sábado, 8 de dezembro de 2018

Malucos e zumbis




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Há não muito tempo, cada cidade tinha seus malucos de estimação, com os quais a população convivia em paz. Eles faziam parte do folclore local.
Ainda criança, conheci um tipo desses em Blumenau. Era um mulato alto, forte, de rosto muito bonito. Carregava um saco de aniagem nas costas e todos o tratavam pelo apelido, Guarapuvu, nome de árvore notável pelo porte e beleza. Falava pouco, mas, quando falava, construía frases bem pensadas e elegantes, além de ter um vocabulário de muito boa qualidade.
No entanto, morava na rua, dormia nas calçadas. Vivia do que lhe davam.
Alguns juravam que tinha formação universitária, tendo sido professor da rede pública, o que na época era coisa da mais alta qualidade.
Ocorre que certo dia ele voltou para casa mais cedo e encontrou a mulher naquilo que Lupicínio Rodrigues descreveu como “nos braços de um outro qualquer”.
Foi quando começaram suas andanças pelo mundo.
Em Curitiba também tivemos malucos folclóricos e admiráveis. O mais genial e extravagante de todos foi Gilda, nome sob o qual residia Rubens Aparecido Rinque. Ele - ou melhor, ela – era divertida, dava gargalhadas e debochava de todo mundo, aprontando correrias ao ameaçar um beijo na boca de algum passante. Pintava os lábios com batom vermelho vivo, com o qual besuntava não apenas os lábios, mas seus arredores, produzindo um bocão exuberante.
Pois Gilda era alegre, muito antes que o termo gay se generalizasse. Era divertida, abusada, debochada, irreverente, desrespeitosa, lambendo os próprios lábios com gulodice, anunciando ser sedenta de sexo e de orgias. Encontrou a morte em 1983, talvez numa briga, numa casa abandonada da Desembargador Motta.
Gilda era amada por muitos, mas despertava a fúria dos machões e colocava em xeque o caráter provinciano da cidade.
Já o Esmaga era um homem pequenino, com cara de sátiro, cheio de malícia e astúcia. Circulava pela Boca Maldita a pedir trocados para tomar café. Conhecia a todos e era reconhecido por todos, entre eles governadores, políticos, intelectuais, artistas. Com sua fala malandra e seu sotaque ingênuo, protagonizou causos que causaram embaraços a poderosos de então, embora ele não fosse contestador do ponto de vista político. Um tipo esperto, que sabia das patifarias humanas naquele centro de fofocas que era a Boca Maldita. Sabia como desmontar poses de pretensos artistas, cineastas, escritores, políticos e picaretas em geral. Esmaga, sem eira nem beira, dizia e fazia coisas do arco da velha.
Hoje não encontramos nada de parecido. Ao invés de personagens que viravam pelo avesso os costumes e crenças urbanas, o que vemos são zumbis, fantasmas de si mesmos. Criaturas doentias, de roupas imundas, sacudindo-se com gestos mecânicos de robô, a circular de um lado para outro produzindo apenas espanto. Não sabem onde estão nem que cidade é essa, corpo e alma corroídos pelas drogas.
Os doidos de algumas décadas atrás faziam parte da vida de todos. Essas almas penadas atuais são destroços humanos dos quais não sabemos os nomes e o que representam, já que eles próprios não sabem quem são e o que suas figuras denunciam.




quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Saudades de Sérgio Porto e do Brasil





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Há quem tenha saudade dos tempos da infância, dos quitutes da vovó ou da primeira ida ao cinema. Mas há também saudades de coisas físicas que, com o tempero do tempo, se transformam em coisas metafísicas. O álbum de figurinhas, a bola de futebol que meu pai me deu imaginando alimentar o talento de um futuro craque.
Minha mãe era uma senhora hábil em coar o melhor café, além de criar um surpreendente pudim de leite moça. Até hoje não resisto. Um tanto pelo sabor e outro tanto para anunciar, ao termino da degustação, que minha mãe faria melhor. Era imbatível.
Mas a saudade da qual eu queria falar não era nem de coisas, nem de comidas, nem mesmo da vizinha chamada Marlene, professora de educação física. Aliás, tinha uma educação física notável. Moleque ainda, eu me pendurava na cerca e puxava conversa enquanto ela levantava uns pesos, corria e dava uns pulinhos cheios de graça. Um espetáculo.
O que me fez suspirar um profundo “ai, que saudade!” foi o reencontro com um livro que está comigo há muitos anos e, numa arrumação que estou fazendo, me caiu nas mãos.
O autor é Sérgio Porto, que se tornou mais conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, sendo o compositor da notável marcha-rancho “O samba do Crioulo Doido”, sátira genial que tira sarro ao mesmo tempo dos temas e das letras dos sambas enredo e do estado de choque cultural em que se encontrava o Brasil em 1968, plena ditadura militar. Era um estado de confusão analfabética, digamos assim.
Aliás, um momento cultural semelhante ao que atualmente sofremos.
O livro é uma reunião de crônicas, misto de sátira e humor refinado, e leva o título de Garoto Linha Dura. Não é o melhor de Sérgio Porto. Ele escreveu outros, entre eles As Cariocas, reunindo seis novelas que mostram que não tinha apenas facilidade para criar textos de humor, sendo também um escritor de alta qualidade. O livro que o consagrou foi O Festival de Besteiras que Assola o País. Podemos imaginar como se divertiria tivesse à disposição o Brasil atual.
Faleceu ainda jovem, aos 45 anos, naquele fatídico 1968, fulminado por um ataque de coração.
O Garoto Linha Dura é o retrato de um tirano quando jovem: autoritário, aproveitador, um pequeno canalha. Um tipo violento e dedo duro capaz de atribuir aos coleguinhas de rua traquinagens que cometia.
Pois certa vez Sérgio trabalhava, debruçado sobre a máquina de escrever, quando, súbito, deu um pulo e correu até à janela. Gritou:
- Aí, careca!
O careca rodopiou, desconcertado, lá na calçada, e devolveu uma banana para ele, que retornou de imediato à máquina de escrever, no rosto o sorriso de quem havia cometido uma deliciosa molecagem.
Eis onde eu queria chegar. O Brasil perdeu o humor, perdeu o brilho e a graça. Já não podemos fingir que somos um povo alegre, capaz de fazer piada de tudo. Azedamos. Temos olhos em fúria. O dedo duro na cara do adversário. Um povo triste.
Em 1968, mesmo sob o choque da ditadura militar, sabíamos satirizar e sorrir. Hoje nem sabemos no limiar do que estamos. Todos querem vingança, custe o que custar.





terça-feira, 9 de outubro de 2018

O bom ladrão


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Começava a anoitecer, mas o caminho já era iluminado por algumas lâmpadas preguiçosas, dessas que fazem mais sombra do que luz. Os dois homens passaram um pelo outro e um deles, mais baixo e usando óculos, cumprimentou:
- Boa tarde!
O outro homem, alto e forte, parou num tranco e se aproximou:
- O senhor disse?
- Boa tarde. É verdade que é quase noite, mas...
- Tá bom. Olhe aqui.
O baixinho olhou na direção da cintura do grandão e viu um cabo de revólver.
- Um revólver? – o baixinho olhou em volta, mas correr não lhe pareceu um bom negócio, as balas seriam mais rápidas do que suas pernas; arriscou: Que mal lhe pergunte, vai fazer o quê com ele?
O outro sorriu:
- Assaltar o senhor.
- Mas isso...
- Sinto muito, doutor, mas tô precisado. O chato é que o senhor me deu boa tarde.
- Desculpe-me. Mas por isso vai me assaltar?
- Não – o grandão chegou a rir – Por isso estou em dúvida. O povo passa por mim e nem me vê, quanto mais dizer boa tarde.
O baixinho respirou aliviado:
- Desistiu, então?
- Não sei.
O baixinho aproveitou:
- Veja. Eu sai para caminhar, estou aqui de bermuda, camiseta e tênis. Não há o que roubar de mim. Que tal deixar para outro dia? Prometo trazer a carteira.
O sujeito tirou o revólver da cintura, olhou em volta e disse:
- Senhor é engraçado.
- Nem tanto.
- Dá boa tarde a quem não conhece, anda por aí quando está anoitecendo e não tem nada no bolso?
O baixinho suava frio, mas manteve a pose:
- Já ouviu falar em Pixinguinha?
- Sim. Eu toco cavaquinho no conjunto lá da vila.
- Pois então. Um dia ele foi abordado por um assaltante. Quando explicou que era o Pixinguinha, o ladrão desistiu do assalto. E Pixinguinha o levou para jantar na casa dele.
- O senhor é compositor?
O baixinho mentiu:
- Sou.
- Tem um rango legal em casa?
- Tem. Vamos lá?
Foi quando passou por eles um sujeito com uma pasta debaixo do braço.
O assaltante pediu:
- Espera aí. Vou ver o que tem naquela pasta e já volto.
O baixinho não esperou.








segunda-feira, 13 de agosto de 2018

As mulheres, sempre as mulheres







Nem o olhar mais distraído deixa de perceber que, entre os filósofos, as mulheres sempre estiveram, para usarmos de delicadeza, em segundo lugar.
Alguns deles foram acidamente críticos quanto ao chamado belo sexo. Schopenhauer dizia que seriam seres de cabelos longos e ideias curtas. Vale lembrar que ele é, entre todos os filósofos, o mais rabugento, sendo que a rabugice não é rara entre essas criaturas que se dedicam ao pensamento abstrato. Compreende-se assim sua aversão ao feminino. Afinal, mulheres são seres concretos. Muito concretos. Demasiadamente concretos, segundo alguns.
Lembro-me de uma charge de Millôr Fernandes na qual a mulher de Pitágoras lhe passa uma esculhambação:
- Mas que bobagem é essa que você rabiscou aqui na toalha de mesa?! Que droga é essa de que o quadrado da hipotenusa é a soma de não sei quê?
Se as mulheres são seres concretos, os filósofos são criaturas cuja cabeça parece errar (nos dois sentidos) quilômetros acima do chão no qual pisamos.
Como, graças aos céus, tenho leitoras do sexo feminino, devo alertar que não estou criticando essas doces criaturas – estou em sua defesa, por isso falo (sem duplo sentido) dos seus inimigos e as defendo como posso.
É bom lembrar que nascemos de uma mulher, tendo ficado nove meses em seu ventre, lugar seguro e quentinho e de onde fomos retirados a custa de muito suor e lágrimas. E cabe dizer que somos criaturas indefesas, salvos pelas mulheres de morte certa.
Vejamos. Entre os animais, os recém-nascidos têm como se defender. As girafinhas nascem com pernas enormes, mas de imediato se colocam de pé. Cães e macacos nascem sabendo nadar e as tartaruguinhas chegam ao mundo sabendo onde está o mar. E enfrentam as ondas com a classe de um surfista tarimbado. Um recém-nascido humano morre em seguida se não for acolhido pelo colo de uma mulher. Se depender de um homem, salvo casos raros, terá problemas.
Somados, passamos mais tempo junto delas do que deles – o que, devo admitir, é uma delícia.
Freud, sólido germânico, além de ter dito, já no final da vida, que não sabia o que queriam as mulheres, inventou de atazaná-las com suas ideias a respeito do que chama de inveja do pênis. Ou seja, as mulheres se sentiriam inacabadas e sem os poderes que um pênis lhes daria. Fantasias, é claro, delas e do Freud.
Como podem ver, acho que as mulheres foram um grande achado. Mas ando ruminando coisas na minha pobre cabeça. Me refiro ao tal empoderamento. Começa que, do ponto de vista estético, é um palavrão de mau gosto. É pesado, sólido, parece um bloco de concreto armado desabando em plena conversa.
Imitar o que há de pior nos homens não me parece boa ideia. Poder é coisa masculina e temo que seu sucesso permitiu aos homens compensar sua eterna dependência das mulheres. Sentem-se poderosos e posam de donos do mundo.
Enfim, as mulheres poderiam encontrar conceito melhor para garantir a sua, a meu ver, inegável excelência.
Em resumo, Schopenhauer e Freud não sabiam de nada.




quarta-feira, 1 de agosto de 2018

O mundo não começou quando você nasceu.







As frases feitas podem até mesmo ser interessantes em alguns casos, mas não é raro que escondam uma visão simplista do mundo.
No mundo pré-Facebook, acontecia de alguém comentar a respeito de um livro ou artigo de jornal e perguntar se os que participavam do papo haviam lido.
Como se vê, era um mundo diferente. As pessoas participavam de papos ao ar livre, geralmente em calçadas, sendo que algumas delas liam livros e os colocavam em discussão com os amigos.
Mas sempre havia na roda um tipo posudo, metido a leitor, que, enquanto os demais respondiam se haviam lido ou não, se emplumava e dizia:
- Já vi, sim.
Já viu? Como assim? eu perguntava, pois já nessa época eu era dado a perguntas impertinentes.
Ocorre que o tipo não aceitava dizer que não lera, mas também não podia se comprometer dizendo que lera, pois poderia se ver desafiado a falar sobre o livro.
Então, despistava. E, como era comum na época, acendia um cigarro e jogava a fumaça para o alto, desfazendo da conversa.
Hoje, lamento informar, a coisa continua a mesma, apesar das diferenças de época.
É o caso do famigerado "curtir" que acompanha textos e fotos no Facebook. Foi postado, por exemplo, um texto ou um comentário sobre um livro, discutindo tal assunto, e lá está o ícone salvador: curti. Basta aproximar o mouse e clicar. Pronto, curtiu. Não leu, é claro, embora alguns leiam. Não tem nada a acrescentar, mas faz de conta que está por dentro. Portanto, viu.
Sei de sujeitos que colecionam curtidas. Dizem:
- Meu post recebeu tantas curtidas.
E dizem isso com orgulho evidente. No mundo da rede é comum encontrarmos sites que tiveram curtidas na casa dos milhares e milhões. Claro, normalmente a respeito de bobagens. Questões mais sérias ou textos mais robustos não merecem tantas curtidas.
Assim segue o mundo. Dizem que Marx – o Karl, não o Groucho – ao ler as tragédias gregas, se surpreendeu com o fato de que, dois mil anos depois, tendo sido escritas em uma sociedade com estrutura e organização social completamente diferentes, ainda fossem inteligíveis, ainda sábias, ainda divertidas, capazes de nos comover, de nos levar ao riso ou ao choro.
Embora suas próprias teorias o impedissem de achar uma resposta, Marx humildemente reconhecia valor e sensibilidade rara nos escritores da Grécia clássica. Já os habitantes do século XXI, internautas entre eles, descartam a questão e fulminam o passado:
- Isso não é do meu tempo.
Trata-se de uma ignorância bestial. Para essas criaturas, o mundo iniciou no dia em que elas nasceram.
É por isso que para elas basta curtir.
Por exemplo: o sujeito curte uma foto – mas a foto é de um incêndio ocorrido em Portugal ou de um vulcão que explodiu na Guatemala. Isso significaria que curtiu o incêndio devastador, a desgraça havida, a arte do fotógrafo, ou apenas deixou um recado: “estive aqui”?
Creio que se trata do último caso. A ligeireza com que os olhos sobrevoam fotos e textos na internet, misturando datas e nomes ou aproximando ideias e conceitos irreconciliáveis como se fizessem parte da mesma lógica, é espantosa.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

O celular e o canivete suíço





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Talvez alguns leitores não saibam o que seja um canivete suíço, criado pelo cuteleiro Karl Elsener em 1894, sujeito que deveria ser muito ansioso, pois queria ter nas mãos todos os instrumentos que pudesse precisar.
Tento explicar.
Quando menino nossas brincadeiras eram como ondas no mar. Iam e vinham em moto contínuo. Mas, embora as ondas sejam previsíveis, as brincadeiras não eram. Surgiam do nada, contaminavam a todos, virando mania. Depois, sumiam.
Havia o jogo de clica (ou bolinha de gude), o pião, coleção de figurinhas, a pandorga (ou papagaio), futebol de botão, sendo que a única brincadeira que não vinha em ondas e nem sumia sem explicação era o futebol de rua, jogado em chão de barro, com qualquer coisa que se assemelhasse a uma bola. Enfim, uma festa.
Perdi o rumo.  Deixei de explicar o que era o canivete suíço.
Era canivete, mas não era só isso. Os donos de um canivete suíço gostavam de abri-lo com orgulho, demonstrando as suas várias funções. Podia ser saca-rolha. Ou tesourinha de cortar unha. Lixa de unha, lupa, serra, alicate e, além de outras mil utilidades, canivete.
Confesso, um tanto constrangido, que nunca me interessei pelo canivete suíço. Pode ser uma falha geológica na minha formação, mas nada posso fazer.
Mas lembro do entusiasmo dos meus amigos manipulando o canivete suíço com a agilidade e elegância com que John Wayne sacava o revólver. Felizmente era apenas um objeto para exibicionismo. Feria no máximo a pose do garoto adversário que tinha um canivete menos espetacular.
Pois estava eu a pensar nessas inutilidades quando me veio à mente o celular. Esse besouro irritante surgiu numa onda incontrolável que ainda não parou de crescer. Virou mania, pois todo sujeito que se preze tem o seu e o exibe como pode, grudando o nariz na telinha, desinteressado do mundo em volta.
Podemos imaginar um sujeito que não use cueca ou uma mulher que não use sutiã. Tenho um amigo que jamais usou calça jeans por ser inimigo jurado dos EUA. Mas não podemos imaginar alguém sem celular. No futuro, imagino, os seres humanos sofrerão uma mutação e, no lugar de uma das orelhas, lhes nascerá um celular.
Pois o celular tem, além desse caráter maníaco-obsessivo, outras semelhanças com o canivete suíço.
Ele pode ser um calendário - que antes era de papel e ficava em cima da geladeira. E pode ser relógio, que ficava no pulso, ou despertador, que dormitava na mesa de cabeceira. Mas também pode ser rádio, capaz de alcançar estações mundo afora. E também agenda com todos os endereços e telefones de seus contatos, sendo que hoje nenhum de nós sabe mais o número do telefone de ninguém.
Com ele fazemos compras e nem precisamos ir ao banco para cuidar de nossos trocados, escutamos música, vemos vídeos, assistimos a filmes, escolhemos roteiros no trânsito e também trocamos diálogos inconfessáveis que deixo aos leitores imaginar.
Mas tem um porém. O canivete suíço, quando era usado como canivete, funcionava. Capaz de cortar, picar fumo ou servir de arma. Já o celular, quando o usamos como telefone, é um verdadeiro desastre. Ronca, fuça, chia, guincha, desliga, congela.
E custa caro.








sábado, 19 de maio de 2018

Coisas Metafísicas





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Por exemplo: no escuro você procura a chave da porta e vai experimentando cada uma das que traz no chaveiro. É metafisicamente certo que só a última delas abrirá a porta, caso uma das anteriores não quebre na fechadura. O mesmo princípio metafísico rege outros pequenos infortúnios: você procura um documento que está dentro de uma das pastas sobre a mesa. O documento estará, é infalível, na última pasta da última pilha. E não adianta querer dar uma de espertinho, começando a procura pela última pasta; nesse caso, o documento estará justamente na primeira.
Há quem defenda que o mundo é um caos e que nada tem lei ou ordem. Engano. Metafisicamente errado. Tudo obedece a leis mínimas que se repetem ao infinito, com precisão irritante.  Você sai do chuveiro, num dia de muito frio, a casa cheia de visitas, e só então descobre que esqueceu a toalha no quarto. Caso seja um sujeito prevenido – e o prevenido está destinado ao fracasso, pois pretende burlar leis metafísicas – daqueles que se agarram à toalha, pensando, “dessa vez não esqueço”, desista: desta vez o chinelo terá sido esquecido no corredor.
Assim vai a vida. Até hoje a única coisa que consegui ganhar em sorteio foi um pacote de sagu numa barraquinha de festa do Espírito Santo. Duas vezes, só para me chatear. Por isso não levo a menor fé na mega-sena. Aposto lá uma vez ou outra e confiro os pontos com fleuma britânica: acerto nenhum, sendo que meu recorde de acerto é de duas dezenas. Em apostas diferentes. Agora, se preencho o cartão e esqueço-me de ir à lotérica efetivar a aposta, entro em pane: tenho certeza metafísica de que acertarei seis dezenas. Então, por via das dúvidas, rasgo o cartão. Pelos meus cálculos, já acertei umas dez vezes na loteria usando esse método.
Todas as obsessões, não há como discutir, são metafísicas e, por consequência, infalíveis. Tenho amigos que não mudam de ônibus ou avião no meio da viagem: ficam paralisados com a lembrança daquelas histórias do sujeito que mudou de avião no último momento, conseguindo uma vaga por desistência de alguém e, é claro, o avião caiu. Outros viajam sempre com a mesma roupa, o que dá sorte, segundo pensam.
Um deles me dizia isso:
- Entro no avião e fico quietinho, cumprindo o ritual. O mesmo terno de sempre, sentado no mesmo lugar, sempre folheando um exemplar da revista “A Cigarra” que voa comigo desde 1958. E não troco de avião de jeito nenhum.
Juro que esse raciocínio sempre me pareceu impecável, a mim que respeito muito os obsessivos. Mas nesse dia me deu um estalo e comentei, imaginando passar uma rasteira irrespondível nesse tipo obsessivo:
- Mas tem também a história do sujeito que se salvou do desastre trocando de avião no último momento.
- Aí é que está! – ele se exaltou – Não deveria ter trocado de avião!
- Mas ele se salvou! – exclamei, sem entender.
E o obsessivo, eufórico e triunfante:
- É claro que se salvou! Mas derrubou o outro avião!
Como se vê, metafisicamente irrefutável.






domingo, 8 de abril de 2018

Eu e a Bíblia ou: A inocência da maçã





 


Confesso ter divergências com a Bíblia. Algumas são de detalhes, outras de ênfase, outras de frontal discordância. Mas nada que não pudesse ser negociado. Eis o que desde muito alimentou meu desejo de reescrever o livro sagrado – ideia que não é minha, mas de Jorge Luis Borges, o grande escritor argentino.

Esta confissão começa, pois, com a delação de um duplo plágio que seria cometido por mim. Valeria como prova?
Abandonei tal projeto literário não por medo de enfrentar a concorrência de seu autor. É sabido que ninguém concorre com a Bíblia em sucesso editorial. Começa que não é um livro, mas uma reunião de livros, donde seu nome, que vem etimologicamente de ta biblia, ou seja, os livros. Que foram escritos em épocas e lugares diferentes e por cerca de 50 autores espalhados ao longo de quatorze séculos. Além disso, seus originais estão em três línguas: o hebraico, o aramaico e o grego. Quem já estudou a questão das dificuldades de tradução, imagine o que pode ser gerado de equívocos em tantas versões de tantos textos.
Deus, no caso, seria a figura que no mundo editorial anglo-americano se chama de Publisher. Decide o que será publicado, escolhe textos e os revisa, determina títulos e seleciona autores, adaptando o produto ao gosto do público-alvo.
Eis porque não entro em polêmica com Deus. Não é bom se meter com adversário tão poderoso.
Digo apenas que a Bíblia poderia ser diferente, talvez com linguagem mais direta e concisa, Dalton Trevisan fazendo a revisão final. Divergências leves seriam contornadas.
Uma delas: o fruto proibido. Embora a Bíblia não mencione qual seria esse fruto, os séculos consagraram a maçã como o objeto do desejo. Sem citar seu nome, lá está escrito que se tratava de um fruto “bom ao apetite” e “formoso à vista”.
Eis o ponto: maçã não é fruta de excepcional sabor, nem é irresistível em perfume, textura e beleza. Há melhores. Deus, em sua sabedoria, não a escolheria para fruto proibido.
Ou escolheria?
Talvez.
Creio que o Criador, anos-luz depois do Gênesis, fez um lobby pela maçã. Preferiu que se divulgasse como fruto proibido algo menos sedutor – enfim, não queria dar chance ao azar. Caso tal fruto fosse o caqui, por exemplo, não haveria ameaça de punição que segurasse o apetite de Adão e Eva. O caqui, quando a ponto de desmanchar em nossas mãos, é sugado com um prazer insuperável, lúbrico, erótico. Daí o Criador preferir a maçã. Fruta mediana em beleza e sabor, à qual seria possível resistir, ao menos por algum tempo.
Deus teve nisso muito tato. Sabemos, salvo os fundamentalistas, que nada mais desejável do que aquilo que é proibido.
Desconfio que muita gente, não fossem as milenares proibições à sexualidade, nem se interessaria por essa atividade tão exigente, que carece de esforço físico e concentração psíquica, energia muscular e agilidade corporal, levando muitos distraídos à beira do fracasso. Aliás, o mais temido dos fracassos. Sendo objeto de tabu, o sexo virou o sucesso que se conhece, superando concorrentes fortes, entre eles a maçã.
Não sei se me explico.





segunda-feira, 26 de março de 2018

O diabo mora na tipografia







  
Revisar textos é tarefa inglória. Por mais neuróticos que sejam os revisores, sabemos de antemão que algo escapará, algum descuido mais ou menos grave ficará numa página tantas vezes vista e revista. Fernando Sabino falava disso numa crônica antiga, lembrando um ditado que circula desde Gutenberg pelas oficinas gráficas: “o diabo mora na tipografia”.
Desde que me meti a escrever e editar livros, sou perseguido por uma sina particular. O livro pronto, chegado da gráfica, é retirado do pacote. É um prazer insuperável. O cheiro de livro recém-saído da gráfica só é comparável ao do pão recém-saído do forno.
Mas é quando entro em pânico.
Sei que vou abrir aquele livro exatamente numa página que contém um erro, não raro o único erro de todo o livro. Numa editora que dirigi, os funcionários me traziam os livros recém-editados com o coração aos pulos. Estavam convencidos de que eu abriria numa página com algum erro de revisão. E não dava outra: lá estava a vírgula fora do lugar, o ponto duplicado, o parêntesis que não foi fechado, o travessão inesperado, o s no lugar de um z. A gafe brilha e ocupa todo o espaço da mancha impressa, ri de nossos cuidados.
É um problema que merece reflexão. Deve haver em algum lugar do cosmos uma conspiração das letras, das máquinas, das palavras, quem sabe obra de algum espírito brincalhão que se mete entre as páginas. Talvez circulem no mundo palavras em demasia, livros em excesso, páginas redundantes. Os deuses da literatura nos castigam com essas gafes para que não percamos a humildade.
Era 1980. Numa bienal do livro minha atenção foi despertada por um sujeito que estava expondo xilogravuras num corredor anexo. Fui bisbilhotar. Eram obras de um bom gravurista, chamado Marcelo Soares, munido de chapéu de aba larga e boa lábia nordestina. Conversamos e, lá pelas tantas, descobri o que me levara àquele lugar.
Misturada a outras gravuras, encontrei uma intitulada “Lampião chutando o traseiro do Diabo.” Eis a razão pela qual eu fora à Bienal, pensei. Lampião desferindo um potente chute na bunda do Diabo me pareceu uma imagem perfeita para os dramas que enfrentamos ao editar.
Comprei a gravura, mandei emoldurá-la e ela está até hoje comigo, aqui na parede ao lado, como uma espécie de santo protetor dos escritores, editores e revisores. Com esta xilogravura por perto, me sinto mais tranquilo, mas, é claro, não livre de erros. Quando eles acontecem, vou até a xilogravura e, como fazem devotos de outros santos, discuto com Lampião, reclamando por ele não ter evitado esse tropeço. Um homem tão poderoso, digo a ele, capaz de colocar em debandada os macacos da Volante, como não me protegeu dessa ridícula vírgula fora do lugar?
Lampião nem me olha. Limita-se a desferir novo chute na bunda do Diabo, pois sabe que todos, no jornalismo, na literatura, na redação de um modesto ofício, vivemos aterrorizados com a possibilidade de uma simples vírgula se transformar num holofote.




sábado, 27 de janeiro de 2018

Nicanor Parra, poeta e matemático, morre aos 103 anos.



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Dos irmãos de Nicanor – cientista, matemático e, segundo ele próprio, “anti-poeta” - certamente a mais conhecida seria Violeta Parra, que foi cantora, folclorista, pintora, escultora. Mas a família é enorme e talentosa. Roberto foi cantor, assim como Lalo. Hilda Parra, guitarrista e cantora. Lautauro, cantor, poeta e compositor. Oscar Parra Sandoval, conhecido como Tony Canarito, que se dizia o menos Parra dos Parra, guitarrista e palhaço, tendo abandonado a guitarra por um problema nas mãos.
Nicanor faleceu no dia 23 de janeiro, aos 103 anos. No início teve influência de Federico Garcia Lorca e Walt Whitman. Pós-graduado em física, nos EUA, Universidade Brown, foi professor da Universidade do Chile. Autor de obra extensa, se caracteriza, sendo um anti-poeta, por alguém que deseja desmontar as ilusões “literárias” que correm mundo. Dizia ter sido influenciado por Charles Chaplin, Franz Kafka e os surrealistas.
Transcrevo abaixo três poemas que mostram seu modo refinado, irônico e original de conceber a poesia.

O homem imaginário

O homem imaginário 

vive em uma mansão imaginária 
cercada por árvores imaginárias 
à margem de um rio imaginário

Das paredes que são imaginárias, 

velhos quadros imaginários 
remanescem rachaduras imaginárias irreparáveis 
que representam eventos imaginários 
que ocorreram em mundos imaginários 
em lugares e tempos imaginários

Toda tarde imaginária, ele 

subiu a escada imaginária 
e olha a varanda imaginária 
para olhar a paisagem imaginária 
que consiste em um vale imaginário 
cercado de colinas imaginárias.

As sombras imaginárias 

descem pelo caminho imaginário, 
cantando canções imaginárias 
até a morte do sol imaginário.

E nas noites da lua imaginária ele 

sonha com a mulher imaginária 
que lhe deu seu amor imaginário, esse mesmo prazer imaginário 
novamente sente a mesma dor e o coração do homem imaginário retorna para palpitar .


No creo en la vía pacífica


no creo en la vía violenta
me gustaría creer
en algo —pero no creo
creer es creer en Dios
lo único que yo hago
es encogerme de hombros
perdónenme la franqueza
no creo ni en la Vía Láctea.


Me retracto de todo lo dicho

Antes de despedirme
Tengo derecho a un último deseo:
Generoso lector
quema este libro
No representa lo que quise decir
A pesar de que fue escrito con sangre
No representa lo que quise decir.
Mi situación no puede ser más triste
Fui derrotado por mi propia sombra:
Las palabras se vengaron de mí.
Perdóname lector
Amistoso lector
Que no me pueda despedir de ti
Con un abrazo fiel:
Me despido de ti
con una triste sonrisa forzada.
Puede que yo no sea más que eso
pero oye mi última palabra:
Me retracto de todo lo dicho.
Con la mayor amargura del mundo
Me retracto de todo lo que he dicho.