sábado, 24 de junho de 2017

Filme A Casa de Lúcia, de João Marcelo e Lúcia Luz em Festivais do Rio e em São Paulo






Nos dias 25 e 27 de Junho, A Casa de Lucia participará da Mostra Olhares Sobre o Refúgio, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
O filme estreiou no Olhar de Cinema, Curitiba International Film Festival, com ótima recepção de crítica e público.
A Casa de Lucia, Documentário, 2017, 70’.
São Paulo: Domingo, 25 de junho, às 19hs - Local: CineSesc (Rua Augusta, 2.075) 
 Rio de Janeiro: Terça-Feira, 27 de junho, às 19hs - Local: Oi Futuro (Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo)
“A Casa de Lucia” de João Marcelo e Lucia Luz, longa da Mostra Competitiva Outros Olhares, que teve sua estreia mundial no 6º Olhar de Cinema em Curitiba, é um interessante relato intimista e testemunhal da codiretora que dá nome ao filme sobre sua condição de refugiada no Brasil, tanto quanto é ao mesmo tempo uma curiosa triangulação entre três diferentes países e culturas que podem estar muito mais próximos como enfoque humano do que seus problemas podem aparentar.”
Filippo Pitanga, Almanaque Virtual, UOL.
"Um projeto comum de documentário que, graças à urgência do acaso, muda a sua ideia inicial de roteiro e, consequentemente, a montagem. O que deveria ser um relato sobre as condições de Lucia como imigrante, torna-se um filme em que ela mesma se dirige, sobre o trânsito de vir e voltar dois anos depois e os efeitos disso na construção de sua própria subjetividade.”
Emanuela Siqueira, Quadro por Quadro.
"Segundo Aaron Cutler, curador do festival (Olhar de Cinema), há na programação deste ano 8 filmes cuja temática é a situação dos refugiados de guerra, sendo A Casa de Lucia (2017) o filme chave desta seleção.”
Samantha Brasil, Delirium Nerd.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

O sujeito que sabe demais


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O esporte favorito do ser humano é passar rasteira no próximo. Trata-se de velha prática com a qual a humanidade se diverte há séculos. Há variações neste jogo, mudando apenas o grau de crueldade, de sadismo ou de graça com que é praticado.
Uma das formas menos cruentas, mas não menos dolorosa, é a praticada pelo sujeito bem informado. Aquele que sabe de tudo e dispõe de informações secretas. Tipo expansivo, falastrão, de sorrisos malandros. Não raro cutuca nossas costelas com o cotovelo para pontuar as maldades que anuncia.
Digamos que estamos no calçadão da Boca Maldita batendo um papo sem compromisso e comentamos que, nestes tempos bicudos, ao menos a felicidade daquele conhecido casal cuja foto ilustra o jornal da banca da esquina está em alta. O sujeito que sabe de tudo nos olha com piedade e sorriso complacente:
- Não é bem assim. Ficam juntos por conveniência.
E nos explica as farsas e tramoias financeiras que mantêm o falso casamento de pé. Pronto. Lá se foi mais uma de nossas ilusões. Ninguém sabia. Só ele.
Se a questão é política, fazemos um esforço enorme – somos ingênuos, lembra? – para citar ao menos o nome de um deputado ou senador honesto. Depois de longo esforço, citamos um que ainda nos permite acreditar na espécie humana, da qual imaginamos que os políticos façam parte. Ele ataca:
- Que nada...
E nos explica que o tal político é ligado a grupos financeiros. Seus projetos beneficiam suas próprias empresas, todas em nome de laranjas. E arremata:
- Fortuna feita à base de falcatruas.
- Com aquela cara de santo?
- De santo? Cara de pau, isto sim.
Pronto, nem o deputado santinho se salva neste mundo cruel.
Mas insistimos. Lá pelas tantas, damos uma explicação para o sucesso de certo personagem. Claro, nos baseamos em coisas lidas na mídia, onde saltitam elogios a seu caráter empreendedor.
Ele coloca mão piedosa em nosso ombro:
- Você não sabia?
Pronto. Xeque-mate. Só ele sabe. E continua:
- Essas notas na mídia são pagas por ele. Um craque na autopromoção.
- Jura?
- Você não sabia?!
Inútil responder: é claro que não sabia. Só ele sabe.
- Deixa eu te contar uma coisa – diz ele, enquanto nos obriga a dar alguns passos pelo calçadão, como se nos conduzisse a um cadafalso e acomodasse nossa cabeça na direção da lâmina da guilhotina. – Há até uma tabela para estas notas. Com foto, sem foto, com cinco ou dez linhas, com elogios rasgados ou proezas jamais realizadas por ele.
- Não me diga!
- Digo. E digo mais. Quem faz aqueles projetos e escreve aqueles artigos é uma equipe paga por ele. Ele é praticamente analfabeto.
- Como é que você sabe disso?
Ele nos envolve num abraço sufocante:
- Ah, meu caro, como você é ingênuo!
E nos aniquila com a sutileza de um tiro de bazuca:
- Já não existe gente ingênua como você nesse mundo.
Dito isso, anuncia ter um encontro secreto com algum figurão e sai calçada afora, surfando o petit-pavé sem tropicar, cuidadoso e bailarino, distribuindo cumprimentos educados para todos os lados.




segunda-feira, 5 de junho de 2017

O Professor de Deus




Naquela remota cidadezinha do Egito havia um homem que assumira, há muito, o papel de professor de Deus.
Ignora-se como chegara ao posto. Desde menino se julgava o dono da verdade. Alkmerd Tarphat nascera com ar de quem detinha o segredo do mundo. Rosto miúdo e rígido, carrancudo e tenso, distribuía verdades aos que topavam com ele. Pontificava a respeito de assuntos diversos e mesmo sobre aqueles com os quais entrava em contato pela primeira vez.
- Eu penso que... - era assim que iniciava suas perorações.
Havia, no entanto, algo de peculiar nas verdades enunciadas por Alkmerd: partiam sempre das mesmas premissas e chegavam sempre às mesmas conclusões. Tal monotonia argumentativa era compensada, diziam seus admiradores, pela habilidade em colocar entre premissas e conclusão um reluzente sanduíche dialético. Assim:
- Sabemos que... - o que significava: eu sei que - em última análise esta questão se resume à estrutura subjacente. E qual é? A de sempre, como já demonstrei. - E concluía: - Como vimos, salvo opiniões de energúmenos, esta questão fica explicada pela estrutura subjacente já referida.
Estivesse em questão a quadratura do círculo, o melhor pintor impressionista, a matemática moderna, o jornalismo contemporâneo, as mais desenfreadas posições sexuais, a mata Atlântica ou os destinos da humanidade, Alkmerd partia e chegava ao mesmo lugar, mergulhado na verdade absoluta.
Com o tempo, o número de seus admiradores só fez crescer e de todas as regiões do Egito e demais terras conhecidas vinham caravanas de discípulos para ouvi-lo. O que criou problemas religiosos. Mesmo não incentivando à desobediência, - já que a religião está estruturalmente determinada etc. etc., donde se conclui que etc. etc. - seus ouvintes acabavam sem tempo para a fé, pois Alkmerd falava horas seguidas, dependendo da relevância do tema e das estações do ano.
Tamanha foi a deserção de fiéis, que um dia o próprio Deus, que na época se chamava Rá, veio ouvi-lo. Deus sentou-se numa cadeirinha de palha e Alkmerd continuou falando com a mesma serenidade, como se nada de excepcional estivesse acontecendo. Ao final, Deus solicitou para estar reservadamente com ele – ou Ele, como preferia.
A entrevista foi concedida, mas antes Alkmerd impôs uma espera de mais de três horas. Humilde e paciente, Deus aproveitou para conversar com seus vizinhos de fila: uma senhora com unha encravada e um empresário endividado. Ao final da noite, foi atendido.
- O que o senhor deseja? perguntou Alkmerd, usando senhor com inicial minúscula.
- Eu, desde sempre, e isso faz tempo... – disse Deus com refinado humor, o que escapou a Alkmerd -, me torturo com algumas questões, digamos, metafísicas ou meta-mim-mesmo. Por exemplo: por que criei o mundo? Embora tenha sentido um impulso irresistível, não entendo porque rompi a solidão em que vivia desde a mais remota eternidade. E tenho outras dúvidas...
- Por gentileza, uma pergunta de cada vez. Questão de método – cortou Alkmerd.
- Entendo, resignou-se Deus, calando-se.
Alkmerd passou a dissertar. Depois da frase de abertura – eu penso que tudo se resume etc. - censurou Deus por ter agido de modo irracional, cedendo a um impulso cuja motivação desconhecia. O irracional perverte os melhores projetos, declarou. Depois do pito em Deus, fez uma extensa conclusão que, em resumo, dizia que a estrutura subjacente, em última análise etc. etc.
Deus indagou se podia fazer outra pergunta. Alkmerd consentiu.
- Há outra coisa que não entendo. Para que criei o universo e, nele, o homem? Isso me causa noites de insônia – e minhas noites, falando nisso, também são eternas...
Alkmerd, sem entender a piadinha, voltou a censurar o irracionalismo de Deus. Até um pipoqueiro, disse, sabe por que e para que faz pipoca - e atacou a argumentação com fôlego renovado. Fez a introdução, desenvolveu, concluiu.
Alguma coisa, porém, se alterara na expressão de Deus.
- Sábio Alkmerd Tarphat, o senhor acaba de me dar a mesma resposta para uma pergunta diferente. Além do mais, tudo lhe parece óbvio. A mesma estrutura subjacente...
- É a ordem universal das coisas, meu caro!
- Mas quem lhe disse isso?
- Eu mesmo.
- E isso vale para a unha encravada, a economia e a origem do universo?
- Seguramente.
Foi quando Deus se levantou, respirou fundo e disse:
- Ora, senhor Alkmerd, o senhor vá à merda.
Disparada a frase, Deus voltou aos céus, onde continuou todo-poderoso e com a consciência tranquila.