domingo, 30 de julho de 2017

Acredita em benzimentos?






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Eu tinha 12 anos. Certo dia minha mãe viu verrugas em meus dedos e pés. Ficou horrorizada. Havia uma crença de que verrugas, se esfoladas, poderiam evoluir para uma doença gravíssima, aquela, cujo nome jamais era pronunciado.
Dias após, a chamado de minha mãe, chegou lá em casa a Maria Palmeira.
Era uma mestiça de bugres e negros, pequenina, talvez um metro e cinquenta, cabelos enrolados, e troncuda feito um barril.
A razão de sua notoriedade estava no sobrenome que recebeu, já que seu nome de origem, se teve algum, não era conhecido. Maria Palmeira era assim chamada por ser torcedora fanática do time de futebol local. Segundo a lenda, numa Blumenau dividida, era o time dos brasileiros, ou seja, negros, crioulos e, no caso de Maria, índios. Os adversários eram torcedores do Olímpico, os alemães. Meias verdades, como tudo no mundo do futebol.
O seu sustento saía das verduras e frutas que cultivava e que oferecia numa carroça oscilante puxada por um cavalinho petiço e triste. Tinha enorme freguesia, pela qualidade dos alimentos e pela simpatia.
Pois Maria Palmeira ia a todos os jogos do Palmeiras e ficava – naqueles tempos sem alambrado e policiamento – na linha do campo, aos berros, incentivando os jogadores, xingando os adversários e dizendo coisas terríveis a respeito da mãe do juiz. Com um detalhe: ia sempre munida de um guarda-chuva, houvesse sol ou chuva. Aliás, não abria o guarda-chuva jamais. Não era um abrigo, era uma arma que agitava com fúria.
Foi numa dessas que ela invadiu o campo e deu várias guarda-chuvadas na cabeça do juiz, que, segundo ela, marcara pênalti inexistente. A partir desse dia foi proibida de entrar no estádio com guarda chuva, houvesse sol ou chuva.
Pois Maria Palmeira chegou lá em casa quando já anoitecia. No céu, uma lua cheia de luz. Ela fez com que eu sentasse num degrau da escada dos fundos, de onde a lua parecia ainda mais brilhante, e retirou do bolso um pedaço de carne.
- Cadê birruga? – perguntou.
Mostrei minhas mãos e meus pés.
Ela ordenou:
- Quieto.
Fiquei quieto. Ela começou uma reza sussurrada e cantante enquanto fazia cruzes com a carne sobre cada uma das verrugas. Ela olhava a lua e rezava como se estivesse em transe. Comecei a provocar:
- Cuidado, Maria.
- Que foi, guri?
- Com tanto benzimento, vai cair o meu dedo!
- Te cala, excomungado!
Continuei provocando:
- Ih, meu pé está dormente. Vai cair!
- Ô desinfeliz, cala a boca!
E assim prosseguimos. Ela rezando, eu debochando. Ela de olho na lua e eu dando risadas. Terminado o ritual, Maria colocou o pedaço de carne no bolso e sumiu num passo curto e ligeirinho. Perguntei o que faria com a carne, mas ela não respondeu. Minha mãe me contou: ela iria colocar a carne num formigueiro. E deu uma semana de prazo para as verrugas.
Cinco dias depois, minha mãe olhou para minha mão e se assustou:
- Cadê as verrugas?!
Haviam sumido. Todas. Sem deixar sinal.
Ainda não sei se acredito nos poderes das rezas de Maria Palmeira, mas nunca mais duvidei de benzedeiras.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Estranho amor pelo desconto




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A cada dia temos novos motivos para levar sustos e tropeçar no inaudito. Aliás, sempre pensei que o inaudito fosse a designação de um tipo de arapuca que surge no meio do caminho, havendo ou não pedra no meio do caminho.
Somos atropelados pelo inaudito.
Dia destes recebi uma mensagem inaudita enviada por uma livraria virtual. Como sou tarado por livros, não reclamo destas invasões. Que não interferem nas minhas compras, embora a chuva de e-mails seja diária e furiosa.
Sinto-me uma caça. Sabem meu nome, meu endereço, falam diretamente comigo como se eu fosse o único destinatário de suas mensagens.
Mas o inaudito não é este. É outro. E ele me leva a pensar no mundinho distorcido e desolador em que vivemos. Dizia o e-mail: “Tem como não amar títulos com até 80% de desconto?”
É verdade que o desconto é tentador, restando saber se é real ou maquiado.
Mas também não foi isso que me levou ao inaudito.
O problema está na lógica da frase, que conduziu seu redator ao delírio narcísico. Diz ele, o redator – ou ela, a frase – “como não amar títulos” e oferece a razão: “com até 80% de desconto”.
A palavra amor já foi usada para muitas barbaridades. Para justificar atitudes possessivas, agressões, assassinatos. Para aflorar na boca de atores e atrizes que dizem fazer tudo “com muito amor”. Se forem cozinheiros, cozinham com amor, o tempero principal de seus pratos. Há também o amor pelo time de futebol, animais, natureza, trabalho, pátria e seleção. Muito amor, como se vê.
Pasmo, me perguntei: amar pelos descontos? Quer dizer que um leitor abre um e-mail com ofertas de livros e, vendo descontos avantajados, cai de amores pelos títulos oferecidos?
Estamos num mundinho muito estranho. Que se ame a mulher amada pelos seus olhos ou pelo conjunto da obra, entendo. Que se ame seu país porque ali se nasceu, cresceu e aprendeu o básico da vida, tudo bem.
Mas amar descontos? Amar títulos pelos descontos?
Eis o que eu queria dizer: é o inaudito.
O ser humano sempre foi bicho desconcertante.
A primeira revolução humana começou com o domínio do fogo. Embora resultado da engenhosidade humana, ele foi entronizado como novo deus. O homem ajoelhou-se diante dele. Esqueceu que ele próprio inventara como dominá-lo.
A invenção revolucionária atual é a avalanche ansiosa do hiperconsumo. É preciso se empanturrar de coisas, roupas, carros, bijuterias, eletrodomésticos, bugigangas.
O celular é o melhor símbolo dessa alienação. Se uma catástrofe exterminar com os celulares, teremos o maior surto de desespero na face da terra. Entregues a si mesmos, os humanos já não tolerarão o vizinho e não se olharão no espelho. O confronto final será inevitável.
Eis o inaudito: quem seria capaz de amar descontos? Que ideia é essa de amor? Que ideia de livros? Que ideia de cultura? Que ideia de si mesmo? Que criatura comprará um livro por conta do apelo erótico de um desconto?
Estou exagerando?
Acho que não. Quem exagerou foi o redator dessa triste e involuntária síntese perfeita do mundo em que vivemos.