quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Nobel para Bob Dylan e cartão vermelho para a Literatura.




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Só curto comentar esse tipo de notícia com algumas semanas de distância. Enquanto isso me divirto com os comentários e as bobagens que são ditas pelo caminho e, tratando-se de literatura, me engasgo de tanto rir com aqueles que tomam carona em um fato ligado às letras para fazer pose de inteligente.
Com o prêmio Nobel conferido a Bob Dylan deu-se o mesmo. Os jornalistas – criaturas atarantadas em busca do inédito – se limitaram às loas e ao mantra inevitável: “o primeiro cantor e compositor a receber o Nobel de Literatura”.
Então, vamos lá.
Antes de mais nada, sou fã de Bob Dylan. Não só das letras quilométricas como das melodias, que costumam ser deliciosas e hipnóticas. Mas também gosto dele por uma esquisitice minha: gosto de vozes estranhas, esquisitas, rascantes, roucas – ou de vozes que me parecem assim. Por exemplo: Nelson Cavaquinho, João Donato, Guinga, Cássia Eller, Billie Holiday. Além de outras qualidades, gosto da estranheza de certas vozes. Bob Dylan é assim.
Além disso, embora tenha sido batizado com um nome monumental – Robert Allen Zimmerman – teve o bom gosto de se batizar Bob Dylan em homenagem ao grande poeta galês chamado Dylan Thomas.
Por essas e por outras, gosto do Dylan.
Mas, nada me parece justificar esse prêmio Nobel. Ou melhor, o prêmio dado a Dylan não acrescenta nada a ele e manifesta uma coisa que a meu ver escapou a todos os jornalistas e críticos que abordaram o assunto: a literatura acabou.
Acabou não como produção de certos indivíduos que insistem em escrever obras literariamente valiosas, mas como fenômeno social. E isso nada tem a ver com sucesso ou vendagem; refiro-me à presença cultural da palavra escrita. Aliás, o mesmo aconteceu com o cinema. O cineasta Héctor Babenco, pouco antes de falecer, disse literalmente: “o cinema, tal como nós o entendíamos, está morto”.
Eis a lição involuntária que o Nobel deu a respeito do papel da literatura no mundo atual. Se no cinema o que resta são explosões, efeitos especiais, mundos fantásticos, delírios sobre reinos e deuses e heróis e aventuras, quando não uma óbvia glamorização da violência, na literatura restou a retomada do romance fácil, baseado em enredos, na identificação imediata dos conflitos e de personagens planos, tudo misturado com uma receita de reportagem jornalística e oportunista ora sobre etnias, ora sobre sexualidades, ora sobre crianças abandonadas, ora sobre imigrantes, ora sobre estupro etc.
Ou seja, o cinema tal como o conceberam Fellini, Kurosawa, Chaplin, Orson Wells, John Ford, Antonioni etc. etc., faleceu. E a literatura, tal como a conceberam Tolstói, Dostoievski, Kafka, Proust, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Dalton Trevisan e João Cabral de Mello Neto etc. etc., também acabou. Restam pruridos palavrísticos, brincadeiras gratuitas, poemetos a consolar espíritos mais simples, e uma grande vontade de aparecer, de ser celebridade por parte de escrevinhantes.
Por isso, ao dar o prêmio a um cantor/compositor (por mais que ele mereça todos os elogios enquanto tal) significa que a literatura acabou. E me perdoem citar aqui, em causa própria, o personagem de um romance que publiquei em 2011, O conhecimento de Anatol Kraft. Dizia o sábio Anatol: a literatura acabou.
Resta um amontoado de historinhas para boi dormir. Com as exceções conhecidas, o que se publica é literatura água com açúcar, lamentos juvenis, relatos de depressões tardias, truques narrativos de olho numa adaptação para o cinema ou para a televisão etc. Não têm o impacto nem a importância que tiveram os escritores de uma era literária que parece ter chegado ao fim.
Razão pela qual os escritores que hoje insistem em escrever literatura de valor perderam totalmente a penetração cultural, ou seja, não repercutem socialmente, não criam polêmicas e debates, não ajudam à sociedade a se reinventar. Dada a crescente onda de analfabetismo que assola o mundo dito civilizado, ninguém os lê, nem pensa neles, são cartas fora do baralho. O que eles pensam e escrevem não tem a menor importância.
Eis o que o Nobel dado a Bob Dylan significa.





terça-feira, 18 de outubro de 2016

Era uma vez meu pai







Meu pai foi criador e personagem de uma infinidade de histórias. Algumas delas ele transformou em crônicas publicadas em jornais, reunidas em livro editado em 2003, quando faria cem anos. Aliás, não chegou aos cem anos contrariado, pois tinha toda a disposição para continuar vivendo. Era olhar para ele para se perceber que não tinha a menor intenção de morrer.
Mas, além de casos que viraram livro, nos deixou várias historietas que viveu ou inventou – ou que nós, os filhos, inventamos para contar a respeito dele. Era, como se vê, uma criatura ficcional.
Uma delas.
Ele era devoto de uma miraculosa fórmula que levava o nome de loção Pindorama, que eu imaginava já extinta, mas que o Google me informa que ainda circula por aí. Pois ele besuntava os cabelos com aquela loção e, quando eu e meu irmão Orlando tirávamos sarro dele, dizendo que pintava os cabelos, ele nos repreendia:
- Não pinto os cabelos. Essa loção não é tintura. Ela faz com que os cabelos não embranqueçam.
Ao falecer, tendo passado alguns dias no hospital sem poder aplicar a loção milagrosa, meu irmão notou que seus cabelos branqueavam. Alguém diria que isso desmentia suas teorias sobre a loção, mas creio que foi um último recado que nos deixou. Talvez, fingindo de morto, nos dissesse:
- Estão vendo? Sem loção, os cabelos ficam brancos.
O fato é que meu irmão mais velho, Cid, fez durante muito tempo uso da mesma loção, com a qual ostentava os cabelos negros do pai. Mas um dia ele cansou de usar com aquela gororoba e a abandonou. Hoje ostenta uma bela cabeça branca. Só isso impede que imaginemos que seja nosso pai redivivo. É a cópia.
Segundo uma lenda familiar, meu pai conservou vida afora a fama de namorador incansável. Em Lajes morou numa casa que ficava ao lado da residência de uma distinta senhora local com quem começou um caso. Eram casas próximas, com sótão, de tal modo que as duas janelas superiores davam de frente uma para a outra. Para escapar à vigilância de vizinhos, ele providenciou uma taboa e, estando o marido da distinta senhora em viagem, colocava a taboa de uma janela a outra e a atravessava qual malabarista no meio da noite para só voltar depois de mais uma batalha amorosa gloriosamente vencida.
Noutra ocasião, bateram à porta de sua casa, pedindo socorro. Ele abriu a porta e deu com um homem ferido a bala, que disse fugir de um marido traído.
- Vão me matar, disse o homem. Por favor, me salve!
Meu pai depositou o desconhecido debaixo da cama. Uma hora depois, um grupo armado chegou em busca do don Juan. Meu pai abriu a porta bocejando e, ao ouvir que procuravam  um fugitivo desavergonhado, reclamou ter sido acordado por conta de uma bobagem. E enxotou a tropa de vingadores.
Esse don Juan fujão era um espanhol chamado André Martinez, que se tornou um grande amigo de meu pai e, de certa forma, seu devedor e espelho. Afinal, praticavam o mesmo esporte.
Anos depois, André Martinez virou meu padrinho de crisma, uma coisa tão antiga quanto a loção Pindorama.