto como todo alemão convicto, desencadeou uma Reforma. E lá estávamos nós vivendo essa mistura saudável de religiões sem sectarismo.
Então, minha cabeça de menino ficava assim: havia reforma, reforma e Reforma. Das roupas, dos militares idosos e da religião. Sem falar da reforma que era diferente da revolução. O que colocava uma interrogação nas teorias brincalhonas de meu pai, que gostava de fazer piada com tudo, menos com religião. Não acreditava em nenhuma, mas achava que era preciso respeitar a todas elas.
E eu acreditava no quê? Até hoje não sei. A Reforma de Lutero me parecia fazer sentido, pois a ideia de se insurgir contra poderes constituídos já me parecia muito atraente. A reforma dos militares fazia sentido; estava na hora de colocar os milicos velhinhos num pijama, ainda que continuassem os mesmos. Quanto aos limites entre reforma e revolução o tempo se encarregaria de dissolver. Já a reforma das roupas eu achava desconfortável. Parecia meio triste reformá-las, uma confissão de que não se tinha dinheiro para comprar roupas novas.
Mas a verdade é que não tínhamos dinheiro para certos gastos e naquele tempo o consumismo ainda não havia tragado todos os nossos cuidados com a simplicidade franciscana do professor Mosimann.
Éramos mais modestos, digamos. Mas as palavras eram seres vivos, mutantes, e se prestavam a usos os mais diversos. Foi o que aprendi naquele momento. Mais adiante fui descobrir que era por isso que possuíam muita beleza e uma riqueza sem fim.